19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Os militares criaram um comitê de tutela para o Itamaraty, diz diplomata

Publicado em 06/03/2019 12:00 -

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O diplomata Paulo Roberto de Almeida ficou 14 anos na “geladeira” nos governos petistas, por discordar da política externa “bolivariana” conduzida pelo ex-chanceler Celso Amorim e pelo ex-assessor de Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia (1941-2017). Agora, depois de ficar dois anos e meio à frente do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) durante o governo Temer, ele volta a ser afastado de suas atividades no Itamaraty.

Ao contrário da versão divulgada inicialmente, Paulo Roberto diz que a principal razão de sua exoneração do cargo, anunciada na segunda-feira de Carnaval, não foi a publicação em seu blog de críticas do ex-presidente Fernando Henrique e do ex-embaixador Rubens Ricupero à atual política externa, mas sua contestação às ideias do escritor e pensador Olavo de Carvalho, tido como o responsável pela indicação do chanceler Ernesto Araújo para o cargo. “O Olavo de Carvalho é uma personalidade bizarra que, na minha visão, faz um mal enorme à política internacional do Brasil”, afirma.

Nesta entrevista, Paulo Roberto, de 68 anos, conta detalhes sobre a sua saída do Ipri, fala sobre os dois primeiros meses da tumultuada gestão de Araújo, a quem responsabiliza pela “subversão da hierarquia” diplomática e diz que o núcleo militar do governo está preocupado com as decisões do novo chanceler nas grandes questões de política externa. Segundo ele, isso levou os militares a criar uma espécie de “comitê de tutela” em torno de Araújo e do Itamaraty. “A direita chegou ao poder pela via legítima, mas você tem esses radicais que estão tentando influenciar não só a política externa como a política geral do governo”, diz. “Isso gera muita tensão interna.”

 

Como o senhor recebeu a sua exoneração do Ipri?

De certa forma, já estava esperando por isso. Desde novembro de 2018, quando o chanceler foi designado, ficou clara a intenção do ministro de renovar toda a Casa e substituir todos os que representavam o governo de transição, o governo Temer, e uma geração mais antiga do Itamaraty que a do próprio Ernesto Araújo. Logo que ele foi nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro, passou a exonerar todos os subsecretários, ou seja, todos os ministros de primeira classe, os embaixadores mais antigos que ele. Foram todos colocados à disposição e substituídos por ministros de segunda classe — uma situação que, na área militar, seria como se os coronéis chefiassem os generais. Essa questão geracional, que se manifestou desde dezembro, indicou que em algum momento eu seria substituído, o que é normal num processo de mudança de governo e que neste caso se aproxima também de uma mudança de regime. Então, de certa forma, não houve uma surpresa na minha exoneração e sim na forma meio espetaculosa como ela foi feita.

Em geral, no Itamaraty, quando se designam novas chefias, costuma-se oferecer um posto, uma nova função, a quem está sendo exonerado, numa atitude de cortesia. No meu caso, foi um pouco humilhante, na medida em que fui simplesmente comunicado de que estava sendo exonerado por “mau comportamento”. Não foi a expressão usada na hora, mas foi este o sentido da coisa. Nesta quarta-feira, eu vou me apresentar no Itamaraty, entregar o projeto de programa de trabalho para o IPRI 2019, que não sei se será considerado ou não, e estarei afastado das minhas funções. Ficarei, como fiquei durante o período do lulopetismo, trabalhando na biblioteca, que eu transformo em meu escritório de trabalho.

De que forma o senhor ficou sabendo de seu desligamento?

O chefe de gabinete do ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) me telefonou para reclamar das postagens no meu blog, com as transcrições da palestra do embaixador Rubens Ricupero em 25 de fevereiro, no Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), na Casa das Garças, no Rio de Janeiro, e do artigo do ex-presidente Fernando Henrique, publicado pelo Estadão.

