19/03/2024 - Edição 540

Especial

Amnésia perigosa

Publicado em 28/03/2019 12:00 -

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O Estado de Direito no Brasil ainda é frágil, 34 anos depois de encerrada a ditadura, revela o ranking 2019 do World Justice Project, organização da sociedade civil destinada a promover o Estado de Direito no mundo e propagar suas ideias.

O relatório do WJP coloca o Brasil no 58º lugar entre os 126 países listados, com 0,53 pontos, em medição que vai de 1 (a melhor) a 0 (a pior, claro).

Os três primeiros colocados aproximam-se de 1: a Dinamarca, a primeira, fica com 0,90; depois vem a Noruega, com 0,89 e, em terceiro, a Finlândia, com 0,87.

Mesmo no âmbito da América Latina e Caribe, em que os arranhões ao Estado de Direito são frequentes, a colocação do Brasil é ruim: é o 15º dos 30 países do ranking. Fica atrás de Uruguai, Costa Rica, Chile, Argentina e de 10 pequenos países do Caribe.

A Venezuela, como era previsível, é a última colocada (126ª).

O ranking é elaborado com base em pesquisas em 120 mil residências e com 3.800 entrevistas com especialistas, em todos os 126 países.

O WPJ diz que seu relatório é “o mais abrangente conjunto de dados desse tipo e o único a depender principalmente de pesquisas primárias, medindo a adesão dos países às regras da lei da perspectiva de pessoas comuns e de suas experiências".

O ranking se baseia no que o projeto chama de oito fatores, a saber: limites aos poderes do governo; ausência de corrupção; transparência governamental; direitos fundamentais; ordem e segurança; aplicação efetiva das regras; Justiça civil e Justiça criminal.

Cada um desses fatores é subdividido em itens. No caso dos limites aos poderes do governo, por exemplo, o subitem “controles pelo Legislativo” é aquele em que a nota brasileira é mais elevada: 0,76, acima portanto da média geral de 0,53 e acima também da média nesse fator, que é de 0,56.

Como era previsível, ante todos os escândalos dos últimos muitos anos, o fator “ausência de corrupção” é um dos que mais puxam a nota brasileira para baixo. O país fica com 0,45 e cai para o 67º lugar nesse quesito, nove posições abaixo de sua colocação no ranking geral.

Mais baixa ainda é a nota para o fator “Justiça criminal”, definida como “o mecanismo convencional para corrigir ofensas e adotar ações contra indivíduos que praticam ofensas contra a sociedade". Leva em consideração todo o sistema judicial, incluindo a polícia, os advogados, os procuradores e promotores, os juízes e os funcionários das prisões.

A nota brasileira nesse item é de apenas 0,35, a mais baixa entre todos os oito fatores considerados. Com isso, sua posição nesse quesito é a 94ª, no fundo da tabela de 126 países.

Em dois dos subitens nesse fator, o Brasil quase tira nota zero. Fica com 0,18 em efetividade do sistema correcional e em não discriminação.

No capítulo “ordem e segurança", a nota brasileira é surpreendentemente a mais alta entre todos os fatores (0,65, bem acima da média geral de 0,53).

Mas há uma explicação para essa colocação, que contraria o senso comum sobre a segurança pública: o ranking dá nota máxima (1) para o subfator “ausência de conflito civil". Notas naturalmente bem mais baixas nos dois outros subfatores (“ausência de crime” e “ausência de reparação violenta”) puxam o país para uma posição muito ruim no ranking de “ordem e segurança": o 92º lugar.

Outra boa nota, igualmente surpreendente, vai para “transparência do governo". É de 0,62, também acima da média geral.

O advogado brasileiro Ordelio Azevedo Sette, que trabalha ativamente com o World Justice Project, disse que “a colocação do Brasil, nada elogiosa, a meu ver, é um retrato fiel de como hoje nos encontramos em relação a esses temas básicos da cidadania e dos direitos individuais que devem, em tese, ser assegurados pelo Estado".

Para Azevedo Sette, por muito que se diga que o Brasil é uma democracia consolidada, “na verdade, o país está muito distante da democracia plena e de poder ser considerado um país em que são dominantes as regras do Estado de Direito".

O oposto de democracia

Por mera coincidência, o ranking está sendo divulgado no momento em que, no Brasil, há intensa polêmica sobre a comemoração do golpe que instaurou a ditadura militar no país (1964-1985), o exato oposto do Estado de Direito.

O óbvio ululante parece não ser tão claro aos membros do Governo Bolsonaro. O presidente, que determinou que as Forças Armadas comemorem neste ano a data do golpe – 31 de março – disse em entrevista ao jornalista José Luiz Datena no programa Brasil Urgente, na TV Bandeirantes, que não houve ditadura no Brasil. Ele ainda afirmou que, assim como um casamento, todo regime tem alguns "probleminhas".

"Temos de conhecer a verdade. Não quer dizer que foi uma maravilha, não foi uma maravilha regime nenhum. Qual casamento é uma maravilha? De vez em quando tem um probleminha, é coisa rara um casal não ter um problema, tá certo?", arriscou.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado em 2014, afirmou que 423 pessoas foram mortas ou desapareceram no período que vai de 1964 a 1985. Segundo a comissão, que iniciou os trabalhos em 2012, os crimes foram resultado de uma política de Estado, com diretrizes definidas pelos cinco presidentes militares e seus ministros, e não abusos cometidos por agentes isolados. A comissão pediu a punição de 377 pessoas pelos crimes cometidos pelo regime militar.

