20/04/2024 - Edição 540

Poder

Mulheres do campo na mira da reforma da Previdência

Publicado em 29/03/2019 12:00 -

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Atualmente, trabalhadores rurais que trabalham sozinhos ou em regime familiar são considerados segurados especiais e não precisam contribuir para a Previdência Social. Para se aposentarem, precisam ter idade mínima de 55 anos, se forem mulheres, ou de 60 anos para os homens, além de comprovar 15 anos de trabalho no campo.

O que parece fácil se comparado às exigências feitas aos trabalhadores urbanos tem se tornado um problema cada vez maior para a maioria dos trabalhadores rurais, pois reunir os documentos que comprovem a atividade no campo está cada vez mais difícil, principalmente para as mulheres.

Entre os motivos são a alta informalidade no trabalho rural, a precária organização contábil no campo e a sazonalidade das atividades – muitos trabalhadores migram para a cidade nos períodos entressafras. 

A reforma da Previdência Social proposta pelo presidente Jair Bolsonaro, como está hoje, dificultaria ainda mais a situação.

Segundo a advogada especializada em previdência social Daiane Ramiro Nakashima, o INSS nega com cada vez mais frequência a concessão de aposentadoria rural por não aceitar os documentos apresentados pelos lavradores.

"Uma década atrás era mais fácil comprovar o trabalho no campo, mas, nos últimos cinco anos, o INSS se tornou mais rígido, principalmente para as mulheres", diz Ramiro Nakashima. Antes, uma certidão de casamento que tinha 'lavrador' como ocupação do marido já bastava como prova material para a mulher. "Hoje, não é mais assim."

Muitos documentos das mulheres rurais, como certidão de casamento, título eleitoral e certidão de nascimento dos filhos, costumam informar que elas são "do lar", quando, na verdade, trabalham como lavradoras, assim como seus maridos.

"Desde 2008, eu atendi somente uma mulher rural que tinha a certidão de casamento informando que ela era 'lavradora'. Eu até brinquei na época: 'Esse documento é uma relíquia!'", diz Ramiro Nakashima.

O texto apresentado por Bolsonaro ao Congresso prevê a elevação do tempo mínimo de trabalho no campo de 15 para 20 anos. "Se já está difícil comprovar 15 anos de trabalho, imagine 20", afirma Ramiro Nakashima, que trabalha com pedidos de aposentadoria rural no centro oeste de São Paulo, uma região onde a agropecuária e a agricultura familiar são fortes.

"A atual proposta de reforma da Previdência é uma das mais marcadas pela intensificação das desigualdades de gênero", afirma o professor de Direito previdenciário Marcus Orione, da USP. Para o jurista, de todas as trabalhadoras, a rural foi a mais penalizada, pois o texto apresentado por Bolsonaro eleva a idade mínima da mulher rural de 55 para 60 anos e a equipara aos homens do campo.

Segundo a imprensa brasileira, o governo já admite recuar da cobrança previdenciária obrigatória dos trabalhadores rurais e do aumento no tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos. Mas a ideia seria manter o aumento da idade mínima das mulheres de 55 anos para 60 anos.

Orione destaca que, no caso do trabalhador urbano, não houve equiparação de idades entre homens e mulheres, o que ele vê como uma contradição da proposta. "Dependendo da interpretação constitucional que se der a essa disposição, homens e mulheres passariam a ser tratados 'formalmente' como iguais no ambiente rural, enquanto a própria reforma, na perspectiva urbana, não os entende como 'materialmente' iguais", analisa o professor.

Por causa da dificuldade para reunir documentos que sejam aceitos pelo INSS, um processo de pedido de aposentadoria rural pode durar dois anos, enquanto que um processo urbano não chega a um ano. O processo da última cliente rural de Ramiro Nakashima durou três anos. "Entramos com o pedido de aposentadoria quando minha cliente fez 55 anos. O INSS só concluiu o processo este ano, quando ela já estava com 58 anos."

Para a advogada, outro ponto importante que a proposta de reforma da Previdência Rural desconsidera é a desigualdade de poder no campo, em que as mulheres são minoria na titularidade das terras. O mesmo ocorre com os dados bancários. Segundo Ramiro, é comum a mulher rural não possuir nem mesmo conta corrente em seu nome e, quando tem, os pedidos de crédito especial rural são feitos no nome do marido. "Fica a impressão errônea para o INSS que somente o homem trabalhou", explica.

De acordo com uma pesquisa da ONG Oxfam, pelo menos 87% dos estabelecimentos rurais de todo o Brasil são controlados por homens, e 94% da área rural brasileira está no nome de proprietários homens. Não ter a titulação das terras ou propriedade rural em seus nomes, segundo Ramiro, dificulta ainda mais a tarefa de comprovar o trabalho das mulheres no campo.

Uma pesquisa de 2018, divulgada pela Oxfam e feita com famílias rurais no Rio Grande do Norte, revelou outra desigualdade no campo: enquanto os homens gastaram 11 horas por semana com trabalho doméstico e cuidados familiares, as mulheres gastaram 79,7 horas semanais. Além de fazer comida, cuidar das crianças, limpar a casa, lavar e passar, o trabalho doméstico feminino no meio rural também envolve as tarefas de buscar água e lenha.