Eu transcrevi também um artigo do próprio ministro, publicado em seu blog no domingo à noite, no qual ele contesta as críticas deles, e acrescentei alguns comentários chamando um debate. Mas o chefe de gabinete alegou que eu vinha fazendo postagens inconvenientes para o ministro entrando em questões de política externa que não me cabiam, porque eu era chefe de uma entidade vinculada ao Itamaraty, que é o Inpri (Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais), da Fundação Alexandre Gusmão, e que não convinha que um diplomata, num cargo oficial, fizesse manifestações daquele tipo no seu blog pessoal.

Ao republicar em seu blog os artigos do ex-embaixador Rubens Ricupero e do ex-presidente Fernando Henrique, que eram bem críticos à atual orientação do Itamaraty, o senhor já não esperava que isso pudesse ocorrer, considerando que ocupava um cargo de confiança?

Isso foi levantado pelo chefe de gabinete que telefonou para me demitir. Eu disse que eram artigos publicados pela imprensa, que figuravam no próprio clipping do Itamaraty, com as principais notícias da imprensa nacional e internacional. Tudo o que eu publico no meu blog é público. Faço apenas a transcrição. Eventualmente, claro, traço comentários iniciais. Nesse caso, convidei os leitores a iniciar um debate sobre a política externa com base nos três artigos. Mas esse não foi o motivo real da minha exoneração. O que foi um crime de lesa majestade foi eu ter feito críticas anteriores ao (pensador) Olavo de Carvalho, que é supostamente o patrono da escolha do chanceler Ernesto Araújo para o comando do Itamaraty. Eu chamei o Olavo de Carvalho de “sofista da Virgínia” (em referência ao estado da Virgínia nos EUA, onde ele mora), e de alguns outros nomes. Ele é uma personalidade bizarra que, na minha visão, faz um mal enorme à política internacional do Brasil com esse antiglobalismo irracional e conspiratório assumido pelo Ernesto, o antimultilateralismo, o anticlimatismo e o antimarxismo cultural que fazem parte de sua pregação.

Como o senhor vê essa ligação entre o ministro Ernesto Araújo e o Olavo de Carvalho?

O Ernesto se aproximou do Olavo de Carvalho deliberadamente, para conquistar o posto. Não tenho a menor hesitação em dizer isso, porque desde 2016 eu segui o processo de identificação forçada dele com as ideias do Bolsonaro, dos filhos do Bolsonaro, na verdade, que remetem às ideias do Olavo de Carvalho. Digo que ele encampou deliberadamente isso, porque, se você percorrer a trajetória do Ernesto Araújo na carreira diplomática, não vai encontrar absolutamente nada que o fizesse um inimigo do lulopetismo. O Ernesto Araújo ficou na carreira como ficam os diplomatas normais. Eles se adaptam às circunstâncias. Se o presidente fosse o Maluf eles seriam malufistas. Como o presidente era o Lula eles se tornaram simpáticos à causa lulista. Foi assim também com o Ernesto Araújo.

No ano 2000, ele escreveu textos diretamente na linha do desenvolvimentismo predominante na Casa naqueles anos. Em 2013, ele chegou a defender a luta armada da Dilma como sendo um recurso legítimo de defesa da democracia. Isso está documentado, registrado. Ou seja, ele não teve nenhuma história gloriosa de resistência ao lulopetismo e passou a defender essa posição quando sentiu que havia uma possibilidade de mudança real no poder. Enquanto isso, eu fiquei durante 13 anos e meio no ostracismo completo, sem cargo nenhum. No início de 2003, eu fui convidado a chefiar o mestrado no Instituto Rio Branco, mas fui vetado pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães e pelo ministro Celso Amorim, para qualquer cargo na secretaria de Estado. Depois, o Celso Amorim me ofereceu um posto no exterior que eu recusei. Eu não tive cargo algum até agosto de 2016, quando a Dilma sofreu impeachment. Fui fazer outras coisas, dar aula em Paris, trabalhar em outras esferas.