Na entrevista, Bolsonaro minimizou o que ele próprio chamou de "probleminhas" ao longo do regime. 

"Agora, entre os probleminhas que nós tivemos, e que outros países tiveram, olha aí a Venezuela a que ponto chegou? Se esse pessoal que no passado tentou chegar ao poder usando as armas [se referindo a grupos de esquerda] e que hoje em dia grande parte tá preso ou sendo processado por corrupção, as mais variadas possíveis, como estaria o Brasil?"

Bolsonaro também afirmou durante a entrevista que o processo de entrega do poder pelos militares para os civis é um exemplo da inexistência de uma ditadura no Brasil durante o governo militar. "E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura".

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, reproduz o discurso oficial do bolsonarismo. Na quarta-feira (27), na Câmara dos Deputados, afirmou não considerar que houve um golpe no Brasil em 1964. "Não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida disso", afirmou o ministro.

O ministro respondia a uma pergunta do deputado Glauber Braga (Psol-RJ). Após a fala sobre a ditadura, o deputado Ivan Valente (Psol-SP) tentou insistir no assunto: "não teve ditadura no Brasil então?". Nesse momento, porém, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que presidia a mesa, encerrou o diálogo e pediu a Araújo que continuasse respondendo às perguntas dos parlamentares.

Defesa "sóbria"

A cúpula militar brasileira fez uma defesa contida do "papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da nação brasileira" durante o golpe de 31 de março de 1964. Não chama o regime instaurado há 55 anos de ditadura, mas celebra a "transição para uma democracia" a partir da Lei de Anistia de 1979.

O tom da ordem do dia assinada pelo ministro da pasta, o general da reserva Fernando Azevedo, e coassinado pelos três comandantes militares (leia aqui), é de reflexão histórica e está longe das "comemorações devidas" da data pedida pelo presidente por meio de seu porta-voz, o general da ativa Otávio do Rêgo Barros.

O texto retoma a narrativa adotada pelo alto oficialato brasileiro pós-1985, de que os militares agiram de forma constitucional ao depor o presidente João Goulart, atendendo aos desejos da sociedade ("população e imprensa"). Não trata o regime como ditadura, mas afirma que ele evitou "uma escalada rumo ao totalitarismo" que seria promovida pelas forças de esquerda que apoiavam Goulart.

O texto, de 11 parágrafos, gasta 6 deles traçando o contexto histórico pré-64, com as Forças Armadas combatendo tanto comunistas durante a Intentona de 1935 quanto o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial (1939-45). É lembrado que o conflito interno no Brasil se inseria na lógica da Guerra Fria, com os Estados Unidos disputando a hegemonia mundial com a União Soviética.

"Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano —a capacidade de aprender", escreveu Azevedo.

Ele também lembra o início da distensão do regime em 1979, com a Lei de Anistia, que garantiu a volta de esquerdistas exilados ao país e isentou ambos os lados de processos judiciais por atos ocorridos durante o regime —algo contestado por todos os lados hoje.

O tom geral contrasta com as frases de Bolsonaro e as postagens recentes de seus filhos. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), por exemplo, comentou o fato de a Revolução Cubana ser chamada assim, enquanto os eventos no Brasil são chamados de golpe.

Existe uma corrente de reexame da terminologia do que aconteceu em 1964, mas a diferença nesse caso é clara: as forças que instauraram a ditadura cubana em 1959 promoveram uma clássica revolução social, com mobilização popular contra o regime e seus elementos armados.Já no Brasil houve um golpe de Estado, com a instituição mais forte (os militares) forçando a troca de comando, com o apoio expressivo de setores da sociedade civil.

Mimimi

"Vamos voltar a fita um pouquinho: nós não estamos aqui para fazer um julgamento dos 21 anos do governo militar. Estamos aqui para fazer um comentário desse mimimi que está acontecendo porque o presidente Bolsonaro autorizou o ministro da Defesa a [deixar] que os militares comemorassem a revolução de 1964", disse o brigadeiro Marco Antonio Carballo Perez, que comanda o Clube da Aeronáutica.

O presidente do Clube Militar, general Eduardo José Barbosa afirmou que ninguém quer se regozijar por mortes, mas não se pode usar exceções do regime (fala de mortes e torturas praticadas pelos militares) como régua. Aliás, "tem que agradecer aqueles que tomaram a decisão em 1964", diz o general, que foi da mesma turma de 1977 da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) que o capitão reformado Bolsonaro (mas eles não conviveram, e do ex-colega Eduardo só lembra do apelido Cavalão, por causa do porte físico robusto).

Ele argumenta que, se hoje temos democracia, é graças à ditadura, porque a alternativa era correr o risco de ser engolido pelo comunismo que se via em Cuba, na Rússia, na China. "De 1985 pra cá tudo piorou", diz, afirmando que no país se vê hoje "um estado quase de anarquia". Hoje, diz, perigaríamos virar uma Venezuela.

O vice-almirante Rui da Fonseca Elia, presidente do Clube Navalm afirmou que o que os militares fizeram, fizeram "no sentido de evitar o mal maior". Ele diz que "pode ter havido tortura aquilo ou ali", mas que mesmo o conceito de tortura pode ser relativizado. Ela pode ser entendida como "técnica de interrogatório um pouco mais severo", segundo Elia.

A versão oficial do Estado brasileiro para a era militar absorve o que consta no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, de 2014: a ditadura matou ou desapareceu com 434 acusados de dissidência política e mais de 8.000 indígenas. "Chamo de Comissão Nacional da Mentira", afirmou o vice-almirante, que critica a composição do grupo convocado para investigar crimes da ditadura, todos, ao seu ver, mancomunados com o "outro lado".

