23/04/2024 - Edição 540

True Colors

Um pouco sobre irmandade

Publicado em 26/07/2014 12:00 - Guilherme Cavalcante

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Meu irmão se casou nesta sexta-feira, pela segunda vez. No primeiro casamento, há 14 anos, motivado pela gravidez da noiva, houve uma grande festa, cheia de convidados importantes. Mas nesta, bem mais modesta e íntima, somente pessoas queridas prestigiaram a cerimônia. Talvez porque já fosse um casamento consolidado – meu irmão já vivia com a atual esposa há quatro anos e com ela já tem um casal de filhos. Ou talvez porque refletia um grande aprendizado, uma lição: na vida, quem importa é quem você pode contar com.

Eu conto muito com meu irmão. Ao menos uma vez por dia, se a TIM permitir, faço uma ligação para saber dele, da esposa, das crianças, da mamãe… Achei bonito que ele esperou que eu estivesse aqui para que a união fosse oficializada – vai ver ele conta comigo também. Quase não dá certo, mas mexendo aqui e ali, pude estar ao seu lado, como seu padrinho, diante da juíza de paz que conduzia a cerimônia. Eu sempre pensei (e ainda penso) que ser padrinho do meu irmão era uma questão de irmandade, a prova de ouro dos laços sanguíneos, da cumplicidade e da confiança entre duas pessoas que possuem a mesma mãe (sim, só temos mãe em comum).

E enquanto apreciávamos as palavras da juíza, alguns pensamentos vieram a minha cabeça. Primeiro uma pequena lembrança. Depois outra. Depois outra. E rapidamente ali já havia um filme que passava diante dos olhos: eu e meu irmão, nossas histórias em comum e separadas. Os sete anos que nos distanciam, a bicicleta Caloi que herdei dele, a altura que lhe sobra e que a mim falta, o assalto que sofremos juntos, o boneco do He-Man que joguei da janela, o quarto que compartilhamos, os apuros dos quais ele me salvou, o dinheiro que me emprestou, o carro que me ensinou a dirigir…

Meu irmão tem três filhos, duas meninas e um menino. Ter esses sobrinhos é algo que faz de mim uma pessoa mais feliz. Nunca disse a ele, mas senti muita raiva quando ele disse que ia ter um filho, no caso, a minha sobrinha mais velha A raiva era por conta das implicações que uma paternidade aos 22 anos traria, não só para ele, mas para mim, que tinha 15. Eu não achava justo que com aquela idade as coisas tivessem que mudar tanto ao nosso redor, que ele tivesse que casar e sair de casa. Mas a raiva só durou (no máximo) até a barriga da minha cunhada se mexer. E se extinguiu completamente naquela segunda-feira chuvosa, quando esperávamos finalmente conhecer a neném na maternidade.

Nós subvertemos o DNA, nosso amor se justifica desde outras existências e é o que nos torna iguais.

A verdade é que a partir dali tudo mudou. A vinda da minha sobrinha fez com que eu olhasse meu irmão de forma diferente. Não demorou muito para perceber que além de ter uma esposa, meu irmão era um pai maravilhoso, muito devoto à família. Eu, ainda adolescente, já era tio, já tinha responsabilidade de tio: confabulei tradições, planejei gostos em comuns, separei discos, revistas, e até sonhos.

E foi então que vi meu irmão enfrentar sua primeira dor de gente grande. A receita do casamento desandou. Ele quase não soube segurar a onda quando o lance acabou de vez – eu também estava lá e vi que todo término é triste, duro, doloroso, e que às vezes é difícil se reerguer e continuar caminhando sozinho.

Eu mesmo provei o sabor amargo desta verdade, e tive ajuda dele para retornar a caminhar. Embora nunca tivéssemos conversado sobre eu ser gay, meu irmão foi peça fundamental na minha reabilitação, quando meu primeiro relacionamento terminou de forma dramática e indiscreta. Eu lembro bem de ter dito a ele que lamentava por ele ficar “sabendo de mim” daquela forma. E então me disse: “eu já sabia, Gui. Eu sempre soube”. Deu-me um abraço e um beijo na cabeça. “Se quiser conversar, estou aqui. Você é meu irmão, estou para você tal qual Heitor esteve para Paris”.

Eu fiquei surpreso com aquilo. Meu irmão não sabe, mas quando ele saiu do meu quarto, eu sentei no chão gelado e tive uma catarse emocional. Chorei em silêncio até adormecer, mas a razão não era mais meu término. Chorei pela dor de ter segurado meu “segredo” a toa, sem propósito, só por duvidar de que minha família estaria a meu lado em um momento como aquele. Ou por tudo ao mesmo tempo, sei lá…

Com o tempo, feridas curadas, ele conheceu a atual esposa e me deu mais dois sobrinhos, dos quais uma é minha afilhada. Meu irmão se tornou meu compadre e agora é como se eu tivesse tudo, nem consigo imaginar minha vida diferente. Hoje percebo que eu e meu irmão temos uma parceria que transcende os laços sanguíneos.

Nós subvertemos o DNA, nosso amor se justifica desde outras existências e é o que nos torna iguais. Tenho para mim que sermos irmãos nunca foi uma coincidência, mas a mais consciente das escolhas. Temos nossas diferenças e muitas afinidades, claro, mas eu sei (sempre soube) que ele está por perto para me ajudar e me defender, tal qual Heitor está para Paris…

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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