16/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

Memória e mitologia

Publicado em 24/01/2014 12:00 - Cristina Livramento

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Quando eu era criança, andava de bicicleta pelas ruas do Taveirópolis, às vezes, nos arriscávamos – eu e meus irmãos – a ir até os altos da Avenida Afonso Pena. No quintal, da casa onde minha vó morou e meus tios nasceram, eu aprendi a subir em árvore. Foi lá onde caí da mangueira depois de apertar uma lagarta num galho bem no alto. Nesse quintal tinha uma goiabeira que dava pra esquina, da João Pedrossian e a Albert Sabin, onde eu dormia ou lia algum livro. Esse tempo não existe mais. O que ainda existe são as histórias que escuto desde pequena contadas pela minha mãe.

Marisa Barreto dos Santos é filha do sargento radiotelegrafista da Aeronáutica, Thompson Elpídio Barreto dos Santos e Ila Martins dos Santos, do lar. Minha mãe nasceu em casa, na Rua Boaventura da Silva que, naquela época, se chamava 1º de Março. Depois a família se mudou para a casa, onde eu e meus irmãos moramos, na Rua João Pedrossian, antiga 26 de Setembro. As ruas tinham nome de datas, conta Eni Saavedra Fernandes, 68 anos, escrevente, amiga de infância e vizinha da minha mãe.

Mas não foram só os nomes das ruas que mudaram ao longo do tempo. Também não se vê moleques com estilingue matando galinhas dos vizinhos – isso é do meu tempo – para cozinhá-las escondido das mães na panela de pressão na fogueira improvisada. Assim como também ninguém mais se arrisca a fechar a rua, esticar uma rede e marcar uma partida de vôlei num sábado à tarde. Nenhuma daquelas árvores do quintal da minha vó sobreviveu ao tempo. Em constante agonia, o que ainda vive é a memória contada pela minha mãe e as amigas de infância do bairro.

Cresci ouvindo histórias de boiada e gansos brabos correndo pelo bairro, a luz da Base Aérea que assustou e – dizem – enlouqueceu muita gente, sobre trieiros e figueiras assombradas e serenatas. Parece, hoje, tudo muito distante e quase uma ficção. Olho para a minha filha, com quase 17 anos, cria também da região, sem nenhuma vivência parecida. Nem estilingues, nem pedaladas, muito menos boiada. Nossos filhos são filhos da tecnologia e do individualismo. A rua hoje tem outro significado.

Aurionides “Nide” Dantas de Almeida, 73 anos, professora aposentada, lembra que as crianças podiam brincar até tarde da noite na rua porque era tudo muito tranquilo. “Naquela época não tinha luz, então 9 horas já era bem tarde pra gente. A gente brincava pra valer.” A falta de luz e os pistoleiros, personagens vastamente conhecidos e difundidos na mitologia sul-mato-grossense, não eram empecilhos para a gurizada brincar pelo bairro, muito menos para voltar da escola à noite.

“Lembro uma vez, depois de ter perdido o ônibus, tive que voltar a pé pra casa e, quando já estava aqui perto, o ganso da Eni começou a fazer aquele barulho e meu cabelo foi ficando arrepiado. Você lembra, Eni?” Os gansos da Eni e a boiada braba eram os grandes pesadelos da minha mãe naquela época. Se o bairro hoje, no século XXI, em 2014, com tanta tecnologia, é uma total escuridão, dá pra se ter uma ideia do que era em 1950, quando nem tinha asfalto e tudo era praticamente mato. Qualquer coisa que se mexesse era assustador.

Nide conta que a boiada era um problema sério porque sempre tinha um bezerro no meio e as mães morriam de medo. As mães sabiam do risco eminente pelo barulho. “Era um escândalo por causa de vaca com bezerro ou quando a boiada estourava. Mamãe dizia, não joga sal no fogo senão vai estourar a boiada. A gente só de curioso, ia lá e jogava o sal no fogo.”

