19/04/2024 - Edição 540

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MEC abre guerra contra universidades federais e anuncia corte de 30% nos repasses

Publicado em 03/05/2019 12:00 -

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O Ministério da Educação (MEC) bloqueou 30% do orçamento de todas as universidades federais do país.

Em nota, a pasta disse que o contingenciamento foi decidido a partir de um "critério operacional, técnico e isonômico para todas as universidades e institutos" federais, devido a um bloqueio de 5,8 bilhões de reais do orçamento do ministério determinado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.

O MEC afirmou ainda que estuda aplicar outros critérios para os cortes, "como o desempenho acadêmico das universidades e o impacto dos cursos oferecidos no mercado de trabalho", com o objetivo de "gerar profissionais capacitados e preparados para a realidade do país".

De acordo com o MEC, "o bloqueio preventivo incide sobre os recursos do segundo semestre" e poderá ser reavaliado "caso a reforma da previdência seja aprovada e as previsões de melhora da economia no segundo semestre se confirmem, pois podem afetar as receitas e despesas da União". O valor total dos cortes atingirá 2,5 bilhões de reais.

Em um primeiro momento, o ministério havia confirmado via comunicado o corte de repasses às universidades de Brasília (UnB), da Bahia (UFBA) e Fluminense (UFF). Antes do anúncio oficial, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, havia afirmado que a promoção de "balbúrdia" nos campi universitários em vez do foco na melhora do desempenho das instituições serviria de critério para os cortes.

"A universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo. A lição de casa precisa estar feita: publicação científica, avaliações em dia, estar bem no ranking", disse.

As três universidades, no entanto, aparecem em posições de destaque em rankings do país e internacionais. Um dos mais renomados, o Times Higher Education, coloca a UnB, a UFBA e a UFF entre as melhores do Brasil. A de Brasília aparece na 16ª posição na América Latina.

As afirmações do ministro foram alvo de duras críticas, e a medida foi classificada por especialistas de inconstitucional, por ferir o princípio da autonomia universitária.

​"A autonomia universitária é didática mas também administrativa e de gestão financeira e patrimonial. O ministro está decidindo por conta própria qual padrão as universidades devem seguir. Para isso é que existe autonomia, para que as instituições não fiquem à mercê do governante de plantão", afirmou a professora de direito da USP Rina Nanieri.

A União Nacional dos Estudantes (UNE) publicou uma nota com o título: "Bolsonaro e Weintraub: inimigos da Educação". Em reação aos cortes anunciados para UnB, UFBA e UFF, a entidade afirmou que se trata de "perseguição e retaliação". "Justamente por serem universidades onde estudantes, professores e trabalhadores pautaram o debate político expressando opiniões contrárias ao governo", diz a nota.

Todas as universidades federais já enfrentam bloqueio de 20% do orçamento previsto para o semestre atual como parte de um amplo contingenciamento de 30 bilhões de reais anunciado pelo governo, incluindo os 5,8 bilhões de reais da Educação.

Para Reinaldo Centoducatte, presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil), o novo percentual de contingenciamento trará grandes dificuldades para as federais.

"Aquilo que era um equívoco para três universidades, tornou-se um equívoco maior, agora envolvendo todas as universidades, Será um caos se 30% do orçamento for retirado", afirmou.

Weintraub ironizou reitores de universidades federais. "Para quem conhece universidades federais, perguntar sobre tolerância ou pluralidade aos reitores (ditos) de esquerda faz tanto sentido quanto pedir sugestões sobre doces a diabéticos", escreveu no Twitter.

<blockquote class="twitter-tweet"><p lang="pt" dir="ltr">Para quem conhece Universidades Federais, perguntar sobre tolerância ou pluralidade aos reitores (ditos) de esquerda faz tanto sentido quanto pedir sugestões sobre doces a diabéticos.</p>&mdash; Abraham Weintraub (@AbrahamWeint) <a href="https://twitter.com/AbrahamWeint/status/1123561669668548611?ref_src=twsrc%5Etfw">May 1, 2019</a></blockquote> <script async src="https://platform.twitter.com/widgets.js" charset="utf-8"></script>

Depois dos cortes, deputados criticaram a decisão. O Psol protocolou um pedido na Procuradoria-Geral da República (PGR) para investigar crime de improbidade administrativa de Weintraub devido ao bloqueio. No documento, a legenda argumenta que o ministro feriu a autonomia das universidades e o sistema de percentuais obrigatórios de financiamento da educação, previstos na Constituição.

