23/04/2024 - Edição 540

Poder

Pacote anticrime fatiado de Moro divide advogados

Publicado em 22/02/2019 12:00 -

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Advogados com ampla experiência nas áreas penal e constitucionalista se dividem na discussão sobre o pacote anticrime fracionado do ministro Sérgio Moro, da Justiça, entregue na terça, 19, à Câmara. Sem a criminalização do caixa dois, tema que deverá tramitar em um texto separado, o projeto impõe alterações em 14 leis, como Código Penal, Código de Processo Penal, Lei de Execução Penal e Lei de Crimes Hediondos. O objetivo, segundo Moro, é endurecer o combate a crimes violentos, como o homicídio e o latrocínio, e também contra a corrupção e as organizações criminosas.

Entre outras propostas, o projeto impõe prisão como regra para condenados em segunda instância, punição mais rigorosa para condenados por corrupção, redução ou mesmo isenção de pena de policiais que matarem em serviço, maior restrição no uso dos embargos infringentes; e o ‘plea bargain’ — modalidade em que o acusado confessa o crime e opta por um acordo para diminuir sua punição.

Para o advogado Jorge Nemr as propostas do ex-juiz da Lava Jato ‘são louváveis’, mas ele tem dúvidas sobre a constitucionalidade de incluir em lei ordinária o cumprimento da pena após decisão em segunda instância.

“A Constituição Federal é clara neste sentido e um constituinte me garantiu que ela não é interpretativa. Assim, para uma maior segurança jurídica, independente da composição do Supremo Tribunal Federal, é preciso enfrentar este tema através de uma emenda constitucional e não procurar um atalho que lá na frente pode gerar uma polêmica maior ainda”, avalia Nemr, sócio do Leite, Tosto e Barros Advogados,

Daniel Gerber, criminalista e professor de Direito Penal e Processual Penal, afirma que o projeto ‘respeita as garantias constitucionais que regem o processo penal quando o coloca em sintonia com suas principais missões, que, diga-se de passagem, jamais foi garantir a impunidade’.

De acordo com ele, ‘a opção negocial vem em boa hora, permitindo aos acusados uma escolha pautada pelo livre arbítrio e consenso entre as partes’.

“Vale destacar que tal opção permitirá uma descarcerização a longo prazo, principalmente quando combinada com o sistema de penas alternativas previstas no Código Penal”, considera Gerber.

Para o criminalista, ‘as demais alterações, se não exatamente necessárias, também não alteram negativamente o panorama atual, ao contrário das críticas que imediatamente lhe foram lançadas’.

Segundo Marcelo Leal, criminalista e mestre em Direito das Relações Sociais, chama atenção o condicionamento do efeito suspensivo aos recursos quando ‘não tiverem o propósito meramente protelatório’, sempre de forma cumulativa com outros requisitos.

“A advocacia criminal foi colocada no banco dos réus, pois, a depender da visão do Tribunal, qualquer recurso será protelatório! Os advogados terão a mesma independência funcional para exercerem o seu múnus constitucional? Ou serão tachados de chicaneiros?” questiona.

De acordo com a advogada Thaís Aroca Lacava, sócia do Marcelo Leal Advogados e mestre em Processo Penal pela USP, o juiz ganha poderes legislativos com o proposto artigo 59 do Código Penal, podendo, a seu critério, estabelecer prazos próprios para a progressão de regime.

“Tudo isso sem exames criminológicos, sem analisar o comportamento do preso, nada! Um brinde à morte do princípio da individualização da pena e à retirada da competência do juiz da execução, cargo especializado para tratar das questões penitenciárias”, crava Thaís Lacava.

O advogado Rodrigo Dall’acqua, sócio do Oliveira Lima, Hungria, Dall’Acqua & Furrier Advogados, entende que a proposta trará grande impacto negativo no direito penal empresarial.

“Grande parte dos crimes empresariais é praticada de forma continuada ou permanente, ou seja, a conduta é praticada durante um período longo, conduta prolongada por meses ou anos, como por exemplo, nos delitos de formação de cartel ou gestão temerária de instituição financeira, ou, ainda, de forma reiterada por meio da prática de diversas infrações consecutivas, como, por exemplo, crimes tributários”, analisa Dall’acqua.

Para ele, ‘esta proposta prevê regime inicial fechado para toda conduta criminosa considerada ‘habitual, reiterada ou profissional’.’

“Se esta medida for aprovada, serão encarcerados no regime fechado empresários primários e de bons antecedentes, que, na legislação atual, certamente seriam condenados a pena alternativa ou no regime semiaberto”, alerta o advogado. “Além de inconstitucional, por violar o princípio da individualização da pena, a medida promove um encarceramento desnecessário e irracional.”

Sobre as medidas para introduzir soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade, Rodrigo Dall’acqua diz que a proposta terá pouca repercussão. Isso porque é restrita para os crimes com pena máxima abaixo de quatro anos, os denominados crimes de média gravidade.