O general Eduardo questionou por que a ex-presidente Dilma Roussef não foi presa, se a Comissão da Verdade realmente estava interessada em punir os dois lados. Em seguida, Elia questiona se Dilma foi mesmo torturada. Em 2001, nove anos antes de chegar ao Planalto, ela contou ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais que militares a submeteram a pau de arara, choques elétricos, espancamento e palmatória.

Eduardo chegou a defender o coronel Brilhante Ustra, homenageado pelo Clube Militar em 2015. Para o atual presidente da instituição, que é privada, ele "cumpriu a missão atribuída a ele, ninguém está falando da exceção".

O general faz pouco caso do Ministério Público Federal, que na terça (26) divulgou uma nota reservando "repúdio social e político" a eventuais celebrações do golpe militar e recomendando que as Forças Armadas não festejem a data.

"Se a gente fosse levar ao pé da letra o que o MPF recomendou, o MPF devia proibir estudo de história nas escolas. Quando a gente estuda qualquer tipo de conflito qualquer tipo de guerra a gente tá falando de matanças de coisa ruim de morte."

Para o brigadeiro Perez, há algo de peculiar na história do Brasil: é a esquerda quem teria monopolizado a narrativa sobre as duas décadas sob jugo militar. "No mundo inteiro quem conta a história são os vencedores. Só neste país os vencidos estão contando a história há 34 anos."

Divisão

A orientação para que quartéis celebrem o golpe de março de 1964 por meio de uma ordem do dia escrita e distribuída pelo Ministério da Defesa é fato inédito nos últimos 20 anos, desde a criação da pasta, em junho de 1999.

A decisão contenta setores das Forças Armadas que pretendem oferecer uma narrativa própria sobre o golpe, descrito como uma revolução no contexto da Guerra Fria, mas também incomoda militares que querem evitar uma agenda que divide o país.

“O Exército tem tanto a comemorar, a participação na Segunda Guerra, a presença na Amazônia, pautas que unem o país. O 31 de Março não, isso alimenta uma divisão falsa e que não interessa ao país, acho lamentável e também não interessa às Forças Armadas”, disse o ex-ministro da Defesa (2015-2016) Aldo Rebelo (SD-SP).

Para o ex-ministro, a decisão da Defesa de produzir uma ordem do dia unificada para todo país “já foi um gesto para atenuar a própria repercussão da celebração [que partiu do presidente]. Teve um certo efeito moderador porque seu conteúdo também valoriza a legalidade e a democracia”.

Oficiais não escondem o desconforto de ter que lidar com o assunto, embora defendam a possibilidade de apresentar a versão dos militares sobre 1964.

Em um simpósio para militares e jornalistas no último dia 27, no Comando do Exército em Brasília, o chefe da comunicação social, general de divisão Richard Nunes, apontou a “polarização absurda da sociedade” que atinge diversos países, incluindo o Brasil, como um dos três desafios no planejamento estratégico da comunicação da Força para este ano —os outros são o sistema de aposentadoria militar, que eles chamam de proteção social, e reestruturação da carreira e a manutenção da credibilidade de instituição de Estado.

A polarização, segundo Nunes, “preocupa a instituição porque nós também somos objeto” dela, e ela se estendeu "ao 31 de Março".

“Isso para nós é complicado porque a gente é tragado para o centro desse debate novamente, quando muitas vezes o que a gente quer é trabalhar para frente, vamos pensar nos projetos estratégicos. Agora, uma narrativa para uma instituição que participa da história do Brasil desde seus primórdios, ela é fundamental. Imaginar que seria diferente é absurdamente ridículo”, disse o general.

A polarização, segundo o chefe da comunicação, está ligada também “ao clamor” suscitado pela data de 31 de março de 1964.

“Tratar do 31 de Março ainda é, no Brasil, algo muito pungente. E há tentativas de construção de narrativas. Nós assistimos a uma narrativa predominar durante várias décadas e essa narrativa passou a ser contestada. É só isso. Houve uma narrativa que predominou goela abaixo. Para nós sempre foi, a gente olhava: ‘Não é essa a nossa narrativa, peraí. Não é bem assim que a gente analisa essa história’.”

A comemoração estimulada por Bolsonaro joga um holofote sobre um tema indesejado para muitos dos oficiais da ativa, que durante anos desenvolveram o discurso de que os eventos de 1964 pertencem ao passado e, por isso, não devem ser revisitados.

Essa posição está na essência da política desenvolvida pelas Forças Armadas ao longo das últimas três décadas, que contou com o apoio de todos os presidentes civis desde 1985, a fim de impedir a punição dos oficiais que praticaram crimes contra os direitos humanos durante a ditadura.

Dizer que os fatos pertencem ao passado e que, por isso, não precisam ser reexaminados foi determinante, por exemplo, na costura política que impediu a rediscussão da Lei de Anistia, de 1979.

Caso o STF tivesse ordenado a revisão da lei, militares poderiam ser punidos, condenados e presos e ter que prestar contas de cadáveres e militantes de esquerda até hoje desaparecidos, como ocorreu em outros países da América Latina.

A pedra de toque dos militares era a pacificação nacional. A tática funcionou muito bem desde a redemocratização, pois só pontualmente as discussões públicas sobre o golpe e a ditadura incomodaram os militares, como quando a Comissão de Desaparecidos resolveu, em meados dos anos 90, durante o governo FHC, indenizar a família do ex-militar e guerrilheiro de esquerda Carlos Lamarca (1937-1971). Ou quando a CNV (Comissão Nacional da Verdade) ganhou corpo a partir de 2012, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).

