20/04/2024 - Edição 540

Especial

Caça às bruxas

Publicado em 22/07/2014 12:00 -

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O recente pedido de asilo político da advogada e militante pelos direitos humanos Eloisa Samy Santiago, e dos ativistas Davi Paixão e Camila Nascimento, destacou-se nos últimos dias como o resultado mais chocante da política de criminalização das manifestações populares e dos movimentos sociais que têm incomodado o poder político e econômico no Brasil desde as manifestações de junho de 2013.

Eloisa foi uma das 23 pessoas alvos de denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, contra quem se expediu mandado de prisão preventiva sob a acusação de suposta associação criminosa durante os protestos realizados durante a Copa do Mundo. Acusada de formação de quadrilha armada, a advogada foi denunciada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por, supostamente, planejar, junto a outros manifestantes, atos violentos em protestos contra o Mundial.

Em vídeo divulgado nas redes sociais (veja abaixo), a advogada diz ser uma perseguida política. “Tenho 45 anos e há 22 anos exerço a advocacia com zelo e responsabilidade profissional. Hoje sou perseguida política e estou sendo criminalizada pela minha atuação na defesa dos direitos de manifestantes. Fui denunciada pelo crime de formação de quadrilha armada com outras 22 pessoas, algumas das quais nem sequer conhecia. Meu único crime é a firme posição que adotei para defender a Constituição”, afirma.

Eloisa tem o apoio da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ), que colocou seus profissionais para defendê-la no processo. A instituição critica as decisões que determinaram as prisões de todos os acusados por se basear em algo que ainda não aconteceu. “Desde o início, não concordamos com a decretação da prisão temporária nem da preventiva. A decisão do juiz não nos parece correta juridicamente. Já pedimos habeas corpus porque as duas são fundamentadas numa avaliação sobre o futuro, de que, em liberdade, todos praticariam crimes. Isso não é fundamento e está reconhecido por nossos tribunais superiores”, argumenta o advogado João Pedro Pádua, vice-presidente da comissão.

Assista ao vídeo em que Eloísa Samy aponta a violação das liberdades civis nas prisões de ativistas no Rio de Janeiro e em São Paulo

As recentes prisões de manifestantes e a estratégia de cerceamento do direito de expressar-se politicamente não são de responsabilidade do Governo Federal. Estão sendo orquestradas por setores das polícias, Judiciário e Ministério Público do Rio de janeiro e de São Paulo — com provável envolvimento dos governos destes Estados. Mas chama atenção o vergonhoso silêncio, diante de tantas e tão graves arbitrariedades, mantido pelo ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo. Sua atitude não honra a responsabilidade de zelar pela preservação das liberdades políticas e pela manutenção do Estado de Direito, num país governado por uma ex-perseguida política.

No dia 17, a direção nacional do PT lançou uma nota de repúdio à prisão dos manifestantes. Assinada pelo presidente nacional da sigla, Rui Falcão, pelo secretário de Movimentos Populares, Bruno Elias, e pelo coordenador do Setorial de Direitos Humanos da legenda, Rodrigo Mondego, a nota avalia que as prisões representam grave violação de direitos e das liberdades democráticas. O texto afirma ainda que o PT repudia a criminalização das manifestações e defende a ampliação dos espaços de diálogo e participação popular. No trecho final, a nota pede ainda que seja repelida a violência de Estado e a intimidação de manifestantes e reivindica a liberdade dos ativistas que ainda se encontram presos.

No último dia 22, durante ato em defesa do Estado Democrático de Direito e contra a prisão dos ativistas, o vice-presidente da OAB no Rio de Janeiro, Ronaldo Cramer, destacou uma série de direitos violados no curso do processo. Em especial, em relação à defesa. "São advogados com dificuldade de acesso aos autos, de falar com magistrados, de saber quais são as provas contra seus clientes", destacou.

Juristas também protestam

Na semana passada, juristas renomados lançaram um manifesto chamando atenção para a ilegalidade dos mandados de prisão. Encabeçado por Fábio Konder Comparato, o documento elenca as violações às liberdades civis presentes nas decisões judiciais e nos inquéritos que geraram as prisões. “Ele é conduzido a partir de um rol de perguntas sobre a vida política das pessoas intimadas. Chegou-se ao absurdo de proceder à busca e apreensão de livros na casa de alguns investigados”, afirma Comparato.

No documento, os juristas destacam o “objetivo ilegal de investigar indivíduos (que) atuam de forma organizada com o objetivo de questionar o sistema vigente”, sem a indicação de qualquer fato específico que constitua crime.

