29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Onde a segurança pública vai desafiar Bolsonaro

Publicado em 18/01/2019 12:00 -

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Ônibus e bancos incendiados, bombas na coluna de um viaduto – nos primeiros dias do ano, no Ceará, facções criminosas mediram forças com o governo estadual, que, antes da onda de violência, havia anunciado medidas contra a entrada de telefones celulares em presídios e mudanças no sistema prisional.

Nas penitenciárias, líderes de grupos criminosos realizam seus negócios com tranquilidade por telefone, meio pelo qual também emitiram ordens para os ataques. Estes seriam uma represália ao anúncio do governo estadual de querer pôr fim à divisão carcerária por facções. Atualmente, cada presídio no Ceará recebe criminosos de uma facção criminosa. Os ataques ocorreram depois de o recém-empossado governador, Camilo Santana (PT), ter anunciado que uma das prioridades de seu segundo mandato seria endurecer o sistema carcerário.

A situação no Ceará se tornou um caso para Sergio Moro, o ex-juiz federal que se tornou o rosto mais conhecido da Operação Lava Jato e condenou à cadeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O atual ministro da Justiça no governo do presidente linha-dura Jair Bolsonaro não assumiu apenas a responsabilidade por uma das principais bandeiras do novo presidente, o combate à corrupção, como também pela segurança pública. Sua primeira medida foi enviar a Força Nacional ao Ceará.

Moro está diante de uma tarefa enorme. Com mais de 63 mil assassinatos por ano, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Em vários estados, as autoridades, assoladas por crises financeiras, estão perdendo o controle, enquanto o crime organizado se alastra. Os traficantes de drogas do Brasil são players internacionais, e o aparato de segurança, cheio de funcionários públicos corruptos, não consegue enfrentá-los. Milícias lideradas por policiais corruptos dominam áreas pobres, enquanto as facções controlam os presídios.

Combate ao crime organizado e facções

Moro conseguirá combatê-las? "A gente ainda não viu o plano de governo para essa área para dizer sim ou não", observa Melina Risso, da ONG Instituto Igarapé. "Tudo o que ouvi, durante a campanha, eram palavras de ordem, sem a gente entender, efetivamente, o que será feito. Eram sempre palavras de ordem, mas a gente não viu um plano efetivo, não tinha um plano para a segurança pública", acrescenta a doutoranda em Governo e Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Bolsonaro prometeu apenas colocar Moro no caminho do dinheiro das facções e liberar as armas de fogo para os "cidadãos de bem" poderem fazer sua "legítima defesa". Risso destaca que estudos mostram que mais armas não significam menos, mas mais violência. "Insistir no erro não me parece ser a melhor forma da gente resolver esse cenário", afirma.

No final de 2018, o Instituto Igarapé elaborou uma lista de prioridades para a segurança pública. No topo da chamada Agenda de Segurança Pública É Solução, está a redução de crimes violentos e o enfrentamento do crime organizado, explica Risso.

A organização apoiou a iniciativa do então presidente, Michel Temer, de criar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), cujo objetivo é a integração das polícias e dos sistemas de segurança do país sob coordenação do governo federal, incluindo o Congresso e a Justiça no processo.

Criado em fevereiro de 2018, o Ministério da Segurança Pública ficou encarregado da coordenação do Susp. Mas Bolsonaro passou a nova pasta para o atual Ministério da Justiça, comandado por Moro. "Isso já foi desmontado, a própria estrutura, como prioridade da segurança. Isso de fato retrocedeu. Então volta a ser Ministério da Justiça e Segurança Pública. Mas, de novo, é uma pasta onde não tem a segurança como prioridade.", conclui Risso.

Sem uma integração das autoridades de segurança e do compartilhamento de informações entre polícias e estados, fica difícil combater a violência, diz ela. "Todo mundo andar na mesma direção de fato é o elemento número um para a gente conseguir ter alguma efetividade."

Mas a realidade é outra. "Todas as polícias no Brasil são profundamente corruptas. É apenas uma questão de graduação. A gente sabe, infelizmente, essas variadas forças policiais são muito contaminadas pela corrupção", diz a socióloga Julita Tannuri Lemgruber. "E, por isso, as polícias no Brasil não confiam uma na outra." Lemgruber diz ter saído chocada de várias reuniões entre forças de segurança nos últimos 30 anos. "Como a gente pode funcionar num país em que as polícias não confiam umas nas outras?", questiona.

"Fechando a torneira"

Seria necessário atacar a fonte financeira das milícias lideradas por policiais corruptos e que controlam muitas favelas no Rio, fechando a torneira das fontes de receita e bloqueando suas contas, diz a socióloga. Além disso, comandantes das polícias poderiam simplesmente observar o padrão de vida de seus funcionários, por exemplo com que veículos eles se deslocam para o trabalho, como indicador de corrupção. "O salário deles é compatível? Como é que você adquiriu esse veículo? É uma coisa tão óbvia, chega lá e vê! Vamos olhar se os bens que eles têm são compatíveis com os salários deles. É tão simples", indica.

Lemgruber ainda espera que as relações entre as milícias e a classe política do Rio finalmente venham a público, mas diz ter pouca esperança de que isso vá acontecer. Por outro lado, "a gente está muito dominado pelos casos do Rio de Janeiro. É importante deixar de olhar e pensar que toda a polícia é ruim", diz, por sua vez, Risso. Em outros estados, como São Paulo, houve êxitos na limpeza da polícia.

"Os mecanismos de controle interno, uma corregedoria atuante, efetiva, técnica e preparada, uma atuação forte do Ministério Público tendo uma priorização para estes casos. Aqui em São Paulo tinha um processo de 'saída rápida' – quando você descobre um caso de corrupção e você expulsa essa pessoa rapidamente das forças", enumera a ex-diretora do Instituto Sou da Paz. "Senão, você coloca em xeque toda a segurança pública. As pessoas deixam de confiar na polícia", explica.

Sistema carcerário e maioridade penal

Outro desafio é a superlotação dos presídios, cuja situação se assemelha a calabouços da Idade Média. Mais de 700 mil presos estão detidos nos estabelecimentos penais brasileiros, onde faltam cerca de 350 mil vagas, frequentemente em condições desumanas. "As facções que a gente tem no Brasil nasceram dentro do sistema penitenciário, quase como uma resposta às más condições do próprio Estado", recorda Risso. " A pessoa presa, ela precisa se filiar a uma facção, para ter seus direitos básicos garantidos. Com direito básico, digo 'direito à vida'", afirma. No início de 2017, houve diversos massacres entre facções inimigas em várias penitenciárias do país.

Cerca de metade dos detentos nem mesmo foi condenada pela morosa Justiça brasileira. E muitos dos presos foram detidos com quantidades pequenas de entorpecentes. "A gente tem um processo de encarceramento muito elevado, e muitas vezes de pessoas que nem precisam estar nas prisões. Então, a gente precisa repensar nosso modelo de punição no Brasil. As pessoas continuam na lógica de que a única forma e a única resposta para a violência é o endurecimento penal", avalia Risso.

Mas Bolsonaro prefere apostar no endurecimento das penas e na redução da maioridade penal, que atualmente é de 18 anos, para 17 ou até 16 anos de idade. Um equívoco, aponta Risso: "Na verdade, estamos facilitando o recrutamento pelo crime organizado."


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