25/04/2024 - Edição 540

Poder

Após manobra na Câmara, governo já admite concessões na Previdência

Publicado em 29/03/2019 12:00 -

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Diante da crise na articulação do governo para aprovar a reforma da Previdência no Congresso, a equipe econômica já prevê fazer concessões. Segundo técnicos do governo, haverá duas importantes modificações na proposta: uma que diz respeito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido a idosos e deficientes da baixa renda, e outra, a trabalhadores rurais.

A decisão foi tomada depois que o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, se reuniu com bancadas e ouviu dos parlamentares que a reforma não passará no Congresso se esses dois pontos não forem alterados .

No caso do BPC, o benefício continuará como é atualmente. Será retirado da reforma o pagamento de um auxílio no valor de R$ 400 para pessoas a partir de 60 anos de idade. Pela proposta, esse valor só chegaria a um salário mínimo a partir dos 70 anos. Hoje, o benefício corresponde a um salário mínimo já a partir dos 65 anos. Contudo, os técnicos querem manter na reforma um artigo para evitar fraudes. Ele veda a concessão do BPC para quem tem renda, ainda que seja informal, e patrimônio.

De acordo com estimativas da equipe econômica, as mudanças no BPC teriam um impacto de R$ 30 bilhões nas contas públicas em dez anos. Um dos argumentos dos técnicos para mexer nesses benefícios é que não é justo que alguém que nunca contribuiu para o sistema receba o mesmo valor pago a um trabalhador que passou anos recolhendo para a Previdência.

O governo também vai recuar da cobrança previdenciária obrigatória dos trabalhadores rurais. Além disso, o aumento no tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos deverá ser retirado da proposta.

No entanto, também com intuito de inibir fraudes e aposentadorias precoces na área rural, a ideia é manter o aumento da idade mínima das mulheres de 55 anos para 60 anos, mantendo a mesma exigência feita para os homens que trabalham no campo. A projeção é que esta medida também pode gerar uma economia de quase R$ 30 bilhões em dez anos.

Impacto mantido em R$ 1 tri

Ao fazer essas concessões, o governo ainda mantém um impacto para os cofres públicos de pouco mais de R$ 1 trilhão em dez anos. O montante oficial estimado é que a reforma traga um alívio fiscal de R$ 1,164 trilhão.

Como as negociações ainda não começaram oficialmente, os técnicos reconhecem que há risco de desidratação da reforma na comissão especial que vai analisar o mérito da matéria. O texto ainda está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, que decidirá somente sobre a sua admissibilidade e sequer teve um relator designado.

Os partidos que declararam apoio à reforma também foram contra a retirada da Constituição de vários itens relativos à Previdência. A reforma retira da Carta praticamente todas as regras de aposentadoria, permitindo que o assunto seja tratado em leis complementares, que são mais fáceis de serem aprovadas.

Para vencer as resistências a esse item, a ordem é trabalhar duro no convencimento para mostrar que a situação brasileira “é uma jabuticaba amarga”, resumiu um interlocutor. De acordo com essa fonte, não faz sentido manter no texto constitucional idade mínima de aposentadoria e regra de cálculo do benefício, por exemplo, porque o processo demográfico e o mercado de trabalho são dinâmicos.

A PEC permite, entre outras medidas, o aumento da idade mínima de aposentadoria (65 anos para homens e 62 anos para mulheres). Ela poderia subir de acordo com a expectativa de sobrevida (quanto tempo a pessoa vive depois da aposentada) por ato administrativo do governo. O texto também retira da Constituição a obrigatoriedade para que a União revise salários e benefícios anualmente.

Líderes retiram "bode da sala", mas ficou um gambá

Líderes de partidos que representam a maioria dos deputados federais defenestraram as mudanças propostas pelo governo Bolsonaro para o benefício assistencial a idosos em situação de miséria e para a aposentadoria dos trabalhadores rurais da economia familiar.

Poucas coisas são tão negativas para a sociedade quanto deixar idosos pobres ao relento, no campo e na cidade. Essas alterações eram encaradas como "moeda de troca", "gordura para queimar" e, claro, "bode na sala" – daqueles bem fedorentos, do tipo que todo mundo fica tão aliviado quando são retirados que esquece dos outros problemas.

Determinados políticos, economistas e formadores de opinião merecem, aliás, o Oscar de melhores atores e atrizes coadjuvantes. Pois prefiro acreditar que foram gênios da interpretação a aceitar que há pessoas que defendem realmente que dificultar benefícios assistenciais e aposentadoria especial a gente pobre e miserável é a saída para o nosso buraco fiscal.