“A ampla maioria das pessoas intimadas para prestar esclarecimentos foi presa ilegalmente, sem flagrante ou qualquer acusação formal de prática de crime. Há infiltração de agentes em manifestações, determinada a partir do inquérito e sem autorização judicial”, afirmam os juristas.

A ampla maioria das pessoas intimadas para prestar esclarecimentos foi presa ilegalmente, sem flagrante ou qualquer acusação formal de prática de crime.

Outro jurista — o advogado Marcelo Cerqueira — se disse estarrecido com a falta de base jurídica que resultou nas prisões. “Com tristeza, tenho verificado que, à falta de uma acusação específica, a polícia e o Ministério Público têm indiciado ou denunciado cidadãos que rigorosamente não praticaram concretamente qualquer delito punível. Mais grave é que magistrados ‘autorizam’ os pedidos de prisão em bloco e, pelo que se sabe (processos correm em segredo de justiça [sic]), as ‘provas’ são fabricadas pela polícia e o MP e os juízes, sempre apressados, não as examinam. O trabalho dos advogados é tolhido pelo arbítrio da ‘justiça’”, afirmou ele em sua página no Facebook.

Cerqueira, um dos mais conhecidos defensores de presos políticos durante a ditadura pós-1964, foi adiante. Segundo ele, os conceitos que tentam embasar as prisões são “fascistas” e foram empregados pela primeira vez no Código Penal mussoliniano, na Itália. Agora, “foram, em parte, assimilados em pleno Estado de Direito, na vigência da mais avançada Constituição do mundo no que diz respeito aos direitos fundamentais”.

Uma das mais respeitadas internacionalistas brasileiras, a professora da Universidade de São Paulo (USP) Deisy Ventura, também se pronunciou sobre a ação penal do Ministério Público contra os manifestantes, em especial sobre a pressão contra a advogada Eloisa Samy.

“É importante esclarecer que esta ação penal é uma completa distorção da ordem jurídica brasileira. Claramente não se trata de associação criminosa, que segundo o art. 288 do Código Penal tem a finalidade específica de cometer crimes. Há abissal diferença entre membro de uma organização política praticar um crime e o fato de fazer parte de organização política ser um crime. Esta diferença se chama democracia. Em segundo lugar, a banalização das prisões e da persecução penal fatalmente levaria à banalização do asilo e de outros recursos últimos. Portanto, a fundamentação do pedido de asilo só pode ser pífia (como afirmou o ministro do STF marco Aurélio Mello) para quem tem uma concepção autoritária do direito penal. Quando as autoridades nacionais que deveriam nos proteger são as que ameaçam nossa liberdade surge a típica situação de asilo. Suprema Ignorância Federal é pensar que asilo só se concede em regimes ditatoriais. Asilo é a proteção do corpo contra a arbitrariedade”, afirmou Ventura.

Há abissal diferença entre membro de uma organização política praticar um crime e o fato de fazer parte de organização política ser um crime. Esta diferença se chama democracia. – Deisy Ventura.

O advogado e professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo Pedro Estevam Serrano aponta que o emprego de prisões preventivas pela polícia contra manifestantes viola as liberdades de reunião e de expressão. "O que ocorre é um desvio de poder pela polícia. Ela usa procedimentos previstos em lei, como as prisões preventivas, para desestimular o exercício do direito de reunião e de manifestação do pensamento protegidos pela Constituição", disse Serrano.

O criminalista e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos afirmou que as prisões de manifestantes não podem ter "caráter profilático" e as detenções devem ser analisadas caso a caso. "Precedentes perigosos podem ser abertos", alertou.

O depoimento do professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, Pablo Ortellado, é um exemplo do clima de repressão que prospera no Rio de Janeiro e em São Paulo. No início do mês ele participava de um debate público pela liberação dos presos políticos na Praça Roosevelt, em São Paulo, quando centenas de policiais militares da Tropa de Choque e da cavalaria iniciaram uma estratégia de provocação, prendendo arbitrariamente diversos participantes do debate. “Simplesmente a liberdade de reunião e a liberdade de manifestação estão suspensas”, afirmou Ortellado, cujo chocante relato é um alerta contra o recrudescimento do aparato de repressão estatal.

Há quem apoie

Há quem defenda as prisões de manifestantes com o argumento de que a violência dos protestos culminou em crimes ou prejuízos à população.

O advogado especializado em direito constitucional e professor emérito da Universidade Mackenzie Ives Gandra Martins é um deles. Ele considera que as prisões efetuadas possuem fundamento legal. "A polícia não está violando a Constituição, está buscando proteger a sociedade. Um bando de mascarados não pode impedir as pessoas de andar pela cidade e realizar atividades como o transporte de doentes", afirma.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que as prisões são legítimas e que há provas de crimes cometidos pelos ativistas. "As investigações são legais e realizadas sob o controle do Ministério Público e do Poder Judiciário que, em momento algum, se manifestaram contrariamente aos trabalhos de apuração", afirmou o secretário Fernando Grella Vieira.