Agenda anti-educação

“Nesta terça-feira, nós, docentes da Universidade Federal da Bahia, acordamos atordoados com mais um elemento distópico deste Brasil de 2019: o ministro da Educação, Abraham Weintraub, declarou ter bloqueado dotações orçamentárias de três universidades escolhidas a dedo, a nossa universidade entre elas. Os critérios, explicou ele, eram a promoção de ‘balbúrdia’, ‘evento ridículo’ e o baixo desempenho acadêmico medido ‘pelo ranking’, este último não especificado pelo ministro”, afirmaram as pesquisadoras Maíra Kubík Mano, Mariana Possas, Rafael Lopes Azize e Sue Iamamoto, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O vocabulário do Weintraub, mais apropriado a uma conversa de almoço de domingo do que à fala de um ministro de Estado que dirige uma das mais importantes pastas do país, se não a mais importante, pode levar alguns desavisados à chacota. Não nos enganemos: trata-se de um sério ataque ao pensamento livre, que tenta enquadrar as universidades brasileiras em um modelo acrítico impossível e que promove a ignorância como política de Estado.

Aos fatos. Na semana passada, três grandes universidades federais, a UFBA, a Universidade de Brasília e a Universidade Federal Fluminense, tiveram 30% das suas dotações orçamentárias bloqueadas pelo Ministério da Educação. Weintraub justificou os bloqueios, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, na terça (30): essas instituições estariam fazendo "balbúrdia" e "evento ridículo". Em que pensava o ministro? Como exemplos, mencionou "Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus". Perguntado se isso não caracterizaria ingerência e censura nas universidades, o ministro não respondeu e também não especificou a que eventos se referia. E acrescentou outro motivo para os bloqueios: o desempenho acadêmico.

Depois, diante da repercussão negativa, o ministro estendeu o corte para as outras universidades federais.

Suas afirmações se sustentam? Não, em nenhum dos pontos. Nem quanto a balbúrdia, nem quanto à "gente pelada", nem quanto aos indicadores de desempenho acadêmico.

Sobrevivendo – apesar dos cortes e contingenciamentos

As universidades federais vêm enfrentando cortes e contingenciamentos nos anos mais recentes, sempre sob a justificativa do "ajuste fiscal". Em 2015, enfrentamos uma dura greve dos docentes contra essas medidas de austeridade, quando os investimentos foram cortados em 47%. Em 2017, as verbas repassadas se reduziram em R$ 247 milhões com relação a 2016. Em 2018, a queda foi ainda maior. Agora, o que vemos é pior: para além da redução de investimentos, assistimos a um recorte ideológico da tesoura.

Na sua entrevista ao Estado de S.Paulo, o ministro mencionou "desempenho acadêmico" como uma justificativa para os bloqueios de dotação orçamentária. Não especificou em quais documentos de medição de desempenho se baseava. Sabemos que os critérios usados nos rankings de desempenho de universidades são, no mínimo, questões em discussão aberta, havendo entre os especialistas discordâncias de superfície e de fundo acerca deles. No entanto, mesmo deixando isso à parte, os rankings mais considerados no país e no mundo indicam exatamente o inverso no que diz respeito às três universidades singularizadas pelo ministério: elas subiram posições.

Basta citar dois desses rankings: Times Higher Education e Ranking Universitário Folha. No caso da UFBA, a Reitoria publicou nota na qual explicita o impacto do bloqueio de parte da dotação orçamentária sobre as suas operações, e também os ganhos de desempenho alcançados nos últimos anos, a despeito de reduções sucessivas de dotações.

As razões apresentadas pelo ministro para os cortes, além de não corresponderem à verdade factual, como vimos acima no tocante a desempenho acadêmico, não se qualificam como razões legítimas. A despeito de não ter o ministro detalhado exatamente os eventos que interpreta como "balbúrdia" e "ridículos", temos duas indicações: as menções a eventos com presença de "sem-terras" e de "gente pelada". Por extrapolação, digamos, o ministro se referia a eventos com uma natureza de reflexão e expressão política, num caso, e artística, no outro. Estamos supondo que o ministro tinha em mente performances havidas em 2018, particularmente na UFF, uma das universidades escolhidas para cortes.

Se essa interpretação é razoável, então de duas uma: ou o ministro quer eliminar da universidade o seu caráter de espaço do pensamento crítico, da experimentação livre – das ciências às artes, da mecatrônica à antropologia -, reduzido-a à função escolar de mero local de transmissão de informação, ou então ele se arvora a função de supervisor ideológico.

