25/04/2024 - Edição 540

Poder

Cem dias de um vice com agenda própria

Publicado em 12/04/2019 12:00 -

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Nos cem primeiros dias de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro dedicou-se a encontros com sua equipe (ministros, assessores, dirigentes de estatais) e com políticos e caciques partidários —estes últimos ganharam espaço especialmente depois de o Planalto ser cobrado a atuar na negociação com o Congresso. Enquanto isso, Hamilton Mourão se destacou por receber empresários, presidentes de entidades da sociedade civil, diplomatas e a imprensa – as frequentes declarações do general da reserva aos jornalistas moldaram nestes três meses o perfil de um vice nada decorativo e sem constrangimentos em se firmar como um contraponto ao chefe. As ênfases da atuação das duas maiores autoridades do Poder Executivo ficam evidentes ao se analisar os dados que constam de suas agendas públicas.

No repasse do dia a dia da dupla de militares da reserva com assento no Palácio do Planalto, a mudança de comportamento do presidente é eloquente: Bolsonaro criou tempo para receber os caciques partidários, tendo que modular seu discurso contra a "velha política" e a ideia de que seu Governo era capaz de negociar por meio de "eixos temáticos" com o Parlamento, e não com as legendas. Na lista do vice, uma maior diversidade nos compromissos, com um aceno ao PIB e à diplomacia. Chama atenção as pontes de Mourão para além do bolsonarismo: ele já recebeu representantes da oposição, como governadores do PT e do PCdoB, senador da REDE e dirigentes da Central Única dos Trabalhadores. Só com a CUT, foram dois encontros para debater a reforma da Previdência.

Entre 1º de janeiro e 10 de abril, quando se completaram os 100 dias, Bolsonaro esteve com 193 vezes com ministros e dirigentes de estatais, 79 com deputados e senadores, além de 12 com dirigentes partidários. Enquanto o presidente esteve em 25 encontros com empresários e investidores, Mourão foi a 62, entre eles duas vezes com dirigentes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), uma com o Banco Mundial e outras com petroleiras, instituições financeiras e mineradoras. Até por conta das atividades diferentes que desenvolve e pelas declarações que tem feito, na visita que fez aos Estados Unidos nesta semana, o vice foi apresentado como uma espécie de antagonista de Bolsonaro, mas que acabava dando previsibilidade ao seu Governo. Algo que, de pronto, refutou. “Eu sou complementar a ele”. O mesmo já havia dito ao EL PAÍS, em uma entrevista publicada em fevereiro.

Aproximação com o Congresso e espaço para os filhos

O desenrolar das semanas fez com que Bolsonaro reavaliasse ao menos duas de suas estratégias, a da articulação política e a de comunicação. Após ser criticado por não ter se empenhado no andamento de sua reforma da Previdência, passou a receber mais parlamentares e representantes de partidos. Nas últimas semanas, reuniu-se com 12 presidentes e dirigentes de legendas, com o objetivo de pedir o empenho delas no projeto que é a espinha dorsal de seus planos econômicos. “Ele se rendeu à velha política. Notou que esse discurso de novo, sem agir, não vale nada. Só valia para a eleição”, analisou o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília.

Com relação à comunicação, o presidente passou usar uma estratégia dupla: abriu espaço a jornalistas dos grandes veículos, ainda que nas redes sociais incentive os ataques aos meios de comunicação. Promoveu ao menos três encontros com jornalistas pré-selecionados e intensificou sua agenda de entrevistas exclusivas. Sempre que faz uma viagem internacional, fala com alguma emissora ou jornal local. Isso ocorreu nos Estados Unidos, em Israel e no Chile.

Uma comparação com a agenda de Mourão mostra que o vice é muito mais próximo à imprensa. Nesse início de Governo ele já concedeu 46 entrevistas a veículos nacionais e internacionais. Enquanto que o presidente deu apenas dez, conforme os dados oficiais. Esses dados, contudo, estão subestimados. Nas informações divulgadas pelo Planalto, raramente constam as entrevistas do presidente. Três exemplos: na viagem a Suíça, em janeiro, o presidente concedeu entrevista à Record TV que não foi contabilizada. O mesmo ocorreu em março, quando falou para a Band e nesta semana, quando foi entrevistado pela rádio Jovem Pan. O vice-presidente, por sua vez, detalha cada conversa que tem, citando o nome dos meios de comunicação e dos entrevistadores.