Na Justiça

Na última quarta (27), a juíza federal Irani Silva da Luz, da 6ª Vara Cível em Brasília, deu cinco dias de prazo para que a União e o presidente Bolsonaro se manifestem sobre a ação que tenta proibir os quartéis, em caráter liminar, de festejar o aniversário de 55 anos do golpe militar. ​

O processo foi movido pelo advogado Carlos Alexandre Klomfahs e o pedido é idêntico ao feito, algumas horas depois, pela Defensoria Pública da União: obrigar as unidades militares a se absterem de celebrar o movimento golpista, que deu início à ditadura militar.

Diante do prazo aberto pela juíza, é improvável que uma decisão seja tomada antes de domingo, aniversário do golpe.

A magistrada determinou a intimação dos requeridos para que se pronunciem em cinco dias, a partir da notificação. Segundo ela, é “imprescindível a oitiva preliminar dos réus, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa”.

A juíza ainda não despachou no processo aberto pela Defensoria Pública da União. Integrantes do órgão pediram a ela que decida com mais celeridade, antes do domingo, para que não haja “prejuízo ao objeto da ação”.

O defensor público Alexandre Mendes argumenta que a União já está ciente da ação, tanto que apresentou uma petição na terça (26) com pedido para se manifestar.

“Permitir que as comemorações anunciadas pelo Poder Executivo ocorram fere, frontalmente, o direito à verdade, especialmente em sua função de prevenção. Isto é: permitir que condutas exaltem tal período negro de nossa história nacional viola nossa memória coletiva e estimula que novos golpes e rupturas democráticas ocorram, atenta contra a democracia e contra o Estado democrático de Direito”, afirma a Defensoria Pública da União na ação civil pública ajuizada.

Na quinta (28), diante da reação da sociedade, Bolsonaro negou que tenha determinado ao Ministério da Defesa que fosse comemorado os 55 anos do golpe de 1964. "Não foi comemorar, foi rememorar, rever o que está errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro", tergiversou.

Ele comparou ainda a Lei da Anistia a um namoro. "Imagine que nós fôssemos casados e tivéssemos problemas e resolvemos nos perdoar na frente. É para não voltar naquele assunto do passado que houve aquele mal-entendido entre nós. A Lei da Anistia tá aí e valeu para todos. Inclusive o governo militar fez com a Lei da Anistia fosse ampla, geral e irrestrita. E alguns setores dentro do Parlamento não queriam que certas pessoas voltassem a Brasília porque atrapalhariam seus projetos. Lei da Anistia vamos respeitar", disse.

Reação

Bolsonaro é um presidente da República que admira e exalta o totalitarismo de direita. Além de exaltar a ditadura brasileira, Bolsonaro já fez elogios públicos – já durante o exercício da Presidência – a dois ditadores de países vizinhos: Alfredo Stroessner, do Paraguai, e Augusto Pinochet, do Chile.

No Brasil, a ditadura durou 21 anos, e foi marcada pelo golpe que apeou do poder um presidente, seguido do fechamento do Congresso e de prisões, tortura e morte de opositores ao regime. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, concluído no final do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, apontou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no Brasil.

Entre 1964 e 1985 foram punidas, com perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas —513 deputados, senadores e vereadores perderam os mandatos.

Em 1968, o AI-5 (Ato Institucional nº 5) inaugurou a fase mais repressiva dos 21 anos de ditadura militar. Nos primeiros dois dias de vigência da medida, presos políticos processados nas auditorias da Justiça Militar denunciaram mais de 2.200 casos de tortura.

Este é outro tema caro a Bolsonaro. O presidente já se disse favorável a tortura e exaltou a figura de um dos personagens mais tétricos da história do país, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período da ditadura militar no Brasil e apontado como autor de atos de tortura durante os anos de chumbo.

A postura de Bolsonaro e de parte das Forças Armadas gerou reações na sociedade. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e o Ministério Público Federal condenaram a “comemoração” do golpe. Em nota (leia aqui), a PFDC e o MPF afirmam que é “incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais”.

A nota é assinada por Deborah Duprat, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Domingos Sávio Dresch da Silveira, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Substituto, Marlon Weichert, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto, Eugênia Augusta Gonzaga Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Adjunta.

Sob o título “Em uma democracia, um golpe jamais pode ser festejado”, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) também divulgou nota oficial (leia aqui) que repudia as manifestações no sentido de se comemorar o golpe militar de 1964. Segundo a nota, “é inaceitável que um governo que se pretenda democrático exalte um período obscuro de nossa história, em que os mais comezinhos valores democráticos foram vilipendiados pelo regime imposto”. “A rigor, a Presidência da República faz apologia a um fato histórico que, na atual ordem constitucional, é descrita como crime imprescritível e inafiançável nos termos do artigo 5, XLIV da Constituição de 1988”, afirma a entidade.

Outro que se manifestou foi o presidente da Academia Paulista de Direito e diretor do Centro Internacional de Direitos Humanos de São Paulo (CIDHSP/APD), desembargador Alfredo Attié.