O governo Bolsonaro propôs que a idade mínima para que idosos em condição de miserabilidade possam receber o salário mínimo mensal do Benefício de Prestação Continuada (BPC) passe de 65 para 70 anos. Em contrapartida, quer desembolsar uma fração desse total – R$ 400,00 – dos 60 aos 69 anos. E demanda dos trabalhadores rurais uma contribuição anual mínima de R$ 600,00 por família durante 20 anos, ao invés de apenas comprovar o trabalho no campo por 15 anos, como é hoje. Não leva em consideração que há safras que nem se pagam, fazendo com que a família dependa do Bolsa Família para sobreviver. 

O mais relevante dessa história, contudo, não é que os líderes prometeram vetar essas duas anomalias da Reforma da Previdência, nem que isso possa ter sido uma possível cutucada no presidente devido ao momento ruim com o Congresso. Mas que o governo federal insistiu nelas durante 36 dias, desde a apresentação da proposta ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mesmo sabendo que é mais fácil um bode passar pelo buraco de uma agulha do que ambas serem aprovadas pelo plenário em duas votações.

Se o mote da Proposta de Emenda Constitucional é dar uma paulada nos privilégios, não fazia sentido algum optar por incluir um sarrafo em quem nada tem – Temer também abraçou o bode e teve que recuar. Mas a inabilidade deste governo deixou o bicho fedorento fermentando na sala a tal ponto que ele impregnou cortinas, carpete, sofá. Mesmo fora, a percepção da população de que a reforma atinge os mais pobres só vai mudar mediante um grande esforço. Até porque, o bode deixou vários cabritos. E um gambá.

Por exemplo, a proposta de pagar pensões a viúvas e órfãos em valores menores que um salário mínimo. Ou o aumento da contribuição mínima de 180 para 240 meses (15 para 20 anos), que atinge especialmente a parcela da população que vive em alto grau de informalidade e pode levar 30 anos, na prática, para alcançar a carência. Esse pessoal, que está na pobreza, mas não na miséria, ficaria num limbo, uma vez que não é o público do BPC. A menos que empobreça ainda mais.

Não é só o presidente que tem sua passagem bíblica preferida. A dele é João, capítulo 8, versículo 32: "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" – no que pese estarmos todos esperando uma epifania sobre laranjais e nada. Particularmente, prefiro Eclesiastes, capítulo 1, versículo 2: "Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade". Pois, numericamente, contas podem estar certas. Mas a partir do momento em que a dignidade se resume apenas a um campo de uma planilha do ajuste fiscal é que a sociedade deu errado.

Bolsonaro & Sons já haviam afirmado que mudanças não podiam afetar trabalhadores braçais da mesma forma que aqueles que atuam em escritórios ou nivelar os mais pobres do interior do país aos demais. Eram declarações que lembravam que ele começou a carreira política representando interesses sindicais de soldados, cabos e sargentos. Quem acreditou na conversão liberal do presidente tem que tomar cuidado para não cair no golpe do trote da filha sequestrada.

Do ponto de vista do governo, é questionável a vantagem de ter defendido com tanto fervor esses dois pontos cujo veto foi hoje anunciado. Essa defesa, como se os cortes no BPC e na aposentadoria rural fossem fundamentais para o país sobreviver, ajudou a chamar a atenção de milhões de brasileiros pobres e deixá-los apreensivos com seu futuro, maldizendo seus representantes políticos pelas tais das mudanças. Os líderes, no final das contas, deram uma ajudinha ao governo ao retirarem esses pontos, mas deixaram outros que serão alvo de questionamento. Para resolver isso, agora, ao contrário do que disse Bolsonaro, a bola está com ele e sua capacidade (sic) de articulação política.

Enquanto isso, um gambá, esquecido na sala, observa tudo à distância. Não adianta maquiá-lo para vendê-lo como gato em propagandas na TV e nas redes sociais. O cheiro, no final das contas, entrega.

Dizem que se você chamá-lo de "capitalização", ele sorri.

Entenda como a reforma da Previdência aprofunda as desigualdades

Embora não tenha os votos suficientes no Congresso – e embora as últimas disputas entre aliados dificultem a tramitação do projeto -, o governo Bolsonaro promete aprovar a reforma da Previdência no primeiro semestre. Entenda o que está em jogo.

A destruição do pacto de 1988

Ajustar periodicamente as regras da Previdência é necessário. Países desenvolvidos o fazem sem destruir a proteção social. Aqui nem sequer se trata de alguma ‘reforma’ para ajustar. Na ausência de diagnóstico e de debate, procura-se impor transformações estruturais cujo propósito – não manifestamente declarado – é sepultar o pacto social de 1988 e destruir a Seguridade Social, transitando-se para o Seguro Social e para o assistencialismo.

