28/03/2024 - Edição 540

Poder

Escola sem Partido e os devaneios do ministro

Publicado em 22/02/2019 12:00 -

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Pense naquela sua tia que compartilha correntes no WhatsApp, envia mensagens de alerta sobre os novos tipos de golpes que bandidos estão a aplicar na praça e, abduzida por insuspeita militância, bombardeia sua caixa de entrada com abaixo-assinados em série. Imagine que essa sua tia, hoje uma aplicada combatente da mamadeira de piroca, decidiu enveredar-se na trilha do comentário político ao inaugurar um canal no YouTube, onde é possível acompanhar seu pensamento vivo. Vociferante e furibunda com os inimigos, amável com os amigos, foi catapultada ao sucesso como “influenciadora digital” da nova direita, espécie de Alexandre Frota dispensada do filme pornô, embora suas vergonhas estejam à vista do internauta que se animar a assisti-las. Sua tia é a culpada de tudo: foi ela quem apresentou Bolsonaro a Paulo Guedes, propiciando o casamento que terminaria em bem-sucedida relação de poliamor com o grande capital. Como Frota, virou deputada federal do PSL, de cujo laranjal soergue sua principal bandeira, o da ressurreição do projeto Escola sem Partido. A sua tia das correntes, raro leitor, ela existe, tal e qual sua improvável trajetória. Trata-se da procuradora aposentada Beatriz Kicis Torrents de Sordi, a Bia Kicis, de 58 anos, eleita pelo Distrito Federal com os votos de 86.415 adversários da urna eletrônica.

Kicis – melhor seria Kisses, mas não podemos exigir mais da realidade – surgiu primeiro na internet como uma golpista incauta a clamar pelo impeachment da presidenta Dilma. Na sequência, tornou-se militante do voto impresso. A partir desse moinho de vento, a quixotesca personagem passou à luta contra outros gigantes, em especial a “doutrinação” de alunos nas escolas por “esquerdopatas” e a “ideologia de gênero”, que acabaria por fabricar a tal mamadeira, sem dúvida o produto mais criativo do mercado nacional, quiçá mundial, de notícias falsas. Ao chafurdar na produção audiovisual de Kicis, fica-se a par de seu desejo de processar os antigos professores de história que lhe ensinaram tudo errado, certamente uns doutrinadores de meia-tigela. Por outro lado, encontra-se “o mestre e o homem que despertou uma nação”, o Napoleão de hospício Olavo de Carvalho, em colóquio com a dita-cuja e “o querido Edu, Edu Bolsonaro, o filho do Jair”. Enquanto se desenrola o besteirol, o público eriça-se nas caixas de comentários. “Glória a Deus!”, louva um cristão. “Senta o dedo!”, sugere outro.

A necessitar de um compêndio de fake news, vale a pena recorrer à Kicis. Está lá, por exemplo, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, em sua convocatória aos terroristas árabes da Al-Jazeera (que seria uma célula da Al-Qaeda não fosse um canal de televisão) para que cerrassem fileiras por Lula Livre. No dia do assassinato de Marielle Franco, a youtuber já sabia se tratar de um “assalto” àquela que “provavelmente defendia essa agenda desarmamentista”. A produção de Kicis é também uma fonte inesgotável de comédia involuntária, como no caso do vídeo em que alardeia “EM PRIMEIRA MÃO” a candidatura a deputado de Nelson Barbudo, aquele que foi à posse no Congresso com chapéu de vaqueiro e barba de Karl Marx. Parte de suas publicações é de chamamentos a Tico e Teco, a dupla de neurônios que habita o bolsominion clássico. Em uma dessas pérolas, Kicis convoca a massa a “bater sinos”, acender e apagar as luzes de casa no momento em que Sérgio Moro estivesse em entrevista com Gerson Camarotti no GloboNews. Para tanto, vestia-se com chapelão verde e amarelo, a pecar apenas na escolha do modelo cowboy no lugar daquele de bobo da corte.

Esta é a pessoa, pois, à frente do redivivo projeto Escola sem Partido, arquivado no fim do ano passado pela comissão que analisava a proposta na Câmara dos Deputados, sob pressão de educadores e do STF. Protocolado por Bia Kicis no primeiro dia de trabalho da nova legislatura, o PL nº 246/19 é ainda mais radical do que as ideias defendidas pelo fundador do “movimento”, o advogado Miguel Nagib. Em sua nova versão, defende a gravação de aulas a pretexto de “uma melhor absorção do conteúdo e garantia do direito de pais e responsáveis terem ciência do processo pedagógico e avaliação da qualidade dos serviços prestados na escola”. A proposta afronta a liberdade de cátedra assegurada pelo artigo 206 da Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Além disso, proíbe que grêmios estudantis promovam qualquer atividade político-partidária. “O Escola sem Partido, assim como a ‘ideologia de gênero’, foi factoide criado para desviar a atenção dos temas importantes durante a elaboração do Plano Nacional de Educação que entrou em vigor em 2014”, diz o ex-ministro da Educação do governo Dilma, o filósofo e cientista político Renato Janine Ribeiro. “É uma pena que setores progressistas tenham mergulhado nessa piscina com tanto prazer e engano, no lugar de ter exigido que a discussão fosse sobre educação. Agora Inês é morta, e esse tema está aí, presente e forte.”