“Celebrar um golpe civil-militar contra a República e a Democracia é inadmissível. Celebrar tortura, sequestro e assassinatos cometidos por agentes do Estado, ainda mais grave. Seria o mesmo que comemorar a ascensão de ditadores, como Hitler, Salazar, Franco, Mussolini, Stalin, ao poder e elogiar seus crimes contra a humanidade. Qualquer ato de celebração do golpe de 1964 deve ser tomado pelo que é: incitação a crime contra a humanidade, atentado contra a Constituição e os Tratados Internacionais. Não se trata apenas de provocação política irresponsável, mas quebra da ordem jurídica, que sujeita infratores a persecução penal. O presidente da República, especialmente, sujeita-se a processo por cometimento de crime de responsabilidade”, afirmou.

“Comemorar a instalação de uma ditadura que fechou instituições democráticas e censurou a imprensa é querer dirigir olhando para o retrovisor, mirando uma estrada tenebrosa”, afirmou Felipe Santa Cruz, presidente nacional da OAB, em nota oficial.

“Temos apreço e respeito às Forças Armadas que têm como seu papel institucional garantir e preservar os poderes constitucionais. No entanto, sob a pretensão de exaltar o Exército Brasileiro, a comemoração do golpe de 64 celebra um momento em que o papel das Forças Armadas foi deturpado e corrompido”, manifestou-se a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais.

“Bolsonaro critica com razão os governos cubano e venezuelano por violarem os direitos básicos da população. No entanto, ele celebra ao mesmo tempo uma ditadura militar no Brasil que causou um sofrimento indescritível a dezenas de milhares de brasileiros. É difícil imaginar um exemplo mais claro de dois pesos e duas medidas”, argumentou José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da Human Rights Watch.

Partidos também se posicionaram contra a comemoração. Geraldo Alckmin, presidente do PSDB, disse em nota que elas são indevidas. "A história brasileira não pode ser reescrita por governantes de plantão", afirmou. "Tampouco se pode apagar a triste memória de tempos sombrios, que deixaram como saldo centenas de mortos ou desaparecidos."

Fogo “amigo”

A ordem para que unidades militarem celebrem o golpe de 1964 foi criticada até por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. O músico Lobão, que participou de palanques pró-Bolsonaro, divulgou um vídeo em que critica o período da ditadura. Ele discorda que tenha havido um golpe, mas afirma que o regime, "se não era totalitário, era autoritário".

"Era um período muito escroto, e se não tivéssemos esse período escroto, não estaríamos sofrendo agora todas essas mazelas", disse, criticando a censura e outras medidas tomadas na época, como a mudança do currículo escolar.  "A gente não pode glorificar expedientes sombrios."

Sem entrar no mérito da determinação, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) disse que o governo "precisa virar a página" e não governar "com a cabeça em 64". "É preciso dar um passo adiante! Se o governo e seus apoiadores não saírem de 64, não pararem de se pautar pelo que fez, falou e fala o pessoal do PT, o país estará fadado ao fracasso", afirmou Janaina nas redes sociais.

Falta projeto

“Bolsonaro deveria parar de agir como se comandasse o ‘Ministério da Verdade’ – apresentado no romance ‘1984’, de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que fosse contrária ao próprio governo – e começar a atuar como presidente da República. Para tanto, sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, fundamental para sua eleição, continua ligada e é usada para atacar violentamente a imprensa, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e qualquer um que critique ao invés de dizer amém”, reflete o cientista social Leonardo Sakamoto.

Não admira, portanto, a decisão de comemorar o golpe militar. Note que ele tem a nobre companhia do presidente do STF, ministro Dias Toffoli – que, em outubro do ano passado, disse que prefere chamar a data de "movimento de 1964".

Bolsonaro "considera que a sociedade reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que salvo melhor juízo, se tudo isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém", afirmou. Essa não é uma visão majoritária no país, mas agora é defendida pelo Palácio do Planalto.

Como escreveu o criador do Big Brother (o do livro "1984", não o reality): "quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado".

Reescrever o passado pela tinta do presente inclui ordenar o retorno da celebração em batalhões e quartéis da deposição de um presidente e da implementação de um regime que matou, torturou, estuprou, cassou, roubou (e muito), perseguiu e sumiu com pessoas, negando a democracia ao país por 21 anos. Os generais da reserva, da equipe de assessores próximos supracitada, teriam recomendado que essas comemorações fossem discretas. Mas quem manda é o capitão. E ele mesmo dará o tom disso, no Twitter, no próximo domingo.

Frei Tito, encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar no Brasil, deveria estar nesses festejos, mas infelizmente não será convidado. Afinal, o testemunho de sua tortura à Justiça Militar, completa 50 anos: "Sentaram-me na 'cadeira de dragão' [com chapas metálicas e fios], descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor. Da sessão de choques, passaram-me ao pau de arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei".

Garantir que o "golpe de 1964" fosse assim chamado demandou sangue, suor e a vida de muita gente. Indo contra o poder econômico, o poder político e o poder midiático que, em determinado momento, apoiaram o regime. Mas foi um processo vitorioso. Prova disso é que a própria Globo, que deu anuência à tomada de poder pelos militares, fez seu mea culpa com um famoso editorial intitulado "Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro". Nem revolução, nem movimento. Golpe.

Terraplanistas

A frase "Não houve ditadura" – afirmação feita pelo presidente da República na entrevista a José Luiz Datena é prima de "a Terra é plana". Pois, em ambos os casos, há muito já se abandonou o campo da razão. É uma crença que não se abre a questionamentos, daquelas que ignoram dados, fatos, depoimentos, desaparecimentos, corpos, ossadas, valas comuns. Tão desconexa da civilidade que mitifica carniceiros, como Brilhante Ustra, proclamado herói de Bolsonaro.

