20/04/2024 - Edição 540

Poder

De ato falho em ato falho, o verdadeiro Bolsonaro

Publicado em 22/03/2019 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro afirmou que apoia a ideia do mandatário americano Donald Trump de construir um muro na fronteira do país com o México, e que a maioria dos imigrantes não tem boas intenções. "Nós vemos com bons olhos a construção do muro. A maioria dos imigrantes não tem boas intenções", afirmou Bolsonaro em entrevista à Fox News no último dia 18, durante sua visita aos Estados Unidos.

Dois dias, o filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que acompanhou o pai nos EUA, deu uma declaração polêmica sobre imigrantes. Segundo ele, os brasileiros que vivem ilegalmente no exterior são uma preocupação do governo porque são "uma vergonha" para o país. "O brasileiro que vem pra cá [EUA] de maneira regular é bem-vindo. Brasileiro ilegalmente fora do país é problema do Brasil, é vergonha nossa", declarou.​

Pouco depois, o presidente pediu desculpas pela declaração. "Aquilo foi um equívoco meu. Boa parte tem boas intenções. A menor parte, não. Houve um equívoco da minha parte, peço desculpas aí. Agora, tem muita gente que está de forma ilegal aqui e isso é uma questão política interna deles. Não é nossa. Eu também gostaria que no Brasil só tivesse estrangeiros legalizados e não de forma ilegal, como existe muita gente nessa situação no Brasil. Me desculpe mais uma vez o equívoco, o ato falho que cometi no dia de ontem", declarou ao ser questionado sobre o assunto.

Ato falho

"Ato falho", eis a expressão usada por Bolsonaro. Freud explica: o ato falho não é um equívoco qualquer. Revela o que vai no inconsciente de quem o comete. Assim, o Bolsonaro verdadeiro é o da Fox News. O presidente do pedido de desculpas é apenas um simulacro do original arrependido de ter negligenciado princípios básicos da política: uma dose de sinceridade é um perigo, a sinceridade absoluta é fatal.

Deve-se o mea-culpa de Bolsonaro não a um arrependimento genuíno, mas à percepção de que a inconfidência pode resultar na perda de votos. Imigrantes brasileiros —nos Estados Unidos e alhures— também votam. Basta comparecer ao consulado.

"É muito frustrante que os imigrantes —99% dos quais são pessoas de bem—, que estão aqui há décadas com suas famílias, com crianças, que estudam e pagam seus impostos, sejam tratados como criminosos", disse à BBC Natalícia Tracy. Brasileira, ela se mudou para os EUA em 1989. Hoje, preside o Centro do Trabalhador Brasileiro, em Boston.

"A fala de Bolsonaro terá um efeito dominó, ampliando o estigma sobre a comunidade e estimulando as pessoas a se isolarem ainda mais", lamentou Tracy. "Não bastasse Trump, agora nosso próprio presidente nos cria dificuldades, incentivando uma política que expõe milhões de pessoas à caça."

Vivo, Freud daria um conselho a Bolsonaro: pare de falar dez vezes antes de pensar.

Reincidente

Não foi a primeira vez que Bolsonaro se referiu de forma depreciativa a imigrantes. Ele já se referiu a imigrantes senegaleses, haitianos, bolivianos, sírios e iranianos de “escória do mundo”.

Em entrevista para o Jornal Opção de Goiás em 18 de setembro de 2015, Bolsonaro falou sobre verba para as Forças Armadas e uma possível redução de seu efetivo: 

“Não sei qual é a adesão dos comandantes, mas, caso venham reduzir o efetivo (das Forças Armadas), é menos gente na rua para fazer frente aos marginais do MST, que são engordados agora por senegaleses, haitianos, iranianos, bolivianos, e tudo que é escória do mundo, né, e agora tá chegando os sírios também aqui. A escória do mundo tá chegando aqui no nosso Brasil como se nós já não tivéssemos problemas demais para resolver. Esse é o grande problema que nós podemos ter.”