"Com jornadas duplas, triplas, as mulheres devem ter idades diferentes e menores que os homens para se aposentarem. Temos que considerar que, no Brasil, não existe como na Alemanha, por exemplo, uma série de proteção aos filhos que fazem com que a maternidade e a paternidade sejam compartilhadas de forma mais equilibrada", defende Orione. "A distinção no momento da aposentadoria é fundamental para reparar essa injustiça da divisão sexual do trabalho."

Ramiro Nakashima argumenta que muitas mulheres rurais perdem a capacidade laboral mais cedo devido a doenças decorrentes das condições de trabalho. "Tive uma cliente que era visível que ela passou a vida exercendo um trabalho penoso. Aos 55 anos, ela já tinha muitas dores musculares e andava com muita dificuldade de tanto agachar e carregar peso. Mesmo assim, o INSS negou o pedido de aposentadoria dela. Mas concedeu ao marido."

As mulheres do campo só conquistaram o direto à aposentadoria em 1988. "Mas elas ainda lutam pelo reconhecimento do seu trabalho. A dificuldade de comprovar os 15 anos de dedicação rural não é só burocrática, mas também porque o trabalho feminino é visto como um não trabalho, um complemento ao trabalho do homem", afirma a educadora popular Sonia Coelho, porta-voz da Marcha Mundial das Mulheres.

Coelho afirma ter constatado um empobrecimento das mulheres no campo desde a aprovação, em 2016, da Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos investimentos públicos em saúde, educação e combate à violência.

"Programas que beneficiavam diretamente as mulheres rurais e contribuíam para a construção da autonomia econômica delas estão sendo descontinuados", diz Coelho. "É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos e do Programa de Alimentação Escolar. Através deles, muitas mulheres vendiam sua produção diretamente ao poder público para abastecer hospitais, creches, escolas."

Além do BPC: oposição mira "maldades" a pobres na Reforma da Previdência

A promessa dos líderes do centrão de vetar tanto o endurecimento das regras da aposentadoria rural quanto as mudanças no benefício assistencial a idosos em situação de miséria na Reforma da Previdência, mais do que um troco pela falta de interlocução com o governo, mostra que muitos parlamentares não estão dispostos a ir para o sacrifício em nome de Jair Bolsonaro.

Deputados de partidos da oposição com os quais este blog conversou nos últimos dias afirmaram que devem priorizar críticas a medidas presentes na Reforma da Previdência que atingem outras camadas vulneráveis da população, além, é claro, de tentar barrar a previsão do regime de capitalização. As medidas mostrariam a contradição entre o discurso do governo de combate a "privilégios" e a retirada de proteção social. Segundo eles, a retirada das mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria especial rural já era esperado, pois seriam "bodes na sala" incluídos pelo governo para servir de negociação em algum momento. Momento que veio antes da hora devido à briga campal entre o presidente da República e o presidente da Câmara dos Deputados.

Há realmente pontos na reforma que impactam negativamente a classe média baixa e os pobres com mais renda do que aqueles que estão na faixa do BPC, em situação de miserabilidade.

Por exemplo, toda vez que um economista defende que viúvas e órfãos possam receber pensões menores que um salário mínimo por mês, um panda comete suicídio na China. Quando o governo explica que alguém que ganha dois salários mínimos e contribui por 20 anos vai receber uma aposentadoria no valor de 60% da média salarial e não mais 90%, como é hoje, um elfo tem um infarto fatal em alguma floresta da Nova Zelândia. E se algum especialista diz que é uma boa ideia subir o mínimo de contribuições mensais de 180 para 240 para que pobres possam se aposentar, ignorando o alto índice de informalidade, um pônei quebra a perna em uma fazenda do Kentucky.

Sem falar que a defesa de que mulheres da economia familiar rural se aposentem na mesma idade que os homens (60 anos), sem a diferenciação que ocorre em outras categorias, tem matado muito urso polar, daqueles branquinhos, bem fofinhos, de desgosto.

O ministro da Economia, Paulo Guedes afirmou, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, nesta quarta (27), que seu trabalho é pragmático e não ideológico. No fundo, ele sabe que isso é bobagem. O liberalismo que ele empunha é uma ideologia como qualquer outra, uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na vida individual e coletiva.

Discursos econômicos são craques em se afirmarem neutros quando, na verdade, não são. Em defender que é lógico afirmar que o trabalhador deve decidir se quer menos direitos e emprego ou todos os direitos e desemprego, que é racional a redução de investimentos em setores básicos como educação e saúde ou que é natural dizer que o princípio da solidariedade, previsto na Constituição Federal de 1988, ajudou a quebrar o país e que, por isso, é necessário retirar proteção social aos mais vulneráveis para fechar as contas.

Na mesma comissão, ele disse que se não contar com apoio do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional pode voltar para casa, pois tinha uma vida antes de tudo isso. Lideranças partidárias discutem como blindá-lo de seu próprio governo, que conta com um líder que parece tomar gosto em atear fogo em seu país para poder tocar lira aos seus seguidores nas redes sociais.

É fundamental respeitar ministros racionais, como Guedes, ainda mais quando figuras como Ernesto Araújo e Ricardo Vélez provocam vergonha alheia em audiências públicas por onde passaram. Os alemães têm uma palavra para isso – fremdschämen. Agora seria um bom momento para cunharmos a nossa também.

Mas antes de blindá-lo, os parlamentares deveriam procurar proteger os trabalhadores mais vulneráveis que se aposentam com pouco dinheiro, mas muito esforço. Eles precisariam ser ouvidos, mas, ao contrário do que fazem grandes empresários, não podem organizar jantares, grandes eventos e visitas de cortesia a Brasília.


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