19/03/2024 - Edição 540

Brasil

Transplantada ou cardiopata?

Publicado em 11/04/2019 12:00 -

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Desde o começo do ano, a rotina dos médicos e enfermeiros que trabalham em entidades que prestam serviços de saúde para a população indígena é marcada por escolhas. “A gente está trabalhando com a escala do que é mais grave”, me disse um dos profissionais, sob a condição de anonimato. “O que isso significa? Que se eu tiver uma criança indígena em recuperação de transplante e uma outra com cardiopatia congênita grave, mas que está bem, vou atender a transplantada.”

Em janeiro, o Ministério da Saúde decidiu paralisar os contratos da Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, com cinco das oito entidades conveniadas que prestam atendimento à população indígena em todo o país. No mês passado, as outras três ONGs tiveram seus pagamentos suspensos.

Com isso, 13 mil trabalhadores – 57% deles são indígenas – estão com os salários atrasados. Quase oito mil não receberam nenhum pagamento neste ano, segundo o Sindicato dos Profissionais e Trabalhadores da Saúde Indígena, o Sindcopsi. Com o apagão, 870 mil indígenas que vivem em aldeias pelo Brasil estão desassistidos – população equivalente à do Amapá.

“É uma desassistência coletiva”, diz Carmem Pankararu, indígena e presidente do Sindcopsi.

Os indígenas já são a população mais afetada com a debandada dos cubanos do programa Mais Médicos – dos 372 profissionais que atendiam essa população, 301 eram cubanos. Depois da saída dos cubanos, a maioria das vagas não ocupadas por brasileiros está nos distritos indígenas, isolados e distantes dos grandes centros.

“Esse prejuízo é irreversível. É como estar na cidade grande e não ter médico. Ou trabalhar muito e não receber salário, comprometendo o sustento da sua família. A gente, que é pai ou mãe, vai morrendo por dentro”, me disse o cacique Yssô Truká, da terra indígena Truká Tapera, em Pernambuco. Na aldeia dele, mulheres não têm feito pré-natal e crianças doentes estão sem acompanhamento de pediatra.

Na terra indígena Barra Velha, extremo sul da Bahia, a falta de equipes de atendimento já causou uma morte. Era um rapaz que trabalhava em uma plantação de mamão aplicando agrotóxicos sem equipamentos de proteção. “Adoeceu porque mexia com veneno e morreu porque não teve atendimento a tempo”, diz o cacique Guaru Pataxó. O homem, de 35 anos, deixou deixou três filhos.

Os pataxós estão desassistidos desde que os médicos cubanos deixaram o Brasil. Agora, porém, segundo o cacique, nem as equipes de saúde, compostas por profissionais de áreas distintas, chegam na aldeia. Além dos atrasos nos pagamentos, há falta de recursos para abastecer a frota de veículos e comprar medicamentos. Algumas equipes não têm nem recursos básicos como soro fisiológico e material para curativos.

O enfermeiro Janner Paiva, que atende 11 comunidades indígenas em Roraima, está há quatro meses sem salário e sem recursos para comprar o rancho, a comida que ele e a equipe levam para permanecer 18 dias seguidos de trabalho nas terras indígenas. “Ontem entrou uma dentista aqui na terra indígena trazendo um frango e uma cartela de ovos, porque era tudo o que ela conseguia comprar”, diz. “A gente não consegue parar de atender, mesmo sem receber, porque senão eles (os indígenas) ficam desassistidos.” Graças à ajuda financeira de familiares, ele diz, os dois filhos não estão passando fome.

Em março, durante a 102ª Reunião da Comissão Intersetorial de Saúde Indígena, em Brasília, um representante da Sesai fez as contas do apagão: um indígena morreria a cada quatro horas.

Trabalhadores e indígenas denunciaram o que chamam de “descaso” ao Ministério Público do Trabalho e ao Federal e à Câmara dos Deputados, e fizeram manifestações em todo o país. “Se todos nós brigássemos pelo SUS como os indígenas brigam, teríamos um SUS diferente”, diz uma funcionária do Ministério da Saúde. Como outros servidores e médicos ouvidos pela reportagem, ela pediu anonimato, por medo de retaliação.