Violência

Quando era pequena, aqui no Taveirópolis, as histórias que davam medo não tinha bicho, era sobre gente. Na minha adolescência, começo da década de 90, já escutava história de estupros. Houve uma época em que sabíamos até onde eles moravam. As histórias de violência, na vida de Eni, Nide e Marisa, são eventos isolados. Assassinatos como vemos hoje, estupros, latrocínios e sequestros não faziam parte do cotidiano.

Uma história muito marcante foi o assassinato da filha de um homem muito querido pelos moradores da região. A filha desse senhor casou-se grávida com um açougueiro. O pai deixou de falar com a filha por conta disso. Um dia, o açougueiro fincou uma faca no peito da mulher, tão fundo, que o corpo e a faca ficaram presos no sofá da sala. O filho do casal, com cerca de seis anos na época, foi o primeiro a encontrar a mãe morta dentro da casa.

O pai da moça acompanhou a sequência do crime, entre perseguições e fugas do genro, durante três anos. Quando conseguiram prendê-lo, o sogro foi até o fórum e aguardou o comboio, com dois guardas, chegar com o criminoso. Polícia e assassino entraram no prédio e o pai da moça morta com arma branca atirou no genro, matando-o na hora.

Na delegacia, depois dos policiais contarem para o escrivão que substituía o delegado naquele dia, que por sinal era o pai de Nide, o pai reconhecia com muita tranquilidade a vingança. “Fiz, matei, pode me prender. Agora eu vinguei a minha filha. Mostrei praquele desgraçado que não se mata ninguém feito um porco, muito menos minha filha.”

Quando era pequena, aqui no Taveirópolis, as histórias que davam medo não tinha bicho, era sobre gente.

Parte da mitologia da minha geração, uma história que jamais será esquecida, é o assassinato do Wagner. Meu irmão mais novo e alguns amigos do bairro eram muito próximos dele. Era um rapaz bonito, inteligente e carismático. Ele acertava pendengas a hora que fosse. Se ninguém te contasse quem ele era, jamais pensaria que ele era um matador. Não falava palavrão, se vestia muito bem, era um cara simples e amigo de todos no bairro. Quase todos.

Prexeca, como era mais conhecido, foi pego desprevenido. Com um tiro na perna e outros seis pelo corpo, ele morreu enquanto andava sobre a calçada da Rua Boaventura com a mulher e filhos. Eu não fui ao velório, o que me arrependo muito, mas ouvi dizer que todas as velhinhas rezadeiras do bairro estavam lá rezando o terço, muitas mulheres bonitas e apaixonadas que faziam parte da história dele, e todos os amigos do bairro. Jamais vou esquecer o Prexeca, sentado no sofá do salão do Toni, rindo e conversando numa tarde quente qualquer.

A luz da Base Aérea

Marisa conta que tinha uma luz (ela cresceu ouvindo história sobre essa luz) que assustava muita gente. “Lembra daqueles dois da Aeronáutica que foram lá conferir a luz de perto? Um deles enlouqueceu depois daquilo”, diz Nide. “Ele teve que ser reformado”, conta minha mãe.

Conta a lenda que havia uma luz muito ofuscante que percorria a região da Base Aérea como se fosse um guarda noturno, desde o hangar – que existe até hoje dentro da Base e, às vezes, se esparramava pelo chão em várias partículas iluminadas.

Elas contam que os dois militares seguiram, em um jipe, em direção à luz até que ela veio de encontro a eles. Um deles desmaiou e o outro passou meses se recuperando porque dizia que era como se tivesse levado uma tremenda surra.

Marisa conta que Frei Gregório, padre franciscano que chegou em Campo Grande, em meados da década de 60, também se alvoroçou com outro padre para ver a luz. “Ele foi perguntar pro papai que vivia lá dentro, porque trabalhava na Base, e o papai falou pra ele – não é bom desafiar essas coisas. Minha vó – brava feito um cão – bradou entre dentes que era pra deixar de besteira que admirava um padre ficar de conversa besta de ir atrás de luz.

