23/04/2024 - Edição 540

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Bolsonaro encerra visita a Israel repetindo absurdo sobre nazismo

Publicado em 03/04/2019 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro encerrou sua agenda oficial em Israel no último dia 2. A visita de três dias, marcada por simbolismos e atos controversos por parte do brasileiro, deu início a uma nova fase nas relações entre os dois países e deixou países árabes descontentes.

O fim da viagem também foi marcado por polêmica. Bolsonaro se irritou com a imprensa, defendeu uma declaração passada em que havia elogiado um torturador da ditadura militar – O coronel Brilhante Ustra – e disse "não ter dúvidas" de que o nazismo foi um movimento de esquerda.

A fala contradiz o próprio museu visitado pelo presidente. Seguindo outros líderes estrangeiros que viajaram a Israel, Bolsonaro esteve no memorial Yad Vashem, em Jerusalém, um museu público em memória às vítimas do Holocausto.

A instituição define o nazismo como um movimento que partiu da direita. Em seu site, num trecho em que explica a ascensão do partido nazista na Alemanha, o Yad Vashem afirma que isso só foi possível graças ao "crescimento de grupos radicais de direita" no país.

A definição de nazismo como sendo de esquerda virou discurso oficial em Brasília com declarações recentes do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

A fala, dada em longa entrevista a um canal simpático à extrema direita no Youtube, repete um discurso que esteve em alta nas mídias sociais brasileiras durante as eleições, mas que jamais foi levado a sério por acadêmicos na Alemanha. A tese é tida como absurda e desonesta por acadêmicos e diplomatas europeus.

Em Jerusalém, questionado se concordava com a afirmação de Araújo, Bolsonaro afirmou: "Não há dúvida. Partido Socialista… Como é que é? Da Alemanha. Partido Nacional-Socialista da Alemanha."

Os atuais defensores do "nazismo de esquerda" costumam se basear no nome oficial da agremiação nazista, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP. A presença da palavra "socialista" revelaria a linha ideológica do regime. Historiadores internacionais de renome, porém, destacam que isso não passou de uma estratégia eleitoral para atrair a classe trabalhadora.

A declaração de Bolsonaro foi feita numa entrevista à imprensa ao fim de um encontro com membros da comunidade brasileira em Israel, no hotel King David, em Jerusalém.

Associar Holocausto à esquerda é falsificar a história, diz rabino

Para Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o diálogo inter-religioso, o nazismo foi uma ação da extrema-direita europeia, embora seu oposto, a extrema-esquerda, também tenha gerado catástrofes.

"O Holocausto foi um produto do nazi-fascismo, movimentos da extrema-direita europeia. Dizer que a Shoá [Holocausto] foi criada pela esquerda é falsificar a história", diz Schlesinger.

"A extrema-esquerda também produziu catástrofes abomináveis, mas o assassinato de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial não foi uma delas", prosseguiu o rabino. 

O vice-presidente Hamilton Mourão também comentou o assunto. "Vocês têm dúvida disso?", questionou ele ao ser perguntado se o nazismo é de direita ou de esquerda. "De esquerda é o comunismo, não resta a mínima dúvida. Se a gente for olhar, sabe que sou um crítico contumaz desta questão de direita e esquerda. Eu acho que são ambos visões totalitárias", ressaltou.

Mourão afirmou que os dois regimes totalitários pregam o controle da população e o desrespeito aos direitos humanos. "Nazismo e comunismo são duas faces de uma moeda só, a do totalitarismo", acrescentou.

O presidente da Confederação Israelita do Brasil, Fernando Lottenberg, fez questão de enaltecer a mudança de postura do governo brasileiro em relação a Israel, mas também de colocar os pingos nos “is” da História.

“A viagem de Bolsonaro é importante pois corrige o viés anti-Israel que havia na política externa brasileira”, diz Lottenberg. “Mas o nazismo não foi de esquerda, foi de extrema direita” conclui.

Mantendo o clima nas redes

Não dá para dizer que a vergonha foi gratuita. Mais do que uma questão ideológica, a declaração tem razões pragmáticas ao alimentar seus seguidores para que mantenham a guerra cultural nas redes e a defesa de sua administração. Mas também conecta seu governo a outros de extrema direita pelo mundo. Sem falar na básica distração diante de uma administração que não conseguiu decolar e vive batendo cabeça e fazendo bobagem.

No ano passado, a Embaixada da Alemanha em Brasília foi chamada de comunista nas redes sociais por ela ter postado um vídeo explicando que o nazismo é um movimento de extrema-direita. Se não bastasse isso, nossos conterrâneos foram além, tentando explicar aos alemães que eles não entendiam muito bem do tema.

Muitos que "xingam" pessoas ou instituições com as quais não concordam de esquerdistas ou comunistas não compreendem o que isso, de fato, significa. Caso as soubessem um mínimo de História e também do que se passa à sua volta, poderiam criticar esses termos de forma embasada – e há mais críticas do que elogios a serem feitos. Porém, o que vemos é uma massa misturando inocência, ignorância, paranoia e má fé, guiada por grupos que se aproveitam politicamente do processo de transformar palavras em palavrões.

Não raro, muitos que chamam alguém de esquerdista acreditam que estão chamando-o de corrupto, ladrão, despudorado, assassino, ateu, invasor de propriedade. Em suma, o inimigo, aquele que vem de fora para destruir tradições e modos de vida. Praticamente, uma ação reativa de alguém perdido diante de um mundo grande e desconhecido. Despida de seu significado original, a palavra também se tornou um elemento de identificação. Ou seja, uma postagem chamando o nazismo de esquerdista imediatamente passa uma mensagem compreendida pelos demais membros do grupo, gerando conexão.

A mesma "sabedoria" que transforma o nazismo em esquerda também colocou na mesma categoria a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o The New York Times, a Rede Globo, o Facebook, o cantor e compositor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama e a deputada de extrema-direita Marine Le Pen nas eleições de 2018 no Brasil. A importância do "socialista" no Partido Nacional-Socialista da Alemanha é tão grande quanto o "democrática" no República Popular Democrática da Coreia (do Norte).

Bolsonaro não possui variáveis explicativas decentes para sustentar suas declarações, mas ela resistem mesmo assim. A ideia de pós-verdade, quando a emoção ao transmitir um fato é mais importante para gerar credibilidade em torno dele do que provas de sua veracidade em si, segue pertinente. A partir de determinado ponto, a verdade se desgarra da realidade, que passa apenas aquilo com a qual a pessoa concorda. Morre a razão, sobrevive a crença. O que para alguns vale bem a pena, pois, em nome dessa crença, muitos vão até as últimas consequências, matando e morrendo.


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