O senhor acredita, então, que foi certo oportunismo do ministro Ernesto Araújo nesta guinada conservadora dele?

Eu não hesito em dizer que ele construiu uma carreira pregressa identificada com ideias antipetistas, antimarxistas e olavistas. Tanto que ele rende um culto ao “professor”. Isso daí é construído, falso, uma coisa de má fé. Eu digo isso com base em dados, em fatos da realidade. Em 2016, quando o Donald Trump (presidente dos EUA) foi eleito, eu convidei um americano para falar sobre o efeito de sua eleição para o Brasil e a América Latina, seu impacto, seus efeitos, e convidei o Ernesto, então chefe do Departamento de América do Norte do Itamaraty, para comentar, ou seja, iniciar o debate na parte de perguntas e respostas. Ele aí começou a fazer uma prelação que depois transformou no famoso artigo Trump e o Ocidente, que é uma construção ideológica sobre como o Trump vai salvar a civilização ocidental, algo absolutamente bizarro do ponto de vista da diplomacia. Isso ele falou nesse evento em novembro de 2016. O Ernesto faz parte dos “convertidos” do Olavo, os true believers, os verdadeiros crentes.

Em relação a essas ideias do Olavo que o senhor criticou, quais eram as suas restrições?

Eu conheço o Olavo faz tempo, todo mundo o conhece, porque ele era um polemista presente nos meios de comunicação, antes nos impressos e depois nas redes sociais. Ele teve um papel relevante desde os anos 1990 na denúncia do gramscismo acadêmico. Aquele livro dele O imbecil coletivo, em dois volumes, é uma denúncia desse marxismo vulgar, desse gramscismo acadêmico que lavra nas nossas faculdades de humanidades. Ele também teve um papel importante na denúncia do Foro de São Paulo. Agora, exagerou um pouco na denúncia do comunismo. Nem o PT nem o PC do B estavam sequer interessados em criar socialismo ou comunismo no Brasil. Estavam mais interessados em expropriar os capitalistas.

Depois, ele derivou para fantasmagorias e teorias conspiratórias sobre esse tal de globalismo, um pouco como os templários e os cruzados de outras eras, que saíam caçando moinhos de vento por aí. Sem qualquer fundamento na realidade, ele vê o globalismo como uma conspiração de ricos, do George Soros, da esquerda, do PSOL, do politicamente correto, dos marxistas, que querem tirar a soberania dos países através dos organismos internacionais e dessas ONGs.

Em dezembro de 2017, eu tive num debate indireto com o Olavo de Carvalho sem saber que seria isso, porque fui convidado para uma entrevista e quando abri o computador ele estava lá do outro lado e o tema era justamente sobre globalismo e globalização. Eu defendi a globalização, que é um processo irrefreável e impessoal e ataquei o globalismo como uma ideia estapafúrdia. Fui atacado pelo Olavo de Carvalho tanto na entrevista como depois no seu blog. Também fui atacado ferozmente pelos olavistas, como a gente vê nas redes sociais. Os olavistas fanáticos ficam xingando seus adversários. Eu fui chamado de petista, de esquerdista, dessas coisas todas, quando fui o único diplomata que me opus durante toda a gestão lulopetista à política externa deles.

Logo depois de sua exoneração, na segunda-feira, o Olavo de Carvalho fez um post nas redes sociais dizendo que não teve influência em sua demissão.

