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O paradoxo do Vaticano: uma maioria homossexual e homofóbica

Publicado em 19/02/2019 12:00 -

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Dos seminários à cúpula do Vaticano, a homossexualidade é onipresente na Igreja Católica e ajuda a entender as crises que atingiram a instituição nas últimas décadas, da queda da vocação sacerdotal ao encobrimento do abuso de crianças, além de campanhas contra o papa Francisco.

Essa é a opinião do sociólogo e jornalista francês Frédéric Martel que em quatro anos entrevistou 41 cardeais, 52 bispos, núncios apostólicos, embaixadores estrangeiros e mais de 200 sacerdotes e seminaristas em busca do "segredo mais bem guardado" da Igreja. O resultado é No Armário do Vaticano – Poder, Hipocrisia e Homossexualidade, mais de 600 páginas nas quais Martel (Châteaurenard, França, 1967) expõe a vida dupla e moral do catolicismo romano. A obra "que fará o Vaticano tremer", como resume o jornal Le Monde, será publicada em oito idiomas e em 20 países, coincidindo com a cúpula sobre pedofilia convocada pelo Papa. O livro, com lançamento mundial na próxima quinta-feira, será publicado no Brasil pela editora Sextante.

Os homossexuais, segundo Martel, “representam a grande maioria” no Vaticano. Não estima a quantidade, embora uma de suas fontes lhe garanta que seja “da ordem de 80%”. O autor acrescenta que, entre os 12 cardeais que cercavam João Paulo II na década de oitenta e noventa — em plena devastação pela AIDS e que definiram sua política contra os preservativos —, a maioria era de homossexuais. Para afirmar isso, se baseia nas entrevistas realizadas, algumas com os próprios cardeais.

“A vida privada dos indivíduos lhes diz respeito, e eu quase diria que não nos diz respeito”, diz numa entrevista ao EL PAÍS. “Mas os efeitos deste segredo e desta mentira na ideologia do Vaticano, e suas consequências no mundo, são consideráveis.”

O autor evita falar em “lobby gay”: “Não é um lobby, é uma comunidade. Não é uma minoria que atue, e sim uma maioria silenciosa. Um lobby seria gente unida por uma causa. Aqui cada bispo ou cardeal se esconde dos outros e ataca a homossexualidade dos outros para esconder seu segredo”.

As conclusões do livro e algumas cenas podem parecer ousadas e até mesmo devassas em alguns momentos. “Meu tema não são as festas chemsex”, esclarece Martel em alusão às orgias com drogas que apareceram meses atrás na imprensa italiana. “Meu tema não são os abusos. Meu tema é a vida banal e trágica dos sacerdotes condenados a uma castidade antinatural. E essa gente está presa na armadilha de um armário onde eles mesmos se fecharam, do qual não sabem sair, enquanto no lado de fora todo mundo se diverte.”

A originalidade de sua investigação é que estabelece a homossexualidade — uma homossexualidade calada e misturada a homofobia — como núcleo do sistema eclesiástico. “Quanto mais homofóbico for um bispo, mais possibilidades há de seja homossexual. É o código”, diz na entrevista.

É a chave que permite entender muitos de seus problemas. A reduzida capacidade de atrair a futuros sacerdotes, por exemplo. “Antes, quando você era um menino de 17 anos em um povoado italiano ou espanhol e descobria que não se sentia atraído pelas mulheres, a Igreja era um refúgio. Deixava de ser um pária do qual as pessoas zombavam no pátio da escola para ser considerado Deus”, argumenta. Mas os tempos mudaram. “Inclusive no vilarejo italiano há outras opções além de virar sacerdote.”

Martel insiste no aparente paradoxo de um discurso contra a homossexualidade num Vaticano majoritariamente homossexual. Aborda a trajetória de vários líderes da linha mais rigorosa, como o colombiano Alfonso López Trujillo, já falecido, com relação ao uso do preservativo, e do espanhol Antonio Rouco Varela contra o casamento gay.

O autor se desvincula das denúncias do arcebispo ultraconservador Carlo Maria Viganò, adversário do papa Francisco, e nega que haja um vínculo entre a homossexualidade e os abusos sexuais na Igreja. Mas acredita que a cultura do sigilo decorrente da necessidade de ocultar a homossexualidade protege os abusadores.

“Se você é um bispo e protege a um sacerdote, por que faz isso?”, pergunta-se. “Acho que, numa ampla maioria dos casos, os bispos que protegem os abusadores protegem a si mesmos. Têm medo. Acho que a grande maioria de bispos e cardeais que protegem a sacerdotes pedófilos é de homossexuais.”

Angelo Sodano, que foi núncio apostólico no Chile durante os anos de Pinochet e secretário de Estado no pontificado de João Paulo II, aparece como um dos vilões do livro — por causa de seus supostos arranjos com o regime pinochetista, e também pelo caso do sacerdote chileno Fernando Karadima, a quem Francisco expulsou do sacerdócio em setembro.

“Parece-me claro que Sodano, de acordo com todos os depoimentos, das vítimas e dos advogados das vítimas, não teria participado dos abusos sexuais de Karadima. Por outro lado, parece impossível que não estivesse a par dos abusos.”

E se Sodano é o vilão dessa Sodoma (o título original do livro), o herói é Francisco. “Por trás da rigidez, sempre há algo escondido; em numerosos casos, uma vida dupla”, disse o Papa em outubro de 2016. “O Papa”, argumenta o livro, “deixa acuados certos cardeais conservadores ou tradicionais que rejeitam suas reformas fazendo-lhes saber que conhece sua vida oculta”.

O “quem sou eu para julgar?” que Francisco pronunciou em julho de 2013 ecoa por todo o livro. Martel lhe enviou um exemplar.

Frédéric Martel – Especialista no movimento homossexual e autor de dois livros de referência, Le Rose et Le Noir (“O rosa e o negro”, um retrato dos homossexuais na França desde 1968), e Global Gay, sobre a globalização da questão homossexual. Seu novo livro, No Armário do Vaticano (Sodoma, no título original), uma mistura de reportagem jornalística e ensaio cultural, não se apresenta tanto como uma investigação sobre uma comunidade religiosa, e sim sobre uma comunidade gay, uma das “mais numerosas do mundo”. E escreve: “Duvido de que haja tantos [homossexuais] mesmo em Castro, em San Francisco, esse bairro gay emblemático, hoje mais misto”.


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