O novo Escola sem Partido certamente encontrará guarida no Ministério da Educação, sob o comando de Ricardo Vélez Rodríguez, um teólogo, filósofo e professor que, embora nascido na Colômbia, parece oriundo do mesmo universo paralelo de onde saiu Beatriz Kicis, ambos em guerra contra inimigos imaginários como o “marxismo cultural”. Indicado por Olavo de Carvalho, Rodríguez integra a ala psicodélica do governo, onde perfilam também o chanceler Ernesto Araújo e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves. Não se tem certeza ainda sobre qual é o mais doidão entre os três cavaleiros do Apocalipse, mas com certeza o apetite de Damares para o tema sexual lhe tem garantido a dianteira nessa corrida maluca. Rodríguez, no entanto, vem baixando seu tempo a cada volta. A última da semana compete com a afirmação de Damares de que parte de seus diplomas não seria universitária, mas “bíblica”. No caso do ministro, descobriu-se constar em seu currículo um livro de sua autoria organizado por Alexis de Tocqueville, que morreu em 1859. Antes, um outro morto já havia sido molestado em seus devaneios. Em entrevista à Veja, Rodríguez atribuiu a Cazuza a frase “liberdade é passar a mão no guarda (na bunda do guarda, a bem da verdade)”, dita pelos humoristas do Casseta & Planeta. Sob ameaça de um processo pela mãe do cantor, foi obrigado a desculpar-se no Diário Oficial, quer dizer, no Twitter.

Os delírios avolumam-se, a demonstrar que talvez tenhamos todos sido recolhidos a um hospício, sem no entanto nos darmos conta, temática explorada pelo escritor Campos de Carvalho em A Lua Vem da Ásia. Na mesma entrevista à Veja, o ministro disse que “o brasileiro viajando é um canibal, rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião, acha que sai de casa e pode carregar tudo”. Em nota oficial com erro de português e letras em caixa-alta, o MEC classificou o jornalista Ancelmo Gois, de O Globo, como um agente do KGB “TREINADO EM MARXISMO E LENINISMO” pelo serviço secreto soviético. Motivo: o colunista publicara um texto mostrando que vídeos de pensadores de esquerda tinha sido suprimidos de uma web tevê pública. Houve também o caso das alterações dos critérios para a adoção dos livros didáticos, que não precisariam mais tratar de temas como a não violência contra a mulher e a promoção da cultura e história quilombolas e dos povos do campo. Ficariam eliminadas as exigências das referências bibliográficas, seriam aceitos os erros de revisão e a publicidade de marcas. Com a óbvia repercussão negativa das novas medidas, anularam-se as mudanças.

Para Renato Janine Ribeiro, o problema maior reside menos nos devaneios do ministro do que no desmonte que vem sendo operado no MEC. “O fato é que em 20 e tantos anos construiu-se a base para o progresso da nossa educação. Mas o novo governo jogou fora toda essa expertise, todo o conhecimento acumulado”, diz. “Apesar das minhas divergências com o governo Temer, as pessoas trazidas por ele tinham alguma qualificação. A recusa de nomes como (a socióloga e ex-secretária-executiva do MEC) Maria Helena Guimarães de Castro ou (o educador e diretor do Instituto Ayrton Senna) Mozart Neves Ramos me choca, ainda mais quando chegam outros que não têm o menor conhecimento sobre o assunto, nem teórico nem prático.” O professor de bacharelado e pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC Salomão Barros Ximenes vê “uma completa mudança de eixo na concepção do que é a escola e o papel da educação pública, que tem agora como uma de suas prioridades a militarização do ensino como forma de combater a criminalidade. Algo preocupante, porque reacionário, regressivo e autoritário. Tem-se pela primeira vez o abandono declarado do Plano Nacional de Educação. E tudo aponta para uma sinergia sinistra: corte de investimentos, censura e privatização”.