Exato. Isso é correto. Ele não sabia de nada. Mas o fato que ele teve influência indireta, porque foram as minhas críticas e as minhas ironias a ele, chamando-o de “sofista da Virgínia” e dizendo que as ideias dele eram malucas, que fizeram com que o ministro decidisse me demitir, porque o Olavo é o legitimador da política externa do Ernesto Araújo. Ele não pediu a minha cabeça. Como ele disse num outro texto, ele não pediu a minha cabeça porque eu não tenho cabeça e ele não podia pedir algo que não existe. Mais do que os artigos do Ricupero e do Fernando Henrique, o fato de eu atacar o Olavo de Carvalho é um ataque ao Ernesto. Eu não descartaria também uma influência de um dos filhos do presidente, o Eduardo Bolsonaro, que também foi responsável pela nomeação de Ernesto Araújo. Nos Estados Unidos, ele posou abjetamente, como você sabe, com o chapéu do Trump, com o slogan Make America Great Again e os dizeres em apoio à reeleição do Trump em 2020. Ele é subordinado não à política externa americana, mas ao Trump.

Outro responsável pela minha saída foi o Filipe Martins, assessor internacional da Presidência. Ele é um desses olavistas fanáticos, um verdadeiro crente, que tem a verdadeira fé, e é muito próximo do Ernesto Araújo.  Ele fez um tweet sobre mim dizendo que eu não tinha sido demitido por transcrever artigos, mas por fazer ofensas pessoais ao chanceler, sem dizer quais são, que é algo que eu não fiz. O que fiz foram comentários irônicos sobre Olavo de Carvalho. Mas esse post dele não tem muita importância. O que tem importância são as centenas de comentários dos que o seguem no Twitter, que são ofensivos e ignorantes. É uma horda de militantes fascistas que me condenam por ser petista, marxista ou qualquer outra coisa nesse estilo.

Você acha que isso tudo foi uma patrulha sobre a suas opiniões?

Eu sou patrulhado há muito tempo. Sou patrulhado pelos petistas antes mesmo do regime petista. Antes de começar o governo Lula em 2003, eu já escrevia artigos sobre o PT e sua política externa, dizendo que se tratava de um típico partido esquerdista latino-americano, com ideias anacrônicas, antiamericanas, anti-imperialistas, com umas propostas de aliança dos supostos oprimidos, sul-sul. Eu já estava visado pelos petistas.

A dobradinha Filipe Martins e Ernesto Araújo na política externa é uma espécie de reedição da dupla formada pelo Marco Aurélio Garcia, assessor internacional da Presidência, e pelo ex-ministro Celso Amorim, nos governos petistas?

As analogias são superficiais e não se sustentam. Ainda que possa haver similaridades, por se tratar de dois assessores presidenciais com muita influência sobre os chanceleres e até certa predominância sobre eles, na substância há uma diferença enorme. O Marco Aurélio Garcia era um servidor fiel da ditadura cubana, um homem que esteve em Cuba e recebia instruções do Partido Comunista Cubano para organizar o Foro de São Paulo. O Marco Aurélio Garcia era chamado de chanceler para a América do Sul, mas ele era de fato um chanceler paralelo. Era o homem do PT e dos cubanos na política externa brasileira. O Filipe Martins é um mero seguidor do Olavo de Carvalho, um convertido. Tem o seu papel porque se ligou ao Eduardo Bolsonaro e ao Olavo de Carvalho e foi influente nessa corrente que foi subindo no Brasil desde as manifestações de 2013, com o antipetismo e a indignação da classe média contra a corrupção do PT e o esquerdismo. Ele subiu nessa onda, mas não tem estatura intelectual nem uma postura de consistência partidária, como o tinha o Marco Aurélio Garcia.

Qual a sua visão da política externa do Itamaraty hoje?

Eu gostaria muito de ter uma resposta para esta questão. Todos os diplomatas e a maior parte da sociedade brasileira bem informada, os observadores da política de Estado, gostariam de saber qual é a política externa do Itamaraty, do chanceler, do governo Bolsonaro. Ainda não sabemos. À parte alguns slogans mal traçados, com frases em latim, grego e tupi-guarani, ainda não temos uma posição completa e abrangente da política externa. O que teve no discurso de posse, em 1º de janeiro, foi uma série de slogans, repetindo acusações ao Itamaraty, de que estaria dominado pelo lulopetismo, quando estávamos há dois anos já num governo de transição. Então, o que você tem são esses eflúvios culturais vindos do Olavo de Carvalho, de um cristianismo mal digerido, de um antiglobalismo totalmente equivocado, que não se traduz em uma política externa concreta, a não ser por essa adesão abjeta aos Estados Unidos, não tanto como país mas ao governo Trump. Isso é prejudicial ao Brasil e à diplomacia brasileira nas suas tradições.