“Na legislação atual, estes delitos de média gravidade, como o furto simples, já são normalmente objeto da suspensão condicional do processo, que nada mais é do que um acordo entre acusado e Ministério Público para evitar o processo”, diz o advogado.

Para ele, ‘a suspensão condicional do processo é um acordo mais vantajoso para o acusado do que a ‘solução negociada’, pois o acusado não precisa confessar o crime e ainda mantém o status de inocente’.

“Portanto, a ‘solução negociada’ será restrita aos crimes de média gravidade, delitos em que o acusado e o Estado já podem celebrar acordos despenalizadores. Certamente não irá gerar efeitos práticos relevantes, não representando uma inovação ou contribuição ao nosso sistema processual penal”, afirma.

Benedito Cerezzo Pereira Filho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB, sócio no escritório Marcelo Leal Advogados Associados, diz que ‘o projeto joga no mesmo limbo demandas cível e penal’.

“No caso da improbidade, mais uma vez, o tema é tratado na superficialidade. Talvez sirva apenas para reforçar que, de fato, a ação de improbidade tem natureza penal e não cível, como se tem entendido”, argumenta Cerezzo Pereira Filho.

Em seu entendimento, as novidades do projeto anticrime, neste ponto, ‘se limitam a permitir a delação, que, como a lei específica sobre o tema, mascara o verdadeiro nome ao utilizar ‘colaboração’.

“Quem colabora não exige nada em troca. O delator ‘colabora’ porque receberá as benesses de uma pena muito menor ou até mesmo de não tê-la. Por outro lado, abre a possibilidade de acordos, como ajustamento de conduta, mas não especifica quais órgãos terão competência para firmá-los, deixando um rol em aberto. Dessa forma, o projeto nada contribui para permitir um procedimento adequado no que tange as questões relativas à improbidade administrativa”, pondera Cerezzo Pereira Filho.

Everton Moreira Seguro, especialista em Direito Penal do Peixoto & Cury Advogados, exalta o projeto na medida em que aprimora os mecanismos já existentes na legislação.

“O projeto é positivo na sua forma geral e dá prioridade a questões importantes para o Brasil quanto ao crime organizado, que deve ser freado o quanto antes, à progressão de regime, à reincidência e ao confisco alargado de bens da propriedade de condenados, entre outros temas”, ele diz.

Para Seguro, no entanto, deve ser observada a Constituição. “A questão no projeto sobre a prisão em segunda instância, se aprovada, continuará em discussão quanto à sua constitucionalidade.”

Para o advogado criminalista e constitucionalista Adib Abdouni, a sociedade tem se sentido insegura até dentro de casa, o que é ‘um verdadeiro absurdo, uma inversão de valores já que o bandido é que tem de sentir medo do braço longo da lei, em vez de intimidar o cidadão de bem’.

Segundo ele, o pacote de modificações legais proposto por Sérgio Moro ao Congresso para endurecer o combate ao crime organizado e aumentar as penas para crimes cometidos com arma de fogo, poderá contribuir para a redução da violência.

“É importante não só combater o crime por meio de ações firmes, como também reduzir a sensação de impunidade”, recomenda.

STJ vai analisar propostas

O STJ decidiu montar comissão para estudar e analisar as propostas do pacote anticrime de Moro do ponto de vista do tribunal. Há chance, segundo se apurou com fonte do STJ, de o resultado se transformar em uma nova PEC a ser também enviada ao Congresso. Vale registrar que a última vez em que o tribunal enviou uma proposta de emenda ao Legislativo foi em 2012: a PEC da Relevância.

Pacote viola a Constituição, diz associação de defensores públicos

Para a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, a proposta viola direitos fundamentais, legitima a letalidade policial e agride a Constituição.

O documento produzido pela Anadep detalha questionamentos sobre ao menos sete pontos da proposta de Moro. “O projeto relativiza princípios como o da presunção de inocência, devido processo legal, ampla defesa e princípio da individualização da pena, assegurados na Constituição. (…) Ao longo do texto, a Constituição federal é violada”, diz o relatório dos defensores.

A associação diz que o pacote de Moro, ao ampliar o conceito de legítima defesa e de redução da pena para atuações excessivas de autoridades, legitima a elevada letalidade policial e iguala a polícia, que deve ter treinamento para atuar em situações extremas, a cidadãos comuns e sem formação, exonerando o Estado de capacitar seus agentes para a promoção da segurança pública do cidadão”.

A entidade também critica o “plea bargain”, que pela proposta de Moro pode ser acionada por acusados mesmo na fase pré-processual, e diz temer pela não orientação jurídica adequada de réus que optem pelo acordo, já que só 40% dos municípios contam com defensores públicos.

“Por fim, a possibilidade de gravação de atendimentos advogados e defensores viola o sigilo profissional e a privacidade que deve ser garantida entre o réu e seu defensor, constituindo interferência indevida e enorme violação ao princípio da ampla defesa”, diz o manifesto da entidade.