A coordenação de campanha do candidato a Presidência Aécio Neves (PSDB) distribuiu nota em defesa do trabalho da polícia do Rio de Janeiro.

No Rio de Janeiro, o Ministério Público aponta dois episódios para exemplificar as ações violentas dos manifestantes: o incêndio de um ônibus e a pretensão de atear fogo ao prédio da Câmara dos Vereadores. De acordo com o promotor Luís Otávio Figueira Lopes, da 26ª Promotoria de Investigação Penal, uma testemunha aponta Eliza Quadros Sanzi, a Sininho, por incitar manifestantes à incendiar o prédio do legislativo municipal, com o uso de três galões de gasolina. Ainda de acordo com a testemunha, a ação, que não foi datada, foi impedida por outros manifestantes.

Eliza é apontada na denúncia como uma das principais lideranças da Frente Independente Popular (Fip), juntamente com Igor Mendes da Silva e Camila Jourdan. A Fip teria surgido após as manifestações populares de junho do ano passado e se formalizado nos atos de ocupação, como o "Ocupa Câmara". Segundo a promotoria, a organização tinha dois tipos de reuniões – uma pública e outra, privada, na qual somente as lideranças participavam e planejavam os atos violentos.

Ainda na denúncia, o promotor afirma que "em período iniciado após o mês de junho de 2013 e que estendeu-se até o presente momento, os denunciados associaram-se com a finalidade de praticar, no contexto das manifestações, crimes diversos como: posse de artefato explosivo, corrupção de menor, dano básico e qualificado, resistência e lesão corporal (consumada e tentada)".

A coordenação de campanha do candidato a Presidência Aécio Neves (PSDB) distribuiu nota em defesa do trabalho da polícia do Rio de Janeiro. No texto, a campanha de Aécio descreve que "após investigação que durou sete meses, (a polícia) prendeu líderes de manifestações violentas, que atacavam policiais e promoviam a destruição de patrimônio público". A campanha do tucano assinala que a "polícia apreendeu com o grupo bombas de grande poder letal, além de fogos de artifício, pólvora e gasolina utilizados para produzir coquetéis molotov, que podem ferir gravemente" e que "foram flagradas conversas com planos de colocar bombas no metrô e incendiar a Câmara Municipal".

Manifestação não é formação de quadrilha

Desde os protestos de junho do ano passado, a polícia e o judiciário têm enquadrado manifestantes em crimes como “associação criminosa” e “formação de quadrilha”. Para pesquisadores de movimentos sociais, porém, estes novos grupos não devem ser abordados desta forma. Os cientistas sociais que estudam estes movimentos argumentam que estas caracterizações não fazem sentido para estes movimentos, já que eles se organizam de forma horizontal, espontânea e sem lideranças.

Para marcar esta posição, uma nota técnica sobre o “enquadramento jurídico” das manifestações foi elaborada por 17 docentes de universidades brasileiras, como a USP, UFRJ e UnB, e de instituições estrangeiras de prestígio, como a Universidade de Oxford e a London School of Economics, na Inglaterra.

Segundo os cientistas sociais, os movimentos espontâneos que tem ocorrido no país são horizontais, não há chefes ou líderes. “Uma das características mais marcantes dos novos movimentos sociais é sua horizontalidade. Isso significa que não é possível localizar no seu processo de organização social uma pessoa ou um grupo de pessoas cujas determinações sejam acatadas como ordens pelos demais participantes. Assim, apontar alguns manifestantes que participam desses movimentos como líderes ou chefes de quadrilha está em desacordo com as dinâmicas sociais que temos observado e registrado nos nossos estudos”, reforçam.

Os signatários afirmam também que adesão a protestos de rua é espontânea, e que não há quadrilha, nem associação. “Nossa observação e análise tem mostrado que os protestos de rua dos novos movimentos não se caracterizam por planejamento prévio dos participantes. Os participantes de manifestações se reúnem espontaneamente atendendo a um chamado que normalmente se limita a indicar o local do protesto e a causa pela qual se manifesta. As centenas ou milhares de pessoas que se reúnem não constituem uma organização, nem prévia, nem posterior aos protestos. O fato de as redes sociais permitirem que pessoas que participaram ou pretendam participar de protestos comuniquem-se e interajam não é suficiente para caracterizá-las como uma organização já que essa interação é espontânea, informal e não estruturada”, afirmam os signatários do manifesto.


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