Não há uma definição do que o Brasil pretende fazer, a não ser se engajar nessa luta contra o “marxismo cultural”, o “climatismo” e o “globalismo”, coisas que não fazem qualquer sentido numa agenda diplomática bem organizada. O que os diplomatas querem é uma exposição clara do que fazer em relação à agenda da ONU, do aquecimento global, grandes questões de paz e segurança internacional e não apenas uma adesão beata ao Trump como salvador do Ocidente. Nas questões regionais, o grande teste da Venezuela, mas é um caso exclusivo e extremo. A cadeira de América Latina foi suprimida do Instituto Rio Branco, o que é algo inacreditável. Agora, foi criada uma cadeira de filosofia clássica, porque o Ernesto Araújo acha que a nossa salvação vem dos antigos gregos, do cristianismo, essas coisas que já foram propagadas no seu blog. Então, eu não posso me pronunciar sobre algo que não existe.

Nesses dois meses de nova gestão, o Itamaraty se posicionou em algumas questões de um jeito ou de outro, como na relação com os Estados Unidos que você já mencionou, a relação com a China, a questão da embaixada em Jerusalém a própria questão da Venezuela. Qual a sua avaliação da ação do Itamaraty nesses episódios?

Minha avaliação é de uma enorme confusão mental. O que você tem é uma série de idas e vinda do próprio Bolsonaro sobre todas essas questões.Eles começaram prometendo uma base militar aos americanos, desmentida imediatamente pelo ministro da Defesa e pelos militares em gera. Houve também alguns pronunciamentos no âmbito do Grupo de Lima sobre a Venezuela, em que se defendeu a cessação de todas as relações militares com o governo do Maduro, que também foi imediatamente desmentida pelos militares, porque eles usam esse canal de comunicação para se informar sobre como andam as coisas lá. Depois, você teve uma espécie de “cordão sanitário” erguido em volta do Itamaraty e do chanceler, não só no caso da Venezuela, mas de Jerusalém, da China e de outros temas. Eles estavam preocupando as lideranças militares, que me parece um núcleo muito racional no governo Bolsonaro hoje, como é o núcleo econômico liberal, como parece ser o núcleo da Lava Jato, no ministério da Justiça e da Segurança Pública. Esse “comitê de tutela”, como podemos chamar, em relação ao Itamaraty e ao chanceler está relacionado com as grandes decisões da política externa.

Em Davos, assim que o governo Trump anunciou apoio ao Guaidó, como presidente encarregado da Venezuela, o Bolsonaro, acompanhado pelo chanceler, imediatamente avalizou essa postura e disse que Brasil também o reconhecia no cargo. Diferentemente do que diz o chanceler, em seu último artigo no seu blog, de que foram os Estados Unidos que seguiram o Brasil na questão da Venezuela, o que se vê pela cronologia é que o Brasil é que seguiram os Estados Unidos. Foram os americanos que forçaram a concessão de ajuda humanitária pela fronteira da Colômbia e do Brasil, muito mal recebida pelos miliares no que concerne à nossas fronteiras. Os militares controlaram isso para evitar qualquer foco de tensão e talvez choques que pudesse deslanchar algum enfrentamento mais sério. Foi o vice-presidente Mourão, que foi chefe da última delegação do Grupo de Lima, que vetou completamente, de forma muito sábia, qualquer intervenção militar no caso do Venezuela.