Quatro dias depois da entrevista ir ao ar, o pré-candidato abordou o uso do termo "escória" em um vídeo no YouTube, onde volta a adotar a palavra, desta vez para se referir a parcela dos imigrantes "de cultura completamente diferente da nossa":

“Se depender de mim, não virão para cá sem um rígido controle de sua vida pregressa, de sua cultura, de sua educação, de seus costumes. Não podemos colocar a nossa sociedade à mercê dessa minoria, escória, que vai se juntar à outra escória que está no Brasil, muitos coligados ao PT, para impor o terror aqui no nosso meio”, disse o então deputado.

Ofensa

Teria sido bem menos constrangedor flagrar o presidente brasileiro usar um chapéu com as orelhas do Mickey em uma reunião de cúpula entre Brasil e Estados Unidos do que vê-lo defender a ampliação do muro que separa os EUA do México e da América Latina. E ainda por cima insultar a parcela dos trabalhadores migrantes que tentam entrar de forma irregular no país, como centenas de brasileiros.

Ao dizer "nós", Bolsonaro sequestra a opinião de milhões de brasileiros que não têm culpa alguma pelas medidas preconceituosas e discriminatórias defendidas por seu supremo mandatário. Não é a primeira vez que a família faz isso, contudo. Durante um evento em um resort pertencente a Donald Trump, na Flórida, em fevereiro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro subiu ao palco e contou que apoiava o projeto do presidente norte-americano de ampliar o muro. "Como trabalhei na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, nós sabemos como as coisas funcionam. Então, construam o muro. Nós, brasileiros, estamos apoiando vocês."

Considerando que são muitos os brasileiros entre os que migram para os EUA e, mais do isso, que o Brasil se constituiu por migrações de pessoas de várias partes do mundo, o presidente da República conseguiu insultar sua própria gente em uma TV estrangeira.

Dizer que "a grande maioria dos imigrantes em potencial não tem boas intenções" é praticamente um reforço nas declarações de seu filho, Eduardo, dadas neste domingo.  "O brasileiro que vem pra cá [Estados Unidos] de maneira regular é bem-vindo. Brasileiro ilegalmente fora do país é problema do Brasil, é vergonha nossa", afirmou.

A opinião, dada em evento de Steve Bannon, liderança da extrema direita norte-americana, ignorou aqueles que saem do país em busca de uma vida melhor. Expulsos pela falta de emprego ou pela violência, brasileiros como outros latino-americanos entram e se estabelecem de forma irregular nos EUA. Não querem infringir a lei, mas guiados pela propaganda de que lá ainda é a terra da oportunidade, não veem outra opção.

A vergonha, portanto, não é o fato de brasileiros entrarem irregularmente em outro país, como já disse aqui. Mas do Brasil ter sido incompetente para garantir boa qualidade de vida a eles e a suas famílias de forma que não precisassem procurá-la em outro lugar. Por outro lado, "a grande maioria dos imigrantes" tem sim boas intenções e faz o bem ao povo que os acolhe. São eles que exercem o trabalho sujo que poucos querem fazer, limpam latrinas, costuram roupas, cozinham e servem, recolhem o lixo, limpam as ruas, constroem casas.

Como eu disse há dois dias, um representante do povo brasileiro, eleito com uma expressiva votação, deveria defender a dignidade de seus conterrâneos e não as políticas migratórias de outro Estado. No ano passado, centenas de brasileiros ficaram detidos por entrarem de forma irregular nos EUA, dentre eles crianças que chegaram a ser isoladas de seus pais. Nem Jair, nem Eduardo deram um pio para manifestar preocupação quanto a eles nessa viagem.

Desde sua campanha eleitoral, Donald Trump culpa os migrantes pobres por desgraças que acontecem em solo norte-americano – de estupros ao tráfico de drogas e principalmente o terrorismo. Chegou a dizer que eles "infestam" o país e os chamou de o "mal". Vale lembrar, contudo, que a maioria dos atiradores que mataram em escolas e igrejas nos Estados Unidos eram homens, brancos, héteros, nascidos por lá.

O que Bolsonaro ganha ao dar declarações como essa, que faz coro com o pior do nacionalismo? Mostrar-se tão útil que o presidente norte-americano talvez o considere um parceiro prioritário? Acender a libido da ala radical de seus seguidores em redes sociais? Ganhar um afago ou um biscoito da extrema direita norte-americana? O problema é que ser subserviente nunca fez com que alguém ganhasse respeito. Pelo contrário.


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