‘Perigosa associação’ de ONGs

Na saúde indígena, os pacientes não vivem nos centros das cidades. Por isso, os profissionais de saúde permanecem dentro das aldeias por até 90 dias corridos, sem volta para casa. Exames laboratoriais também entram na conta da Sesai. Quando o estado não é capaz de atender o problema de um paciente, a secretaria assume os custos da ida e da volta para casa, organiza o atendimento dos pacientes de média e alta complexidade e a estadia deles em uma das casas de apoio espalhadas pelo território.

O caso dos profissionais que precisam escolher entre uma criança transplantada e uma cardiopata é o retrato do dia a dia do atendimento feito sem dinheiro suficiente. “Imagine o tanto de sofrimento causado a esses pacientes de forma imediata por uma desassistência dessa natureza”, me disse um funcionário do ministério. Com a paralisação, os 360 polos-base ficam impedidos de marcar consultas de alta e média complexidade para pacientes por falta de médico. Também não há recursos para pagar deslocamento ou mandar equipes.

A assistência é prestada por oito entidades conveniadas ao Ministério da Saúde. Mas, neste ano, o governo decidiu paralisar os pagamentos para averiguar possíveis irregularidades. Em março, o ministro Luiz Henrique Mandetta disse que o setor sofre com “fraudes endêmicas”. “A saúde indígena como um todo sofre uma perigosa associação entre ONGs, seus funcionários e prestação de contas”, disse, citando como exemplos alegados conluios em alugueis de carros, funcionários fantasmas e licitações com valores inflados.

Segundo fontes ouvidas pela reportagem, mais de 100 denúncias de corrupção partiram da própria Sesai.

Yssô afirma que o Fórum de Presidentes do Conselhos Distritais de Saúde Indígena encaminhou encaminhou uma solicitação para a Controladoria Geral da União pedindo que todos os processos relacionados à assistência de saúde nos 34 distritos indígenas afetados fossem auditados. “Se ele diz que tem irregularidade, também é do nosso interesse saber. Porque R$ 1 é desviado significa um impacto negativo para quem mais precisa de assistência”, ele diz.

A entidade também questiona os pedidos desencontrados da pasta, que arrastam a liberação dos contratos, e a maneira como foi a suspensão foi feita, afetando centenas de milhares de pessoas. Entre os contratos em reavaliação estão, por exemplo, os feitos pela Subsecretaria de Assuntos Administrativos, subordinada ao próprio Ministério da Saúde – e, portanto, às suas regras. Também há outros que já tinham sido aprovados pela pasta.

O ministro da Saúde é a favor da descentralização do atendimento à saúde indígena – chegou a cogitar a extinção da Sesai, tornando os municípios os responsáveis pela área, mas voltou atrás da decisão quando mais de 30 mobilizações eclodiram em todo o país. No dia 28 de março, o governo informou que decidiu, junto com lideranças indígenas, manter o funcionamento da Sesai e criar um grupo de trabalho para discutir a assistência e a fiscalização dos recursos.

“Os municípios não conseguem fazer. Imagine o sistema de saúde com mais pacientes, em território de difícil acesso que nem sempre corresponde a limites estaduais”, me disse um funcionário do Ministério da Saúde, sob a condição de anonimato.

Eu pedi uma entrevista com o ministro. Recebi, de volta, uma nota por e-mail. O texto, enviado pela assessoria do Ministério da Saúde, diz que 239 médicos brasileiros formados no exterior “foram encaminhados para as vagas disponíveis nos distritos sanitários indígenas”. O governo disse que há 119 vagas “com médicos em atuação” até março. E reconheceu que “o Ministério da Saúde passou por dificuldades jurídicas para solucionar o pagamento da prestação de serviços”, mas garantiu que os recursos para as entidades conveniadas foram autorizados.

Sindicato, trabalhadores e os próprios indígenas me disseram que isso não aconteceu. Ninguém recebeu o dinheiro. Em uma nota enviada ontem, o ministério voltou a culpar “dificuldades jurídicas”, mas garantiu que os recursos “estão em trâmites para liberação”.


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