28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Era uma vez um sertão que sonhou que podia ir para a universidade

Publicado em 09/05/2019 12:00 -

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No início do ano, minha mãe mandou uma mensagem emocionada no grupo de WhatsApp da família. Uma aluna sua havia passado em medicina na Universidade Federal do Vale do São Francisco, em Petrolina, município no interior de Pernambuco. Cleonilde Alves Bezerra e os nove irmãos foram criados sozinhos pela mãe, agricultora. Desde criança, conta mainha, ela só falava em se formar para dar uma vida melhor à família – isso já na escola primária, onde minha mãe leciona.

Quando o governo decretou o corte de 30% dos recursos para as universidades federais, pensei logo nela. Decidi ligar. Por telefone, ela me contou que as coisas na Univasf estão difíceis e devem piorar. O auxílio emergencial para os estudantes no início do curso, do qual ela dependia, por exemplo, já foi suspenso.

Embora eu tenha cursado jornalismo em uma universidade estadual, entendo bem o sofrimento da Cleonilde. Nós duas crescemos no sertão do Pernambuco, região em que ter algo além do ensino médio era visto como um sonho para quase ninguém. Meus pais sempre disseram que o estudo era só o que eles podiam dar a mim e aos meus dois irmãos. E eles tinham razão. Essa é, quando muito, a única herança que milhares de famílias pobres têm condições de deixar para seus filhos, às custas de muito esforço, trabalho e sofrimento.

O corte dos recursos para as universidades públicas representa o fim do sonho de ascensão social para muitas famílias que viam, nos filhos, a possibilidade de ter uma velhice mais confortável. O estudo dos filhos é sua verdadeira expectativa de previdência. Ganhar uma geladeira nova, um fogão, um móvel que faltava não é pouca coisa para quem trabalhou a vida toda na enxada e nunca conseguiu comprar nada disso. Para além dos presentes, não há como mensurar o alívio das famílias que têm a segurança de que os filhos não dependerão de suas aposentadorias, porque o curso superior irá lhes garantir um emprego melhor.

Segundo uma pesquisa da Andifes, a associação de reitores, mais da metade dos alunos das universidade federais vêm de famílias que ganham menos do que um salário mínimo per capita por mês. A morte lenta que o governo Bolsonaro está provocando nesses lugares vai ter graves consequências em todo o Brasil – e é longe dos grandes centros que está a verdadeira tragédia.

Na federal de Petrolina, o corte de R$ 11 milhões vai prejudicar ainda mais o programa de assistência a estudantes pobres, como Cleonilde já sabe. Naquela região, é importante lembrar, eles são muitos.

Para piorar uma situação que já é caótica, em Pernambuco a Universidade Federal Rural perdeu R$ 23,6 milhões, o que pode resultar no cancelamento de até 50% de todos os contratos de prestação de serviço realizados pela instituição.

No interior do Ceará, a Universidade Federal do Cariri perdeu 47% do seu orçamento. Com R$ 8,8 milhões a menos, a instituição, que em seis anos de existência já tem 23 cursos de graduação e cinco cursos de mestrado, pode fechar.

A Universidade Federal do Pará, que de acordo com um levantamento divulgado pela USP é a que mais produz ciência na Amazônia, teve 50% do recurso bloqueado. Restaram só R$ 4,5 milhões para investir na educação superior de 53 mil estudantes no ano inteiro.

No Acre, a notícia do corte de 37% no orçamento do Instituto Federal veio no mesmo dia em que um grande incêndio atingiu o prédio do campus de Cruzeiro do Sul, município do interior do estado. Com R$ 5,8 milhões bloqueados, o Ifac pode fechar em três meses. “A partir do mês de agosto não tem como manter as nossas aulas, não tem como sobreviver, não tem como pagar contas básicas de manutenção para o funcionamento da instituição”, disse em entrevista ao G1 Acre a reitora Rosana Cavalcante.

Longe dos grandes centros, em desertos de notícias, essas instituições serão logo esquecidas pela imprensa. Seu desmonte será silencioso, mas não menos trágico.

Além dos danos causados à educação, ao cortar drasticamente os recursos das universidades, o governo federal prejudica a economia das cidades. Um estudo realizado pela Universidade Federal de Itajubá, em Minas Gerais, por exemplo, mostrou que a instituição movimenta R$ 189 milhões em todos os setores do município e é responsável por 4,6% do PIB. O maior impacto econômico foi encontrado na geração de empregos.

As universidades produzem ensino, pesquisa, extensão e ainda movimentam a economia local, coisa que Bolsonaro e sua equipe parecem conhecer muito pouco. Por isso, o argumento do governo de que as instituições promovem balbúrdia é revoltante. Balbúrdia é o presidente mentir dizendo que vai investir na educação básica, quando na verdade congelou R$ 680 milhões nessa área e cortou mais 17% do recurso previsto para a construção e manutenção de creches e pré-escolas.

O governo está impondo barreiras para a educação dos brasileiros em todas as fases da vida, do ensino infantil ao doutorado. Mesmo que a criança consiga vencer os obstáculos e chegue à idade de fazer um curso superior, de que adianta se as universidades já não irão existir? Futuro mais previsível não pode haver. Os jovens serão apenas mão-de-obra barata e desqualificada.

Entre 2002 e 2014, mostra um levantamento do MEC, o número de campi de universidades federais no nordeste passou de 30 para 90 – um crescimento de 200%. No norte não foi diferente, com um crescimento de 133%, passando de 24 para 56 campi, o que inclui tanto novas universidades quanto a expansão, em especial para o interior, de federais já estabelecidas. Nesse período, o número de novas vagas também cresceu em todas as regiões. 

Na época em que passei no vestibular, era comum as pessoas do Mundo Novo, povoado de algumas dezenas de casas em que cresci, dizerem que alguém havia “terminado os estudos” quando concluía o colégio. Na última década, porém, terminar os estudos ganhou outro significado. Agora se diz isso por lá, com orgulho, quando um jovem consegue o diploma da faculdade. É doloroso imaginar que isso está prestes a se perder.


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