29/03/2024 - Edição 540

Poder

Militares reagem após fala de Bolsonaro sobre papel das Forças na democracia

Publicado em 08/03/2019 12:00 -

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Uma fala dúbia do presidente Jair Bolsonaro sobre o papel das Forças Armadas desagradou à ala militar do governo, que interveio para tentar controlar a escalada do caso dentro do Planalto, no contexto de uma crise iniciada com um tuíte no Carnaval. 

No último dia 5, Bolsonaro causou furor internacional ao postar um vídeo obsceno correlacionando cenas impublicáveis com a festa como um todo. Na manhã de quinta (7), em evento de aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio, outra declaração do presidente causou controvérsia. 

"A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia. E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer", afirmou Bolsonaro. 

A frase caiu mal no poderoso grupo militar do governo, que tem 8 de 22 ministros, e entre oficiais do Alto Comando das Forças.

Como seria previsível, a crítica à esquerda foi imediata, feita por políticos do PT e do PSOL em redes sociais, que viram a mensagem de que a democracia só existe por tutela fardada.

Para os militares, o problema não foi tanto a segunda parte da afirmação, já que em todo mundo Forças Armadas são garantidoras da ordem constitucional —eles se queixaram do "quando assim o quer", que implica algum poder discricionário que não está previsto na Constituição.

Mas o problema maior, para os fardados, era o primeiro período da fala, na qual o presidente apela às tais pessoas de bem que comungam de suas visões para então fazer o comentário sobre os militares.

Com isso, Bolsonaro deu margem à interpretação de que as Forças Armadas estão prontas para combater o dissenso, aqueles que o presidente considera adversários em suas postagens em rede social, notoriamente controladas pelo filho Carlos e assessores.

Nas palavras de um outro militar muito próximo do presidente, ele foi "extremamente infeliz" na colocação.

Ao longo do dia, vieram então intervenções de dois expoentes da ala, os generais da reserva Hamilton Mourão (vice-presidente) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).

"[O presidente] está sendo mal interpretado. O presidente falou que onde as Forças Armadas não estão comprometidas com democracia e liberdade esses valores morrem. É o que acontece na Venezuela", afirmou o vice-presidente Mourão, que não entrou no mérito da questão do tuíte carnavalesco do chefe.

Já Heleno falou à Rede Globo que não via "nada demais na declaração". "Ele falou o que todo mundo sabe: as Forças Armadas são o baluarte da democracia e da liberdade. Historicamente, em todos os países do mundo", afirmou.

Os panos quentes jogados pelos oficiais da reserva na crise buscaram corrigir o rumo da polêmica do tuíte e fazer a crise ser gerida "interna corporis", ou seja, dentro do governo.

A anunciada volta das transmissões ao vivo pela internet de Bolsonaro consolidaram a operação. O presidente apareceu lá ladeado por Heleno e pelo porta-voz, Otávio do Rêgo Barros, também um general –no caso, da ativa.

O presidente falou brevemente e pediu a opinião de Heleno, "mais velho, mais experiente". O general de quatro estrelas da reserva tem 71 anos, enquanto o capitão reformado que o chefia tem 63.

"General, o senhor achou o meu pronunciamento lá no Rio de Janeiro polêmico?". "Não, claro que não. Ao contrário, as suas palavras foram ditas de improviso. Tentaram distorcer isso como se [a liberdade] fosse um presente dos militares aos civis", respondeu, antes de repassar o argumento do papel constitucional das Forças Armadas na defesa da democracia.

Bolsonaro também falou sobre outros temas, que foram da reforma da Previdência à agenda mais conservadora de costumes, com a crítica a uma Caderneta de Saúde do Adolescente, com conteúdo que considerou impróprio.

Em todos os casos, era orientado por papéis manuscritos sobre os temas em questão passados por um sorridente Rêgo Barros.

Bolsonaro indicou que outros ministros estarão presentes nas "lives", mas a estreia nessas condições sugeriu a consolidação de um movimento de subordinação mais claro na área de comunicação que já vinha desde a chegada de Rêgo Barros ao Planalto.

Desde a campanha eleitoral, os militares do entorno de Bolsonaro se batem com o estilo do presidente, que consideram impulsivo demais, e a influência do círculo familiar –notadamente o vereador carioca Carlos, o deputado federal Eduardo, os mais ativos em questões de comunicação de governo e política, e o senador Flávio.

Embora a ala militar englobe diversas facções, algumas divergentes, há uma certa convergência na figura do vice Mourão, por ter sido eleito com os mesmos votos da chapa de Bolsonaro e por ter assumido um perfil moderado que inexistia antes da eleição.

Indemissível, pode passar recados da cúpula e os seus próprios com mais liberdade.

Mourão já havia feito pública a intervenção reservada dos militares contra o voluntarismo do Itamaraty chefiado por Ernesto Araújo, protegido de Eduardo e indicado pelo escritor e ideólogo conservador Olavo de Carvalho.

Demoveu a ideia da mudança da embaixada brasileira em Israel e assumiu negociações sobre a crise na Venezuela, afastando especulações de ação militar. Por fim, o vice troca farpas públicas com Olavo sempre que pode.

Internamente, Bolsonaro ouve nomes como os dos também generais da reserva Heleno e Carlos Alberto Santos Cruz (Secretaria de Governo). Eles, Mourão e o general da reserva Floriano Peixoto (Secretaria-Geral) são o núcleo militar dentro do Planalto.

