19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Torturadores são heróis na terra em que o Exército executa quem salva vidas

Publicado em 19/04/2019 12:00 -

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Morreu no último dia 18 o catador de material reciclável Luciano Macedo, 27 anos, depois de lutar 11 dias por sua vida no Hospital Carlos Chagas. Ele havia sido atingido por tiros do Exército ao tentar ajudar a família do músico Evaldo Santos Rosa, executado quando seu carro foi alvejado mais de 80 vezes por militares, em Guadalupe, Zona Norte do Rio. A mulher, o filho pequeno e uma enteada não se feriram, mas o sogro de Evaldo segue internado. Eles teriam sido confundidos com bandidos, mas estavam indo a um chá de bebê.

Luciano estava com a esposa, grávida de cinco meses, catando madeira para construir um barraco e garantir um teto para os três. Viram o desespero da família e ele foi ao seu socorro para retirá-los do carro. De acordo com registro de Gustavo Goulart e Rafael Soares, do jornal Extra, morreu com tiros nas costas. Luciano, como Evaldo, era negro.

"Se meu irmão errou muitas vezes na vida, ele acertou ali naquele momento. Deus levou ele. Ele foi salvar uma vida e deu a dele", afirmou Lucimara Macedo, irmã de Luciano.

Não importa como viveu, mas como morreu. Viveu à margem da sociedade, morreu herói. Não que seja reconhecido por isso. Não aqui.

Se ele tivesse torturado alguém, seria chamado de herói. Em sabatina à GloboNews, no ano passado, o então candidato à vice-presidência Antonio Hamilton Mourão, disse que "heróis matam" ao falar do finado torturador Brilhante Ustra, responsável pela repressão política violenta na ditadura. Considerando, contudo, que Ustra espancava e matava quem não podia reagir por já estar preso e sob tutela do poder público, diria que era um herói bem covarde. O próprio Jair Bolsonaro, que divide a opinião com Mourão, afirmou que a história do torturador era seu livro de cabeceira.

Se ele fosse um miliciano, seria chamado de herói. O então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro propôs menções de louvor e congratulações a Adriano Magalhães da Nóbrega e Ronald Paulo Alves Pereira, então policiais militares, pelos importantes serviços prestados ao Rio de Janeiro. Ronald foi preso pela operação "Os Intocáveis", acusado de ser um dos líderes do Escritório do Crime, milícia na capital carioca. Adriano, denunciado pelo mesmo motivo, está foragido. Na justificativa da moção 3180/2004, Flávio Bolsonaro cita uma operação policial realizada no Conjunto Esperança, no Complexo da Maré, naquele ano, que resultou na morte de um líder do tráfico e na apreensão de armamento e munição.

Se ele fosse político, magistrado ou procurador seria chamado de herói, a depender da ideologia do fã. Mas heróis não precisam de auxílio-moradia.

Como já disse aqui, acho que herói é Antônio. Ele acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas e, com duas conduções, sai da periferia da periferia paulistana e vai até o bairro de Santo Amaro para vender café da manhã aos transeuntes. Depois, quando os clientes desaparecem, começa a trabalhar no serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês e, sinceramente, não vale a pena. Mas como tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender "churrasquinho de gato" no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Um dia, pôs sua churrasqueira para conseguir algum em um final de semana lotado de corrida perto do autódromo de Interlagos. A Guarda Civil Metropolitana, contudo, levou tudo embora. Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Heroísmo.

É claro que nenhum de nós quer ter a vida de Antônio. Ele nunca sentirá o glamour das recepções internacionais com caros vinhos e, sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro. Não adianta dizer que ele é feliz, que tem Deus no coração, que a família o ama. Isso é apenas jogar purpurina em cima da tragédia. A sua atuação profissional, muito provavelmente, não terá um final feliz para ser levada às telas do cinema. É Antônio, mas podia colocar aqui uma relação de nomes, grossa como uma lista telefônica, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia a dia porque, se desistirem, morrem – e nunca ganharão uma medalha por isso.

Cotidianamente, um desses heróis resolve sair do anonimato. Como o catador de recicláveis Luciano, que morreu tentando ajudar a família de Evaldo. Provavelmente, não será enterrado com pompa, nem com circunstância. E, em pouco tempo, será esquecido.

Não diria que existe uma inversão de valores por aqui, pois uma sociedade merece os heróis que elege. Talvez não merecesse Luciano, por isso ele se foi.

Na hora em que o nome de Luciano, de Antônio ou qualquer um desses milhões, cuja desgraça é apenas um detalhe, for retirado das entranhas da sociedade e tratado com o respeito que merece, não precisaremos mais eleger heróis. Nem procurar salvadores.

Porque teremos percebido que os grandes exemplos a serem seguidos e as histórias que nos inspiram estão ao nosso lado e não acima de nós. Nesse momento, o país vai deixar de acreditar que precisa de alguém que o salve porque já estará em estrada segura, caminhando sozinho para um lugar melhor.


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