Para o professor Fleischer, a comparação entre os dois políticos mostra que Mourão tem “luz própria” e acaba fazendo parte de um grupo de militares responsável por indiretamente “tutelar” o presidente. Ele cita dois exemplos. Em fevereiro, o vice decidiu de última hora viajar a Bogotá, na Colômbia, para participar do Grupo de Lima e deixar claro que o Brasil era contrário a uma intervenção militar na Venezuela com o objetivo de depor o regime de Nicolás Maduro. “O ministro Ernesto Araújo [Relações Exteriores] estava pronto para apoiar a intervenção. Mas o Mourão viajou para fazer diplomacia”, diz o cientista político. O outro exemplo foi a viagem do vice aos Estados Unidos, onde ele se participou de encontros mais diversificados do que Bolsonaro e se encontrou com representantes da comunidade brasileira em Boston. “Parece que ele viajou aos Estados Unidos para limpar as sujeiras que Bolsonaro deixou por lá. Queria melhorar a imagem do país”, afirmou.

Os números não representam a totalidade das rotinas de Bolsonaro e Mourão. As inconsistências nas agendas, algo que em países como os EUA poderiam ser consideradas deslizes legais, ocorrem com maior frequência que se imagina. No caso da de Mourão, por exemplo, há menos encontros com diplomatas do que realmente ocorreram. Um deles que foi consultado pela reportagem disse que esteve com o vice-presidente “quatro ou cinco” ocasiões. Mas nos registros oficiais seu nome aparece duas vezes. Já na de Bolsonaro, nem todos os encontros que têm com seus filhos que são políticos aparecem nos dados oficiais. Conforme o levantamento, o presidente se reuniu seis vezes com o senador Flávio, seis com o vereador pelo Rio de Janeiro Carlos, apontado como o estrategista de comunicação do pai, e duas com o deputado federal Eduardo.

Outra equipe

Na semana passada Mourão afirmou que, se estivesse no lugar de Jair Bolsonaro, teria escolhido outras pessoas para trabalhar com ele no comando do governo.

Questionado sobre o que faria diferente caso fosse o presidente Mourão disse que agradecia a pergunta, mas que sua parceria com Bolsonaro era total. "Quando ele toma uma decisão, eu acato." Questionado mais uma vez sobre possíveis mudanças na condução do país até aqui, o vice então respondeu: "Talvez pela minha personalidade, eu escolhesse outras pessoas para trabalhar comigo".

Para Mourão, a grande participação de militares no governo Bolsonaro cria um risco de associação caso o governo falhe. "Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação".

Apesar de afirmar que a conta de um eventual fracasso do governo vai para o colo dos militares, Mourão tentou minimizar o peso da farda na gestão de Bolsonaro.

Ele disse que o presidente é "mais político do que militar", pois está no Congresso há quase 30 anos e que os auxiliares no comando de pastas importantes, como o GSI (Gabinete de Segurança Institucional), com o general Augusto Heleno, e a Secretaria de Governo, com o general Santos Cruz, já estavam na reserva.

Reprovação menor

Os constantes contrapontos feitos por Mourão a Bolsonaro atenuaram sua imagem perante o eleitorado. A reprovação do vice é menor que a do titular, em parte porque ele é também mais desconhecido. Após cem dias de governo, pesquisa Datafolha mostra que 18% do eleitorado considera o desempenho de Mourão ruim ou péssimo, ante 30% da taxa de Bolsonaro.

Quando se separa o eleitorado por faixa de renda e escolaridade, a diferença se mantém. De modo geral, a avaliação do vice é melhor que a de Bolsonaro, e isso se deve também ao fato de o seu trabalho ser acompanhado menos de perto que o do presidente.

A maioria dos entrevistados (59%) não soube dizer quem era o vice-presidente da República, 37% acertaram o nome de Mourão e 4% erraram.