O grupo é reforçado por Rêgo Barros, que dera forma à tímida reação inicial de Bolsonaro à crise na quarta (6), com nota na qual mantinha a censura aos atos obscenos que denunciava em sua postagem, mas afirmava que o tuíte não implicava crítica ao Carnaval por si só.

Veja o que Bolsonaro já disse sobre os militares

Na minha opinião, dos meus amigos generais, se tiver de voltar um dia [militar ao poder], que volte pelo voto. Aí chega com legitimidade, não dá essa bandeira para o PT dizer "Abaixo a ditadura" ou "Foi golpe"
29.mai.18 em entrevista à Folha 

Me define o que é ditadura? Nós [no regime militar] tínhamos liberdade de ir e vir
6.jul.18, em entrevista à Rede TV!

O que vejo nas instituições militares é que não tomariam iniciativa [de intervir]. Se a primeira falta o PT viesse a cometer, poderia acontecer sim uma reação, mas com o PT errando em primeiro. Nós, das Formas Armadas, somos avalistas da Constituição. Não existe democracia sem Forças Armadas
28.set.18, em entrevista à Band

Nunca deveriam não ter lugar de destaque [no governo]. As Forças Armadas são as guardiãs da nossa Constituição e as que respondem em última análise se a gente vive numa democracia ou não
6.nov.18, a jornalistas

Análise

A simples sugestão de que Exército, Marinha e Aeronáutica possam agir de acordo com suas vontades e não as dos Três Poderes é uma afronta à Constituição Federal.

Quando as Forças Armadas cumprem suas responsabilidades dentro de limites e competências constitucionalmente atribuídos, há democracia e liberdade. Mas a partir do momento em que intervêm para "corrigir" os rumos do país, de acordo com a opinião de seu comando, passando por cima das posições manifestadas pelos representantes eleitos pela população, democracia e liberdade vão para o vinagre.

O governo federal conta com oito ministros oriundos das Forças Armadas – um número alto mesmo em comparação aos gabinetes dos ditadores brasileiros entre 1964 e 1985. Mas eles têm desempenhado o papel mais sensato e comedido da administração Bolsonaro, contrastando com o histrionismo de uma ala ultraconservadora. Alguns servem, inclusive, de conselheiros para o presidente. E, acreditem, ele precisa de conselhos.

As Forças Armadas de hoje não são as mesmas da última ditadura, da mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus comandantes têm confirmado que a liderança do país é e será civil. Segundo os oficiais da ativa, o respeito às liberdades individuais e às instituições continuará, sem intervenções ou golpes.

Isso não exime seus quadros de críticas, principalmente quando dão declarações que nada contribuem com o bom funcionamento das instituições democráticas. O então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um quadro considerado sensato e ponderado, cometeu duas falhas graves. A primeira em abril, às vésperas do julgamento do habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, quando afirmou em sua conta no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".

Depois completou o raciocínio em uma segunda mensagem: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" Sua declaração, além de ter representado inadmissível pressão indevida, foi vista como uma chantagem à corte.

A segunda foi, durante as eleições, quando disse que o atentado contra Jair Bolsonaro poderia levar o futuro governo a ter dificuldade em garantir estabilidade e governabilidade, "podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada". Mesmo que ele, ao longo da entrevista, tenha confirmado que as Forças Armadas continuarão a desempenhar seu papel democrático, independentemente do resultado das eleições, a conjectura em sua declaração apenas lançou mais combustível no contexto incendiado das eleições presidenciais. A declaração do general não era uma sentença do que acontecerá, mas ajudou na formação do entendimento de que se o resultado das eleições não fosse o que alguns grupos esperavam, elas poderiam ser questionadas. Isso em nada contribui para a "necessidade de pacificação do país", que ele afirma ser sua preocupação.

Não foi o único. Em setembro do ano passado, o então candidato a vice-presidência da República, general Hamilton Mourão, admitiu que, na hipótese de um presidente da República considerar que o país entrou em situação de anarquia, ele pode dar um "autogolpe" com o apoio das Forças Armadas.

Um ano antes, ele já havia levantado polêmica ao afirmar, em uma palestra, que seus "companheiros do Alto Comando do Exército" entendiam que uma "intervenção militar" poderia ser adotada se o Poder Judiciário "não solucionasse o problema político", no caso, a corrupção.  

Uma das diferenças entre um governo militar e um civil é que, no civil, os militares que desejam participar do jogo político, expressando-se dessa forma, devem fazê-lo pela via eleitoral. Pois palavras como essas, ao invés de trazer tranquilidade, apenas acrescentam mais ansiedade a um país ultrapolarizado. Hoje, Villas Bôas faz parte do governo Bolsonaro, no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Mourão é vice-presidente, adotando um comportamento moderado e diplomático. Fazem parte da reserva e assumiram cargos públicos, o que é do jogo.

Repito: ninguém questiona a importância das Forças Armadas e o papel que elas cumprem em uma democracia. Mas os governos civis pós-1988 distanciaram os militares do processo decisório do país não apenas por traumas do passado, mas também por uma visão de democracia próxima do voto e distante dos quartéis.

O presidente foi reformado como capitão do Exército e se tornou político. É um presidente civil. Não deveria, portanto, afirmar que seu comando só existe por uma concessão dos militares, quando é uma decisão única e exclusivamente dos eleitores.


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