Na entrevista, ele disse que houve "probleminhas" nesse período. Podemos listar alguns desses "probleminhas" que ele não citou. Um deles foi a política de execuções sumárias de cidadãos brasileiros considerados adversários políticos, realizada pelo próprio governo.

Um documento secreto liberado pelo Departamento de Estado norte-americano e descoberto pelo professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, Matias Spektor, mostrou que o general Ernesto Geisel teria concordado com a continuidade dessa política em 1974, por exemplo. O ditador brasileiro, que governou entre aquele ano e 1979, teria orientado João Baptista Figueiredo – então chefe do Serviço Nacional de Informações e que seria seu sucessor – a seguir com os assassinatos que começaram no governo do general Médici. O memorando é assinado pelo diretor da CIA na época, William Colby, e relata uma reunião com Geisel. É citada a execução sumária de, pelo menos, 104 pessoas.

Talvez como fardo de uma história condenada a se repetir, primeiro como tragédia, depois como piada, o presidente Bolsonaro, em sua visita oficial a Washington neste mês, teve uma reunião com a diretora da agência de inteligência norte-americana, Gina Haspel, responsável por prisões secretas da CIA em que a tortura era usada como método de interrogatório, de acordo com registro de Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Os agentes adotavam técnicas como simulação de afogamento, injeção retal e privação de sono para extrair confissões de supostos terroristas.

Durante as sessões de tortura realizadas no 36o Distrito Policial (local que abrigou o DOI-Codi, órgão de repressão política da ditadura, na capital paulista), os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. Tente dormir tendo, ao lado, um ser humano sendo moído em paus-de-arara, eletrochoques, "cadeiras do dragão" e tantos outros métodos criativos aplicados por militares e policiais. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar. Mas o sistema não parava. O sistema nunca para por conta própria.

"O ódio. Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto, tanto ódio." Maria Aparecida Costa ficou presa naquele edifício durante a ditadura. Ela acha que talvez a resposta esteja na sensação de poder. Afinal, a tortura firmava-se como arma da disputa ideológica. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo, uma ideia.

Outro "probleminha" foi que essa metodologia de enfrentamento e a certeza do "tudo pode" continuam provocando vítimas. Diariamente, os mais pobres sofrem nas mãos de uma banda podre da polícia que adota táticas refinadas na ditadura a fim de garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (no campo). Sejam eles agentes em serviço ou fora dele, na forma de milícias urbanas e rurais. Milícias – que foram elogiadas e defendidas pelo presidente quando deputado federal e que possuem relações ainda inexplicadas com sua família.

Por fim, um último "probleminha". Nas redes socais, seguidores de Bolsonaro tentam provar que se regimes que se afirmavam à esquerda também mataram, então a ditadura não pode ser criticada – em uma argumentação indigente. Essa falta de maturidade é típica de um país que ainda engatinha quanto à pluralidade do debate público e vive em meio à herança não-resolvida do seu próprio período autoritário. Pois há espaço para criticar todas as ditaduras violentas, como já fiz várias vezes neste espaço.

Repetindo: alguns governos que se autointitulavam socialistas ou comunistas também mataram milhões. Do Khmer Vermelho, no Camboja, aos expurgos, na União Soviética, passando pelos fuzilamentos na China ou em Cuba, a História é farta em registrar o que esses grupos fizeram em nome de suas revoluções ou da perpetuação de poder. Da mesma forma, a História é rica ao demonstrar as montanhas de mortos em decorrência da ação colonialista escravagista de países europeus na América Latina, África e Ásia. Sem falar dos milhões que morreram em decorrência das políticas de expansão do capitalismo ao redor do mundo, via das grandes corporações. Quem realmente entende a dimensão dos direitos humanos, à esquerda e à direita, não compactua com nenhum desses processos.

As Forças Armadas de hoje não são as mesmas do período da última ditadura, da mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus líderes têm confirmado que o comando é e será civil. E, quase sempre, afirmado que o respeito às liberdades individuais e às instituições continuará, sem intervenções ou golpes. A ala militar do governo Bolsonaro é, aliás, muito mais moderada do que o próprio presidente, entendendo o momento histórico em que vivemos.

Como já disse aqui antes, espero que neste 31 de março, a História do silêncio e do sofrimento durante os 21 anos de ditadura, que moldou a forma como nos relacionamos com o mundo e com as outras pessoas, seja conhecida e contada nas escolas, na mídia, nas ruas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes. Talvez assim nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam, hoje, não veio de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

CONHEÇA OS FATOS DE MARÇO E ABRIL DE 1964 QUE LEVARAM AO GOLPE

O golpe militar começou no dia 31 de março de 1964 e se sacramentou na madrugada de 1º para 2 de abril, quando Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, declarou vago o cargo de presidente da República. A partir de então, o país permaneceu 21 anos sob uma ditadura. 

Para levar o ato adiante, os militares contrários ao governo de João Goulart (PTB), o Jango, contaram com o apoio de governadores, como Carlos Lacerda (Guanabara), grande parte do empresariado, os meios de comunicação, a Igreja Católica e uma expressiva base social.

Foram diversos os fatores que levaram à queda de Jango, como a oposição às reformas estruturais por parte dos setores conservadores, que temiam o avanço do comunismo. A quebra de hierarquia militar no episódio que ficou conhecido como revolta dos marinheiros, no Rio, também incomodou a cúpula das Forças Armadas. Pesou ainda a fragilidade do governo do político gaúcho, que praticamente não esboçou reação à investida dos militares. 