É por isso que, quando questionados, apenas 4% dos entrevistados não souberam avaliar o desempenho de Bolsonaro —e 18% se abstiveram em relação ao vice.

Os índices de ótimo/bom (32%) e regular (32%) de Mourão são similares aos de Bolsonaro (32% e 33%).

A pesquisa foi realizada presencialmente nos dias 2 e 3 de abril, com 2.086 pessoas de 16 anos ou mais, em 130 municípios. A margem de erro máxima é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

Entre a parcela mais rica da sociedade (mais de dez salários mínimos por família), Mourão tem 23% de reprovação, ante 37% de Bolsonaro.

Entre os mais pobres, de renda familiar de até dois salários mínimos, 34% avaliam que o desempenho do presidente é ruim ou péssimo e 20% dizem o mesmo do vice.

A diferença de 14 pontos se observa também na faixa dos que ganham de cinco a dez salários mínimos e oscila para 11 pontos entre as famílias de renda mensal média de dois a cinco salários mínimos.

Da mesma forma, aqueles com nível superior completo acham Bolsonaro pior que Mourão —o presidente tem 35% de reprovação no segmento, e o vice, 20%.

Dos eleitores que cursaram até o ensino fundamental, 31% consideram a atuação de Bolsonaro reprovável e 16% dizem o mesmo de Mourão.

No grupo de entrevistados com ensino médio completo, 26% reprovam Bolsonaro e 18%, Mourão.

Os resultados do levantamento ajudam a explicar o descontentamento da ala ideológica do governo com Mourão. Vocalizados especialmente pelo escritor Olavo de Carvalho, os ataques ao vice aumentam sempre que o general se mostra mais conciliador que Bolsonaro.

Em Boston (EUA), para a Brazil Conference, evento organizado por estudantes da universidade Harvard e do MIT (Massachusetts Institute of Technology), Mourão conversou com Mangabeira Unger, um dos principais conselheiros de Ciro Gomes (PDT), que, por sua vez, foi adversário ferrenho de Bolsonaro na campanha de 2018.

Mourão também se reuniu com representantes da comunidade brasileira em Boston. A iniciativa foi interpretada como uma resposta a Bolsonaro, que, três semanas antes, criticara os imigrantes. O presidente declarou à Fox News que “a grande maioria dos imigrantes em potencial não tem boas intenções nem quer fazer o bem ao povo americano”. Depois, ele se desculpou.

Depois de Bolsonaro dizer, recém-eleito, que transferiria a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, Mourão recebeu o embaixador da Palestina e negou que a mudança estivesse confirmada.

Ao contrário do presidente, que concordou com o chanceler Ernesto Araújo, segundo quem o nazismo era de esquerda, Mourão declarou que “de esquerda é o comunismo, não resta nenhuma dúvida”.

Além de especulações sobre as intenções de Mourão, tais contrapontos despertaram uma “simpatia desconfiada” de setores da esquerda —desconfiada porque o general tinha posições mais extremadas. Em 2017, por exemplo, defendeu intervenção militar para resolver a crise política.

Já no cargo, o vice mudou de direção. Defendeu que o aborto seja uma escolha da mulher e que a ida, afinal não realizada, do ex-presidente Lula (PT) ao velório do irmão era uma “questão humanitária”.

O Datafolha mediu essa nuance. Ainda que não seja amplamente positiva, a popularidade de Mourão entre eleitores que declaram preferir o PT e o PSOL é um pouco maior que a de Bolsonaro.

Eles estão mais descontentes com o vice que a média, mas a reprovação não chega perto da do presidente.

Entre os simpatizantes petistas, 34% consideram Mourão ruim ou péssimo —e 58% reprovam Bolsonaro. Entre os entrevistados que preferem o PSOL, 44% consideram Mourão ruim ou péssimo —e 84% reprovam Bolsonaro.

Mais da metade dos brasileiros não sabe quem é o vice

Apesar de menor reprovado que Bolsonaro, Mourão ainda é pouco conhecido. A maior parte da população brasileira não sabe quem é o vice-presidente.

Segundo pesquisa Datafolha, 59% não sabem dizer quem é o segundo na linha sucessória da Presidência, 37% acertaram o nome do general Hamilton Mourão e 4% erraram.


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