19/03/2024 - Edição 540

Judiciário

Tribunal afirma que crime de trabalho escravo não prescreve

Publicado em 18/12/2018 12:00 -

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A 4a Turma do Tribunal Regional Federal da 1a Região considerou imprescritível o crime de trabalho análogo ao de escravo ao avaliar um caso ocorrido há 18 anos. Com isso, negou o pedido de trancamento de um procedimento de investigação criminal aberto pelo Ministério Público Federal e que pode levar à denúncia perante à Justiça e à punição de responsáveis por uma fazenda no Sul do Pará.

O TRF-1 afirma que não há limite de prazo para persecução penal, ou seja, para todo o caminho entre a investigação, o processo e a condenação em um caso de escravidão contemporânea – o que pode servir de referência para outras decisões. Empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo têm usado como estratégia postergar ao máximo as ações, visando a prescrição do crime previsto no artigo 149 do Código Penal, que pune com dois a oito anos de cadeia. 

O Tribunal Regional Federal da 1a Região engloba toda a região Norte e parte da Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, locais que concentram a imensa maioria das ocorrências de trabalho análogo ao de escravo no país.

A decisão tomada pela 4a turma refere-se a um caso emblemático: os 85 trabalhadores resgatados da fazenda Brasil Verde no ano de 2000. O Estado brasileiro foi condenado, em 2016, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – órgão jurisdicional da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por fiscalizar se os países cumprem as obrigações previstas nos tratados continentais nessa área – pela violação ao direito de não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas.

O Brasil, que já contava com um sistema de combate a esse crime, não deu respostas à altura da situação, segundo a Corte. Com isso, tornou-se o primeiro país a ser condenado por escravidão contemporânea pela Corte. A Procuradoria-Geral da República criou, em janeiro deste ano, uma força tarefa para ouvir vítimas e reabrir o caso.

No processo analisado pelos magistrados no dia 11 de dezembro, João Luiz Quagliato Neto, dono da propriedade, pediu um habeas corpus contra o Ministério Público Federal por conta da instalação do procedimento investigatório criminal para apurar as responsabilidades pelo ocorrido. No acórdão, seus advogados questionam a decisão da Corte Interamericana, que solicitou ao Brasil que reabrisse o caso, afirmando que o país reconheceu sua competência apenas em 2002, ou seja, dois anos após o caso ter ocorrido na fazenda. E que os representantes do fazendeiro não foram ouvidos no julgamento da Corte.

Também afirmou que "os alegados crimes investigados estão prescritos segundo a lei brasileira, devendo ser reconhecida a extinção da punibilidade e determinado o trancamento da investigação". O fazendeiro ainda pode recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal.

O relator do caso no TRF-1, o juiz federal Saulo Casali Bahia, negou as três justificativas em seu voto, dando razão ao procurador Wellington Luís de Sousa Bonfim, da Procuradoria Regional da República na 1a Região, que defendeu a reabertura do caso.

Segundo o magistrado, o decreto que reconheceu a competência da Corte previu a admissão de sua jurisdição para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998, momento em que o Estado brasileiro comunicou à OEA sua decisão de à Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, não fazia sentido ouvir o fazendeiro, pois os réus na Corte Interamericana são Estados nacionais – neste caso, o Brasil, por não ter cumprido com suas obrigações de investigar, processar, punir e remediar o dano.

"Nos casos de escravidão, a prescrição da ação penal é inadmissível e inaplicável, pois esta não se aplica quando se trata de violações muito graves aos direitos humanos, nos termos do Direito Internacional. A jurisprudência constante e uniforme da Corte Internacional de Justiça e da CIDH [Comissão Interamericana de Direito Humanos], como referido pelo MPF, assim o estabeleceu", disse o relator em seu voto.

Ele cita a decisão contra o Brasil na OEA em sua justificativa, que afirma que "a escravidão e suas formas análogas constituem um delito de Direito Internacional", lembrando que o Brasil, há décadas, é signatário de tratados e convenções que proíbem sua prática: "A Corte considera que a prescrição dos delitos de submissão à condição de escravo e suas formas análogas é incompatível com a obrigação do Estado brasileiro de adaptar sua normativa interna de acordo aos padrões internacionais. No presente caso a aplicação da prescrição constituiu um obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas, apesar do caráter de delito de Direito Internacional que os fatos denunciados representavam", afirma a decisão de 2016.

A ementa do acórdão da 4a turma afirma que "reconhecer a ocorrência da prescrição significaria afastar normas internacionais já internalizadas e vigentes no ordenamento brasileiro, possuidoras de hierarquia superior, o que não pode ocorrer. Tal entendimento, adotado pelo STF, já resultou na edição da Súmula Vinculante 25, no sentido de que "é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito".

"Não há como se acolher o argumento de que a Constituição limitou os casos de imprescritibilidade aos crimes que indicou [racismo e atuação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático], pois tanto há a abertura constitucional para outras normas de direitos fundamentais oriundas da esfera internacional, caso da imprescritibilidade dos crimes contra direitos humanos, quanto não deve haver a interpretação de que a imprescritibilidade prejudique direitos fundamentais e deva ser interpretada restritivamente, na medida em que a mesma é neutra em relação aos direitos individuais (já que a inocorrência da prescrição tanto limita direitos fundamentais quanto os assegura, ao garantir a prevenção e a repressão a delitos)."