A verdadeira reforma de Bolsonaro ainda está por vir

A proposta é uma nova peça do projeto ultraliberal em implantação, cujo único objetivo é introduzir diretrizes transitórias até que a verdadeira reforma seja feita por meio de dezenas de leis complementares, mais fáceis de serem aprovadas no Congresso.

Enquanto uma Emenda Constitucional exige o apoio de 308 deputados e 49 senadores, em duas votações em cada Casa, uma legislação complementar demanda 257 votos de deputados, em duas votações, e 41 de senadores, em uma votação. Portanto, busca-se apenas “desconstitucionalizar” as regras atuais, o que deve ser rechaçado com contundência. Caso contrário, mudanças futuras poderão ser feitas por atos normativos do Executivo e por Medidas Provisórias.

A “reforma” é a ventania que antecede a tormenta. O que é ruim pode ficar muito pior.

Regras duras para um mercado de trabalho frágil e inseguro

A proposta fixa regras severas para o Regime Geral da Previdência Social e desconsidera a realidade do mercado de trabalho. A População em Idade Ativa é composta de 170 milhões de brasileiros. Desse total, cerca de 40 milhões são adultos e estão fora da força de trabalho.

A População Economicamente Ativa contempla 105 milhões de trabalhadores, estando mais de 12 milhões em situação de desemprego (aberto) e cerca de 35 milhões trabalham sem carteira ou têm vínculo precário. Portanto, aproximadamente 90 milhões de brasileiros que já não contribuem terão mais dificuldade para cumprir as novas regras previdenciárias e, provavelmente, ficarão sem qualquer proteção na velhice. Em 2017, quase a metade dos trabalhadores ocupados recebia, em média, 747 reais por mês, 19,5% abaixo do salário mínimo vigente. O rendimento médio real domiciliar per capita era de 1.242 reais

Da Seguridade para o Assistencialismo

A “reforma” fixa regras excludentes para o regime geral:

  1. A aposentadoria integral será para uma minoria com capacidade de contribuir por 40 anos.
  2. A aposentadoria parcial, com valor rebaixado (60% da média de todas as contribuições) será inacessível para mais de 35% dos brasileiros, que nem sequer conseguem comprovar 20 anos de contribuição.
  3. O reajuste dos benefícios deixaria de ser corrigido pela inflação.
  4. A idade mínima de 62/65 anos poderá ser de 64/67 em 2033, pois sempre que a expectativa de sobrevida aos 65 anos se elevar um ano, a idade mínima também subirá.
  5. As regras de transição são curtas e severas: em 2028, os homens terão de acumular 105 pontos de idade e tempo de contribuição (acréscimo de 9 pontos em 10 anos), e as mulheres, em 2033, terão de somar 100 pontos (acréscimo de 14 pontos em 14 anos).
  6. Na Previdência Rural, a idade mínima da mulher sobe de 55 para 60 anos e o tempo de comprovação da atividade rural é substituído por tempo de contribuição durante 20 anos;
  7. Cria-se a aposentadoria por invalidez de primeira classe (acidente no trabalho) e de segunda classe (fora do trabalho), cujos valores de benefício são distintos (respectivamente, 100% e 60% da média de contribuições).
  8. Igualmente, institui-se a pensão por morte de primeira e de segunda classe (que pode ser inferior ao salário mínimo).
  9. A “reforma” restringe o acúmulo de mais de uma aposentadoria e pensão.
  10. O conceito de “proteção à maternidade” é alterado para “salário-maternidade”, o que pode restringir direitos.
  11. A “reforma” cria mais dificuldades para a aposentadoria de cidadãos com deficiência (a deficiência “leve” passa a exigir 35 anos de contribuição).
  12. Restringe-se o critério para o Abono Salarial (de dois para um salário mínimo), afetando mais de 20 milhões de brasileiros.
  13. A “segregação contábil” do Orça-mento da Seguridade Social pode tornar constitucional uma “contabilidade criativa” praticada desde 1989 – considera-se que a Previdência é financiada apenas pelos empregados e empregadores.
  14. Com isso, poucos conseguirão cumprir as novas regras e há o risco de uma corrida em massa para a proteção assistencial, que não exige contribuição. Como freio, a “reforma” ergue um muro de contenção fiscal, rebaixando o valor dos benefícios de prestação continuada para 400 reais.

A reforma aumenta a desigualdade

O governo estima uma economia de 1,165 trilhão de reais em uma década. Desse montante, 75,6% decorrem da subtração de direitos dos “privilegiados” do INSS (rural e urbano), do BPC e do Abono Salarial. Ou seja, dos mais pobres.

Qual a alternativa?

Além de crescimento econômico, é necessário buscar equidade na contribuição das classes, restringindo-se os privilégios concedidos ao poder econômico e às camadas de alta renda. É preciso que se desmonte, no Brasil, o maior programa mundial de transferência de renda dos pobres para os ricos.


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