A proposta de Moro suscita debate também entre advogados criminalistas e sofre resistência de uma ala do Congresso.

Movimento negro denuncia ‘licença para matar’ de Moro

Grupo formado por 39 movimentos sociais com atuação voltada para a garantia dos direitos da população negra se uniu para cobrar da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), da OEA (Organização dos Estados Americanos), ações contra o pacote.

Segundo o documento enviado pelo grupo, as alterações propostas por Moro terão o resultado inverso do que dito pelo ministro. Há o entendimento de que essas mudanças acarretariam em aprofundar ainda mais a desigualdade social no país, bem como manter e agravar o encarceramento e genocídio da juventude negra e periférica, como sustentam.

O pacote anticrime de Sérgio Moro é criticado por especialistas, que consideram possível haver uma brecha legal para policiais matarem em serviço, uma espécie de “licença para matar“. Ainda é apontado o direcionamento para a população negra, pobre e periférica e a possibilidade de feminicidas se beneficiarem do ponto que trata de legítima defesa.

Há detalhamento das críticas feitas pelo movimento negro ponto a ponto, desde a prisão em segunda instância, que “abre-se mão do direito à presunção da inocência, o que levará ao cárcere inúmeras pessoas que não tiveram sua sentença definida”, ao excludente de ilicitude para policiais, ação com poder cujo reflexo pode ser em “diminuir as investigações de mortes cometidas por policiais, dando margem para o aumento da letalidade policial”, sustenta os movimentos.

“O ‘Pacote Anti Crime’ ignora fatos, evidências, pesquisas, elaborações acadêmicas e científicas, além de toda a mobilização da sociedade em torno do tema, e propõe algo dissonante ao que vem sendo discutido e defendido como solução para o grave problema de segurança pública vivida no Brasil. Como não caracterizar tais iniciativas como deliberados ataques e violações aos direitos humanos em nosso país?”, questiona o texto.

O documento traz análises de oito especialistas sobre o pacote, entre eles Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos. “A proposta traz uma delirante exclusão de criminalidade. Esse pacote não vai trazer melhoria na segurança pública para ninguém”, analisa Pinheiro. Para Daniella Meggiolaro, advogada criminalista e diretora do IDDD (Instituto de Defesa do direito da Defesa), aprovadas as mudanças, “mulheres negras vão ser cada vez mais afetadas, já que são vítimas de violência policial e são as mães dos jovens negros mortos pela polícia”.

O movimento pede posicionamento oficial por parte da CIDH, nas figuras das comissionadas Antonia Urrejola e Margarette May, e o secretário-executivo Paulo Abrão; observações internacionais acerca das propostas para o Congresso Nacional, que avaliará a aplicação ou não das mudanças; a criação de um canal de diálogo com o movimento negro brasileiro; que a CIDH adote medidas que garantam os direitos da população negra; e, por fim, a realização de audiências para que o movimento apresente suas demandas à Comissão.

Assinam o documento entidades como a Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos), Cooperifa, Grupo Kilombagem, Movimento Independente Mães de Maio, MNU (Movimento Negro Unificado), Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e Uneafro Brasil, entre outros.

Confira lista de signatários:

Assinam
Aliança Hip Hop Taquaril – BH
Alma Preta Jornalismo
Amma Psique e Negritude – SP
AMPARAR – Associação de Amigos e Familiares de Presos – SP
Aparelha Luzia – SP
Assessoria Popular Maria Felipa – BH
Bloco Afro Ilú Oba De Min – SP
Casa do Hip Hop do Taquaril – BH
Casa do Meio do Mundo – SP
CEDECA Mônica Paião Trevisan – SP
Ceert – Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades – SP
Centro de Direitos Humanos de Sapopemba – SP
Coletivo Força Ativa – SP
Coletivo Negro Vozes da UFABC – SP
Comunidade Cultural Quilombaque – SP
Comunidade de Samba Maria Cursi – SP
Comunidade de Samba Pagode na Disciplina Jardim Miriam – SP
CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras
Cooperifa – SP
Criola – RJ
Cursinho Popular Carolina de Jesus – SP
Desenrola e Não me Enrola
Festival da Mulher Afro-Latina-Americana e Caribenha – Latinidades – DF
Fopir – Fórum Permanente pela Igualdade Racial
Fórum Grita Baixada – RJ
Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade – MG
Grupo Kilombagem – SP
IDEAS – Assessoria Popular – BA
MMN – Marcha de Mulheres Negras – SP
MNU – Movimento Negro Unificado
Movimento Independente MÃES DE MAIO
NCN – Núcleo de Consciência Negra na USP
Pretas em Movimento – BH
Rede de Mulheres Negras de Minas Gerais – MG
Rede de Proteção e Resistência Contra Genocídio – SP
Rede Urbana de Ações Socioculturais- RUAS – DF
Ubuntu Cursinhos – SP
UNEAFRO BRASIL
UNEGRO – União de Negros pela Igualdade


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