Antes, nos primeiros dias de janeiro, o chanceler vetou também qualquer intermediação ou negociação no caso da Venezuela, o que é uma atitude profundamente antidiplomática. Nenhum diplomata pode vetar uma intermediação, uma negociação, para romper as amarras. O Ernesto disse que os nossos diplomatas só responderiam ao Guaidó e não ao Maduro o que é uma atitude insensata e até administrativamente inconsequente, porque o governo legítimo ou não do Maduro é o que controla o território, o poder do Estado, as organizações, entrada e saída, vistos. Foi com eles que tivemos que negociar para acertar a saída dos brasileiros que estavam na Venezuela.

O senhor fala em “sectarismo”, “fundamentalismo” da política externa. É diferente do que acontecia nos governos petistas?

Nós tivemos um sectarismo na época do lulopetismo que foi essa política míope do sul global e essa aliança com os supostos oprimidos para lutar as potências hegemônicas, mudar a correlação de forças no mundo, criar uma nova geografia de comércio internacional. Esse monte de bobagens revela uma mentira e também um sectarismo, porque claramente o Brasil ficou identificado com as ditaduras mais execráveis do continente, da linha do Foro de São Paulo, que nada mais é que um Cominform do Partido Comunista Cubano para controle dos partidos de esquerda na América Latina. O governo Lula e o lulopetismo foram responsáveis pela sustentação e consolidação do poder chavista na Venezuela, com outros bolivarianos pela América Latina.

Hoje, aparentemente, a gente caiu na equação inversa. Você está elegendo o antiglobalismo, o antimarxismo cultural, o antiesquerdismo como alvos preferenciais da sua propaganda e da sua pregação. O nosso chanceler já teve um documento, um memorando aparentemente confidencial enviado ao Bolsonaro, antes de ele ser escolhido como ministro, pregando uma aliança entre as grandes nações cristãs, que seriam Rússia, Estados Unidos e Brasil. É uma agenda absolutamente ideológica – e, portanto, sectária. É como se o cristianismo pudesse definir a política externa de um país laico como o Brasil. Acho isso absolutamente equivocado, para não dizer ridículo.

O senhor acredita que o Brasil saiu de um extremo na política externa para um outro extremo, pautado pela ideologia?

Não totalmente. Na era do lulopetismo você tinha quase uma hegemonia total do PT e dos aparatiks do partido sobre a política geral do governo e a política externa em particular. Hoje, não tem isso. Como eu disse há pouco, tem um núcleo de militares consciente, dos grandes desafios do Brasil, um núcleo de economistas liberais conscientes da gravidade do desafio fiscal e engajados nas reformas, na abertura econômica, e um núcleo de pessoal da Justiça empenhado em lutar contra a corrupção e a delinquência. Você tem um quisto ideológico em algumas áreas do governo, que está mais ou menos contido pelos núcleos racionais. Não há essa equivalência com o antigo sectarismo lulopetista.

O que você tem são impulsos, ideias, desejos, slogans e frustrações veiculadas pelos meios de comunicação, pelas redes, sobre esses eflúvios bizarros, que vem lá daquele sofista da Virgínia. A direita chegou no poder pela via legítima, mas você tem esses radicais que estão tentando influenciar a política externa se não a política geral do governo. Isso causa muita fricção interna, muita tensão, como a gente viu no caso da política externa, com essa espécie de “cordão de isolamento” que os militares fizeram ao Itamaraty e ao próprio chanceler.

Com tudo isso, como está o clima no Itamaraty?

Eu dificilmente poderia transmitir o sentimento interno da Casa, porque não circulo muito. Como eu disse, eu não estou na Secretaria de Estado. Estou num órgão auxiliar que é na Fundação Alexandre Gusmão, mais especificamente nesse think tank IPRI. O que sinto é uma grande paralisia, uma grande expectativa, um grande temor, porque houve, sim, uma subversão da hierarquia no Itamaraty, uma reforma imposta de cima para baixo que deixou muita gente perplexa, muitos embaixadores nos corredores sem função.