Mas Frei Gregório foi de jipe até o local. Foi e a luz também saiu correndo atrás dele e ele, é claro, deu meia volta e voltou correndo pra Igreja Nossa Senhora de Fátima, no Monte Líbano, onde ele morava. E de lá, que é uma região alta, ele ainda via a luz. Se você estiver prestando atenção é bem provável que esteja ouvindo o coração dele num galope desesperador.

Serenatas

A gente, por burrice ou ignorância, acredita que inventamos coisas. A ocupação da rua pelo artista não é da modernidade. A música, a literatura e o teatro fazem parte do cotidiano da cidade desde sempre e, segundo os registros históricos, já foi muito mais popular do que é hoje. Ave Aristóteles, Safo, Shakespeare!

Sem ir muito longe no tempo e na geografia, podemos dizer que as serenatas vividas pelas amigas de infância, no Taveirópolis, fizeram parte dessa poesia. Você consegue imaginar um gaúcho, sargento do Exército, na década de 60, no Mato Grosso do Sul, numa esquina qualquer desse mundaréu de meu Deus, entre gansos e boiada, figueiras e trieiros, tocando sax?

“Naquele tempo, os rapazes vinham fazer serenata na frente da casa da gente.” Nide conta que tinha mãe que jogava penico nos rapazes. “A minha colocava tudo pra dentro de casa, fazia bolinho de chuva, dava lanche”, conta Eni. “Se bobiasse, mamãe jogava água quente neles”, diz Marisa.

“Teve uma vez, um gaúcho, baixinho, que a gente conheceu ali no bar do Ventura, e ele se encantou pela a minha irmã, Eli. Só sei, menina, que uma noite o gaúcho tava encostado no muro na esquina – perto ali onde é o muro da hípica – fazia uma lua bonita, e ele tocou um Tema de Lara que era a coisa mais linda no sax.”

O bar do Ventura era ponto de encontro dos moradores da região e também motivo de pancadaria, madrugada afora, quando os filhos resolviam fugir e eram trazidos de volta para casa pelo pai ou pelo irmão mais velho. “Eu nunca apanhei porque nunca saía escondido da mamãe”, diz Nide.

O Taveirópolis sempre será pra mim a lembrança do quintal da casa da minha vó, a mesa cheia de doce de caju, banana e abóbora com cal que ela fazia.

Ventura é o sobrenome do dono do bar, uma espécie de secos e molhados, onde se vendia de tudo, até picolé. “Secos e molhados é quando era uma coisa melhorada, quando era tranqueira, a gente chamava de bolicho”, conta minha mãe. O bar do seu Ventura ficava na quadra da caixa d’água, do bairro, na Avenida Tiradentes.

Nide e as irmãs eram proibidas de ver quem estava fazendo a serenata. “Mamãe não deixava a gente colocar a cara na janela, mas pela voz a gente já sabia quem era.”

O Taveirópolis sempre será pra mim a lembrança do quintal da casa da minha vó, a mesa cheia de doce de caju, banana e abóbora com cal que ela fazia, os passeios de bicicleta, a imagem dos meus irmãos destruindo junto com os amigos, alguns deles sobrinhos da Eni, tudo (vivo ou não) que encontravam pela frente. É o bairro da casa onde vi meu vô se balançar e ler jornal diariamente sentado em uma cadeira de balanço. Onde meus avós envelheceram e morreram.

Não permita que a história, a oralidade se perca. Converse com seus pais, seus avós, vizinhos, saiba quem são os moradores mais antigos da região onde você mora. Faça perguntas. Não se canse de fazer perguntas. Guarde e preserve as imagens que contam a história da sua família, do lugar em que nasceu e cresceu. Conte aos seus filhos. Não permita que o pó tome conta da fotografia esquecida na gaveta, nem da tua cabeça.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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