Bia Kicis, a nossa tia das correntes do WhatsApp, tornou-se figura de proa da República. Em novembro de 2017, com a ajuda do empresário Winston Ling, do Grupo Ling, apresentou o “liberal” Paulo Guedes aos filhos de Bolsonaro. Quinze dias depois, iniciava-se a incendiosa relação do pai com o Posto Ipiranga. Deu no que deu. Hoje, Kicis é uma das candidatas à Presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a mais importante da Casa. Periga vermos na educação brasileira a escola sem noção.

Pente fino ideológico

O governo Bolsonaro vai criar uma comissão especial para fazer uma análise ideológica do banco de questões do Enem. O principal alvo será o expurgo de itens que abordem uma suposta "ideologia de gênero", termo nunca usado por educadores.

Uma portaria do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), responsável pelo exame, será publicada nos próximos dias para criar a comissão. Servidores do próprio instituto temem que o pente-fino inviabilize outras abordagens, como visões críticas da ditadura militar, por exemplo. 

Essa é a primeira medida oficial do governo para interferir em conteúdos educacionais. O Enem é porta de entrada para praticamente todas as universidades federais do país. Na última edição, 5,5 milhões de jovens e adultos se inscreveram no exame.

O presidente do Inep, Marcus Vinicius Rodrigues, disse que a comissão vai buscar neutralidade das questões da prova. Esse trabalho estaria na esteira de uma revisão de todos os processos dentro do instituto.

Segundo Rodrigues, a abordagem do tema de gênero não é pertinente para uma prova. "Quando a gente fala em gênero, acho que não cabe a escola tratar disso. Cabe à família tratar disso. Eu não teria como sugerir uma questão que são de assuntos familiares", disse.

"Eu posso fazer uma medição, uma boa redação, para atestar se o aluno tem ou não condições de seguir na vida profissional sem buscar um tema que venha a agredir ou não estar de acordo com alguns valores".

Segundo educadores, a abordagem educacional sobre questões de identidade gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescência, violência contra mulher, machismo e homofobia.

A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Grupos conservadores e religiosos veem nessa discussão um suposto risco de destruição da família tradicional. Na posse como ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez criticou o que chama de "ideologia de gênero" e exaltou a família e a Igreja.

O próprio Bolsonaro catapultou sua carreira política atacando o tema da sexualidade na educação. Segundo ele, haveria ações na escola de estímulo à sexualização precoce.

O Enem é direcionado para a jovens concluintes do ensino médio, de 17 anos, ou que já finalizaram a etapa. Na última edição, mais de um terço dos inscritos tinham entre 21 e 30 anos.

Uma questão do Enem 2018 citava um dialeto utilizado por gays e travestis e foi criticada por Bolsonaro. "Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum. A não ser obrigar para que no futuro a garotada se interesse mais por esse assunto", disse Bolsonaro em novembro, ainda antes da prova.

Em 2015, o tema da redação do Enem foi “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. A proposta trazia um texto da filósofa francesa Simone de Beauvoir, o que foi considerado uma tentativa de doutrinação por parte do então deputado Bolsonaro.

O presidente já indicou que quer ver a prova antes, iniciativa endossada pelo presidente do Inep. Mas a ideia da comissão, no entanto, é que o próprio banco de itens do exame seja alvo de um pente-fino ideológico.

Também não há definição sobre os critérios que vão nortear a análise das questões. "É natural que tenhamos um conhecimento e segurança da qualidade do Banco de itens", diz Rodrigues.

O Banco Nacional de Itens é formado por questões que passam por rigoroso processo de produção. Uma única questão prevê dez etapas, que envolvem desde o treinamento de professores à revisão dos itens por parte de especialistas das áreas de conhecimento. 

Os itens passam ainda por um pré-teste, que é a aplicação das questões a uma amostra populacional com características semelhantes à do público-alvo do Enem. Essa é uma forma empírica de avaliar parâmetros, tais como a dificuldade, o grau de discriminação e a probabilidade de acerto ao acaso da questão.

De acordo com Denise Carreira, da Ação Educativa, "criar uma instância a para censurar questões é mais um retrocesso". Segundo ela, a agenda de gênero tem sido afirmada na política educacional de vários países. 

"Discutir gênero é discutir questões muito centrais da democracia, que afetam a vida cotidiana das mulher, da população LGBT e também dos homens. Quando a gente silencia vai deixando o problema da violência só crescer".

A Pesquisa Nacional sobre Estudantes LGBTs e o Ambiente Escolar, de 2016, indica que 73% dos jovens entre 13 e 21 anos identificados LGBTs foram agredidos verbalmente na escola em 2015 por causa da sua orientação sexual. É o maior índice entre outros cinco países da América Latina onde a mesma pesquisa foi realizada. Já a gravidez é o principal motivo de abandono escolar das meninas.


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