Pelo que posso interpretar, o Itamaraty está esperando instruções de cima, que não vêm. As decisões estão sendo tomadas num círculo extremamente fechado vinculado ao próprio gabinete, sem consulta às instâncias inferiores da Casa. Quem faz a política externa normalmente, segundo uma tipologia ideal do processo decisório é o terceiro secretário, lotado numa divisão encarregada de um país, de um tema, de uma área específica. Ele que tem o domínio técnico de todos os temas vinculados à sua competência. Isso sobe até os escalões superiores para receber uma instrução em relação à política que deve ser feita. O processo decisório está paralisado, porque o gabinete tem se fechado em copas e atuado de forma exclusiva, em consulta provavelmente com o assessor internacional da Presidência.

Há uma espera pela realização de redivisões, porque algumas divisões foram extintas, outras criadas, outras divididas. Por exemplo: o antigo departamento da América do Norte acabou. Há um departamento exclusivo para os Estados Unidos e depois outro departamento para o Canadá e o Caribe. O departamento da Ásia também foi mudado. Agora tem um departamento exclusivo para a China e outro departamento para o Japão e as outras nações da Ásia e do Pacífico. A Europa foi relegada a um vazio cultural, como disse o chanceler em seu artigo sobre o Trump e o Ocidente. A Europa não tem mais um departamento exclusivo no Itamaraty. Está junto com África e Oriente Médio. Isso tem causado certo estresse entre os embaixadores europeus, que têm procurado conversar com o vice-presidente Hamilton Mourão, como já publicado pela imprensa.

O senhor falou que houve uma mudança legítima de poder no País com a eleição de um governo de direita. Como seria até meio previsível, era inevitável que isso tivesse reflexos na política externa. Essa insatisfação toda existente no Itamaraty e de analistas de maneira geral não reflete certa resistência a essa mudança?

Se você quiser comparar a política externa lulopetista com a atual política externa supostamente olavista ou bolsonarista, diria que os governos do PT se caracterizaram pela manutenção das grandes linhas básicas da política exterior, entre os eflúvios bolivarianos, impulsionados por esquerdistas do partido e pelo aparatik encarregado de assessorar o presidente no Palácio do Planalto, que era o Marco Aurélio Garcia. Fazendo um paralelo com uma pizza, você teria talvez uma ou duas fatias contaminando a política externa. O resto do Itamaraty permanecia como sempre foi: desenvolvimentista, um pouco terceiro mundista, moderadamente antiamericano, cepaliano, apoiador do desenvolvimento sustentável, com precaução na abertura econômica.

Hoje, você tem o ketchup bolsonarista se estendendo sobre toda a política externa pretendendo controlar qualquer aspecto. Na verdade, isso é muito superficial, porque você não tem instruções precisas quanto ao que fazer em cada área a não ser esses rompantes anti-globalistas, anti-multilateralistas, anti-Acordo de Paris, anti-Pacto Global das Migrações, contra o marxismo cultural. Isso não representa uma agenda de política externa. Daí, é difícil dizer que você tem uma política externa de direita.

Para ser de direita, bastaria que ela recusasse o apoio a ditaduras de esquerda, o que já foi feito desde o governo Temer. O (senador) José Serra, quando tomou posse no Itamaraty, anunciou uma nova política em relação à Venezuela e a Cuba. O governo Temer restabeleceu a antiga política externa tradicional do Itamaraty, de profissionalismo, de não interferência em assuntos internos de outros Estados e de adesão a grandes princípios básicos da nossa política externa. Hoje em dia, aparentemente, você está querendo ir um pouco mais além nisso. De fato, você está sinalizando algo até anticonstitucional, que é uma interferência nos assuntos internos de outros Estados, no caso da Venezuela. Isso é um pouco surpreendente e até assustador quando vê que os militares estão assumindo o papel pacifista e não intervencionista que deveria ser dos diplomatas. Isso é muito confuso.


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