Embora Brasília já fosse a capital do país, o Rio de Janeiro foi o epicentro da crise.

Veja os principais momentos: 

MARÇO

13 

O presidente João Goulart participa de comício na Central do Brasil, no Rio. Entre as propostas defendidas por ele, duas, em especial, irritam os militares: nacionalização de todas as refinarias de petróleo e desapropriação de terras para reforma agrária 

19 

Contra as propostas de Jango, centenas de milhares saem às ruas em São Paulo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Organizadores da marcha pedem intervenção militar

20

O general Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, envia circular para alguns militares em que trata das ações de Jango como ameaças à Constituição 

25 

Cerca de 2.000 marinheiros e fuzileiros navais realizam celebração de uma entidade considerada ilegal. Uma ordem do ministro da Marinha, Sílvio Mota, para prender os líderes da resistência não é cumprida. Mota deixa o governo

30 

Em discurso para cerca de mil sargentos pró-governo no Automóvel Clube, no Rio, Jango volta a defender as reformas de base. É o seu último pronunciamento como presidente 

31 

3h da madrugada O general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, de Juiz de Fora (MG), inicia a movimentação de tropas em direção ao Rio 

Por volta de 22h Comandante do 2º Exército, em São Paulo, e ex-ministro da Guerra, o general Amaury Kruel pede a Jango que rompa com alguns nomes da esquerda que integram seu governo. O presidente nega o pedido, e Kruel adere ao golpe 

ABRIL

1º 

Por volta de 16h No Rio, cinco tanques do 1º Regimento de Reconhecimento Mecanizado deixam os arredores do Palácio das Laranjeiras, do governo federal, em direção ao Guanabara, da administração estadual

22h30 Depois de viajar do Rio a Brasília, Jango embarca para Porto Alegre. Dizendo evitar ações que levem a derramamento de sangue, ele praticamente não oferece resistência aos conspiradores

2

Madrugada Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, declara vago o cargo de presidente da República. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assume a Presidência interinamente

Com apoio do governador Carlos Lacerda, Marcha da Vitória, no Rio, reúne centenas de milhares de pessoas

Costa e Silva cria o Comando Supremo da Revolução, composto por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica), o vice-almirante Augusto Rademaker (Marinha) e ele próprio como representante do Exército 

No Recife, o dirigente comunista Gregório Bezerra é amarrado à traseira de um jipe e puxado por bairros da cidade. No fim do percurso, é espancado por um oficial do Exército com uma barra de ferro 

4

Jango desembarca no Uruguai em busca de asilo político

9

É decretado o Ato Institucional nº 1, que, entre outras determinações, suspende por dez anos os direitos políticos dos opositores ao regime. No dia seguinte, sai a primeira lista de cassados, que inclui 41 deputados federais

11

Castello Branco é escolhido presidente da República pelo Congresso Nacional 

ENTENDA AS CONSEQUÊNCIAS DA DITADURA MILITAR

Entenda abaixo como o presidente deposto, João Goulart, havia chegado ao poder, o argumento jurídico usado para justificar sua deposição, e como o governo inicialmente provisório do marechal Castello Branco se converteu em um regime ditatorial que comandou o Brasil até 1985, fazendo uso de dispositivos como os Atos Institucionais, que cancelaram eleições, fecharam o Congresso, censuraram a imprensa e perseguiram opositores.

Como o presidente João Goulart chegou ao poder? Jango, como era conhecido, assumiu a Presidência em 7.set.61, após a renúncia de Jânio Quadros. Eleito vice-presidente nas eleições de 1960, quando presidente e vice eram escolhidos em pleitos separados, o gaúcho do PTB (partido da esquerda getulista) recebera 36,1% dos votos.

Por que Jango assumiu primeiro sob um regime parlamentarista? Devido ao temor de militares e conservadores em relação a uma Presidência muito à esquerda, poucos anos após a Revolução Cubana (1959). Instalado após aprovação de emenda constitucional pelo Congresso, o parlamentarismo foi rejeitado em plebiscito realizado em 6.jan.63, quando 82% dos eleitores decidiram pelo presidencialismo. A próxima eleição presidencial estava marcada para 3.out.65.

Qual foi o argumento jurídico usado pelos militares em 1964? Após a movimentação de tropas do Exército iniciada em 31.mar, Jango passou o dia 1º.abr se deslocando pelo país para tentar angariar apoio. Na noite daquele dia, se dirigiu a Porto Alegre. Na madrugada do dia 2, o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República. Ele se baseou no artigo 85 da Constituição de 1946, vigente à época, segundo o qual “O presidente e o vice-presidente da República não poderão ausentar-se do país sem permissão do Congresso Nacional, sob pena de perda do cargo”. Jango, porém, estava em São Borja (RS). Ele só partiu para o exílio no Uruguai no dia 4.

O que previa a Constituição de 1946 caso a Presidência ficasse vaga? A Carta afirmava que “vagando os cargos de presidente e vice-presidente, far-se-á eleição sessenta dias depois de aberta a última vaga”. Se os cargos ficassem vagos na segunda metade do mandato presidencial —então de cinco anos—, como era o caso de Jango, a eleição sera feita “trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional”. “Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período dos seus antecessores”, dizia a Constituição.

Como se organizaram os militares? No dia 2.abr, consolidado o poder nas mãos dos militares, organizou-se o autoproclamado “Comando Supremo da Revolução”, formado pelo brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica), o vice-almirante Augusto Rademaker (Marinha) e o general Arthur da Costa e Silva (Exército). Essa junta, cuja nomeação não constava da Constituição de 1946, assinou em 9.abr o Ato Institucional nº 1 (AI-1), dispositivo também ausente da Carta vigente então. No mesmo dia, sob os auspícios do Comando, foi empossado interinamente na Presidência o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli.