Nenhuma das duas hipóteses estão contempladas constitucionalmente. O que vemos não é uma preocupação com a missão constitucional das universidades, com a qualidade de ensino, ou com o gasto de dinheiro público em instituições que, eventualmente, poderiam não dar o retorno exigido pela sociedade – como o governo alegou no final do dia, após muitas críticas, e ainda indicou a ampliação dos cortes para as demais universidades e institutos federais – mas sim uma busca por controle sobre as atividades que se desenvolvem dentro das universidades. E isto configura uma ingerência sobre a autonomia universitária.

O papel das universidades

É importante lembrar que as universidades públicas cumprem um papel, no Brasil, que é intransferível, e foi construído ao longo de várias décadas. Por isso, a sociedade como um todo precisa tomar para si, urgentemente, a tarefa de defender essas instituições. Elas são o espaço em que a sociedade reflete sobre si mesma, em livres experimentos do pensamento e da imaginação. É assim em todos os países que buscam soluções inclusivas e criativas para os seus problemas. Isso não significa andar pelado pela universidade! Significa que levamos aos nossos alunos e pesquisadores a possibilidade de refletir sobre a sociedade e o mundo, a partir de ferramentas específicas, adequadas às diferentes disciplinas.

No entanto, esse exercício do "pensar o mundo" pode significar trazer à tona problemas da sociedade em seus mais variados setores que porventura estivessem velados, e isso não é fácil, nem confortável. A filosofia, a sociologia e as ciências sociais em geral incomodam, e sempre incomodaram, porque, ao falar da sociedade como ela é, apontam o dedo para algumas realidades das quais nos envergonhamos, que queremos esconder ou simplesmente esquecer, e também imaginam o que a sociedade pode ser – preferencialmente numa direção inclusiva e de expansão do espaço de direitos e garantias, tanto individuais como sociais.

“Podemos mencionar muitos exemplos que mostram o desconforto que as ciências humanas podem causar, especialmente para determinados grupos: o estudo e análise da violência contra as mulheres permitem indicar e caracterizar a realidade do machismo; a pesquisa e discussão sobre o altíssimo número de assassinatos de jovens negros permitem que enxerguemos com mais nitidez o fato de que ainda temos muitos problemas raciais; o estudo e análise sobre dados sócio-econômicos geram constatações de que crescimento econômico pode vir junto com redução das oportunidades de trabalho qualificado e bem remunerado e caminhar no sentido contrário da eliminação de trabalho escravo; pesquisas na área de biologia e ecologia podem indicar que empresas e governo estão tomando direções contrárias à preservação do meio ambiente. Essas realidades são todas desconfortáveis e, para alguns, muito inconvenientes. Mas elas existem e por essa razão é papel da universidade falar sobre elas”, dizem as pesquisadoras.

“É preciso dizer ainda que nos últimos anos a universidade pública viveu uma transformação profunda: a partir da adoção da política de cotas e da ampliação de ações de permanência de estudantes (residências universitárias, refeitórios, auxílio transporte, bolsas de iniciação científica etc.), este hoje é um espaço diversificado. Temos pessoas oriundas de todas as classes sociais, uma ampliação significativa de negros e negras, LGBTQIs e indígenas e quilombolas”, complementam.

A universidade tem se transformado, então, nesse espaço no qual é possível o encontro da sociedade em sua diversidade. Ainda estamos longe do ideal, mas estamos numa busca de construir um ambiente em que indivíduos e grupos sociais possam pensar coletivamente e encontrar soluções para problemas concretos. A grande proposta de articular o tripé universitário do "ensino, pesquisa e extensão" é um caminho nesse sentido. Queremos perder, reduzir, desmontar tudo isso? Não, queremos proteger um grande projeto de universidade pública, plural e inclusiva.

“Por essas razões, estamos profundamente preocupados com a possibilidade de que o governo federal pretenda não apenas executar um corte nos orçamentos da UFBA, da UnB e da UFF – o que já seria grave e contrário aos interesses do país -, mas também iniciar uma política direta de controle ideológico”, afirmam as professoras.

Um executivo cujo chefe proíbe discordâncias internas desfavorece a elaboração de diagnósticos complexos, que exigem debate e confronto de ideias, em busca de soluções para os problemas reais do país. Pior do que isso, o ataque a espaços de construção coletiva e múltipla de saberes, como a universidade, apresenta um forte indício de autoritarismo político.

“Nesse cenário, não perdem somente nossas universidades, seus docentes, técnicos, estudantes e os trabalhadores terceirizados, sempre os primeiros a serem atingidos. Perdemos como país, como seres humanos, capazes de enfrentar os nossos problemas de frente e construir futuros melhores”, concluem.


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