Condenação no Caso Brasil Verde

De acordo com comunicado da Corte, em março de 2000, dois jovens conseguiram escapar da fazenda e, após denunciarem a situação em que se encontravam, o Ministério do Trabalho organizou uma fiscalização que resgatou outros trabalhadores.

"O relatório da fiscalização indicou que eles se encontravam em situação de escravidão. Os trabalhadores foram aliciados por um 'gato' [contratador de mão de obra a serviço de empresas e fazendeiros] nos locais mais pobres do país e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à Fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na Fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada." Esses fatos aconteceram quando a Brasil Verde estava sob propriedade de João Quagliato.

O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Comissão Pastoral da Terra levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), outra instituição do sistema interamericano de direitos humanos, que tentou uma negociação com o Estado brasileiro entre 2012 e 2014. Mas como um acordo entre as partes não foi possível, a Comissão acabou considerando que o Brasil foi responsável pelo ocorrido e levou o caso à Corte Interamericana em 2015. Durante o julgamento, este jornalista foi convidado pela Corte, após solicitação das duas organizações sociais, para oferecer aos juízes um panorama da situação atual do trabalho escravo e do tráfico de pessoas no Brasil.

De acordo com o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional de combate à escravidão da Comissão Pastoral da Terra, "o caso Brasil Verde revelou a incapacidade do Estado brasileiro de enfrentar, na sua integralidade, o problema do trabalho escravo".

"Foi dado um tempo grande para poder negociar elementos de um acordo que, infelizmente, o Estado não assumiu. É lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para garantir que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar. Nossa expectativa é que, na conjuntura politica em que ocorre essa sentença, o Brasil se lembre que está sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser uma referência mundial no combate ao trabalho escravo", completa.

Xavier refere-se ao fato de que a Organização Internacional do Trabalho e outras agências das Nações Unidas consideram o sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil, que resgatou mais de 53 mil pessoas desde sua criação, em 1995, uma referência internacional.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que o conceito de escravidão e suas formas análogas evoluiu e não se limita à propriedade sobre uma pessoa. Segundo o comunicado, o Estado brasileiro não demonstrou ter adotado medidas específicas ou atuou com a devida diligência para prevenir a forma contemporânea de escravidão à qual foram submetidas estas pessoas, nem para por fim a essa situação. Segundo ela, o descumprimento de seu dever de garantia é sério quando se leva em consideração o seu conhecimento sobre o contexto e a particular situação de vulnerabilidade dos trabalhadores.

De acordo com a Corte, nenhum dos procedimentos legais no Brasil determinou qualquer tipo de responsabilidade, nem serviu para obter reparação para as vítimas ou chegou a estudar a fundo as violações denunciadas. Nosso país decidiu aplicar a prescrição a esses processos, apesar do caráter imprescritível desse delito de acordo com o Direito Internacional. Para a Corte a falta de ação e de sanção destes fatos se deve à normalização das condições às quais as pessoas com determinadas características nos estados mais pobres do país eram submetidas. Portanto, considerou que o Estado havia violado o direito de acesso à justiça das 85 vítimas, e também de outros 43 trabalhadores que foram resgatados em 1997 na mesma fazenda, e que também não receberam uma proteção judicial adequada.

Beatriz Affonso, diretora do do Cejil no Brasil, afirmou, em nota que comentou o julgamento em 2016, que "a decisão do tribunal é emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do direito internacional, por entender que a aplicação da prescrição constitui um obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas".

A Corte ordenou diversas medidas de reparação, entre as quais reiniciar as investigações sobre o caso, adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas e pagar indenizações correspondentes aos trabalhadores.

Posição do governo sobre a prescrição

A então Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal afirmou, após o julgamento, que reconhecia a condenação no caso da fazenda Brasil Verde e que entendia a Corte Interamericana de Direitos Humanos como legítimo intérprete da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, exercendo um "papel de grande relevância na proteção dos direitos humanos na região".

"Consideramos que a sentença da Corte IDH, não obstante condenatória ao Estado brasileiro, representa uma oportunidade para reforçar e aprimorar a política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo, especialmente no que se refere à manutenção do conceito, assim como em relação à investigação, processamento e punição dos responsáveis pelo delito", afirma a Secretaria.

"É louvável o reconhecimento pela Corte da eficácia das políticas públicas de combate ao trabalho escravo no país. Para a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a sentença poderá catalisar esforços para a manutenção do conceito contido na normativa nacional e o aprimoramento da política de prevenção e erradicação do trabalho escravo."

A nota também afirmava que a Secretaria celebra a interpretação da Corte de que a proibição da escravidão representa uma norma imperativa de Direito Internacional e implica obrigações ao Estado. "Assim, consideramos que a recente sentença da Corte IDH representa mais um componente a fortalecer os esforços na eterna luta pela efetivação dos direitos humanos, em especial para o enfrentamento ao trabalho escravo e a reparação adequada às vítimas desse crime", conclui.

Leonardo Sakamoto – É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.


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