O que estipulava o AI-1? O texto manteve a Constituição de 1946, mas alterou alguns pontos dela. Entre eles convocou o Congresso para eleger indiretamente o presidente da República em eleição a ser realizada dentro de dois dias, e deu o poder à junta militar —estendido ao presidente eleito indiretamente— de cassar por dez anos os direitos políticos de parlamentares federais, estaduais e municipais, “no interesse da paz, da honra nacional e sem as limitações previstas na Constituição”. Foram atingidos 102 nomes da oposição, entre deputados e líderes partidários. A eleição presidencial marcada para 3.out.65 estava mantida, com a posse do novo presidente prevista para 31.jan.66.

Quem o Congresso elegeu presidente? O marechal Humberto de Alencar Castello Branco, que recebeu 361 votos, ante três do marechal Juarez Távora e dois do ex-presidente e marechal Eurico Gaspar Dutra. Castello Branco assumiu a Presidência em 15.abr, com mandato previsto até 31.jan.66, de acordo com o AI-1, que expiraria nessa mesma data.

Castello Branco deixou o cargo na data estipulada? Não. As eleições previstas para 3.out.65 nunca ocorreram. No dia 27 daquele mês, o presidente assinou o AI-2, que cancelou as eleições diretas para a Presidência e instituiu o pleito indireto. Partidos foram extintos, à esquerda e à direita, com a permissão para apenas duas siglas: uma governista, a Arena, e uma de oposição, o MDB. O ato tambéu deu ao presidente poder para fechar o Congresso, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.

Quais atos se seguiram? O AI-3, em 5.fev.66, instituiu eleição indireta para governadores pelas Assembleias dos estados e a nomeação dos prefeitos de capitais por esses governadores. Em 7.dez.66, o AI-4 convoca o Congresso para discutir uma nova Constituição, alinhada com o regime militar. A Carta seria outorgada em 24.jan.67. O ato mais duro, porém, veio em 13.dez.68.

O que estipulava o AI-5? O quinto ato, assinado pelo marechal Arthur da Costa e Silva (que assumira a Presidência em 1967), resultou no fechamento imediato e por tempo indeterminado do Congresso Nacional e das Assembleias nos estados —com exceção de São Paulo. Além disso, o AI-5 renovou poderes conferidos ao presidente para cassar mandatos e suspender direitos políticos, agora em caráter permanente. Também foi suspensa a garantia do habeas corpus em casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e a economia popular.

Quais foram os efeitos do AI-5 na política? O AI-5 inaugurou a fase mais repressiva dos 21 anos de ditadura militar. Nos primeiros dois dias de vigência da medida, presos políticos processados nas auditorias da Justiça Militar denunciaram mais de 2.200 casos de tortura.

Foram punidas, com perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas —513 deputados, senadores e vereadores perderam os mandatos.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado em 2014, afirmou que 423 pessoas foram mortas ou desapareceram no período que vai de 1964 a 1985. Segundo a comissão, que iniciou os trabalhos em 2012, os crimes foram resultado de uma política de Estado, com diretrizes definidas pelos cinco presidentes militares e seus ministros, e não abusos cometidos por agentes isolados. A comissão pediu a punição de 377 pessoas pelos crimes cometidos pelo regime militar.

E os efeitos para a imprensa e a cultura? O AI-5 instituiu a censura prévia dos veículos de comunicação, cujas pautas deveriam ser aprovadas por censores do governo localizados nas Redações. Além da mídia, o cinema, o teatro, a música e a televisão também estavam sujeitas à censura prévia caso o inspetor do regime entendesse que a obra fosse subversiva ou atentava contra a moral e os bons costumes. O AI-5 só foi revogado em 1º.jan.79, quando entrou em vigor emenda constitucional aprovada no ano anterior pelo presidente Ernesto Geisel.

Amnésia perigosa

No último livro publicado ainda em vida, A memória, a história, o esquecimento, o filósofo francês Paul Ricoeur contrapõe ao que considera as dimensões positivas do esquecimento, seus efeitos potencialmente danosos como gesto forçado de apagamento da lembrança, o que ele denomina de “memória impedida”. É esse impedimento que fundamenta aquelas políticas que, como a nossa, confundem golpe com “movimento”.

“O equívoco não é apenas semântico, mas político”, afirma Clóvis Gruner, historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.

Desde a transição para a Nova República, há um obstáculo à efetivação de uma cultura democrática sensível, entre outras coisas, aos muitos riscos a que está exposta, e aos restos de uma ditadura que, mesmo institucionalmente, continuam a ameaçá-la.

As democracias modernas, nos ensina David Runciman, morrem por dentro. A eleição de líderes populistas autoritários, argumenta, é o primeiro passo para um caminho de difícil retorno: quando abrimos mão de nossos direitos e liberdades, ou simplesmente votamos insensíveis ao fato de que indivíduos e grupos serão forçosamente privados deles, porque parte de “minorias” ou porque vistos como “inimigos políticos”, estamos legitimando com nossas escolhas o fascismo em uma de suas muitas versões coevas, afirma Gruner.

Passados 55 anos, a eleição de Bolsonaro em 2018 e sua decisão de comemorar o golpe representam simbólica e, esperamos, provisoriamente, a derrota da democracia e a vitória da memória e do sentimento autoritário.


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