29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

George Orwell às avessas

Publicado em 12/12/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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Aconteceu na tarde de domingo, dia 9, em um condomínio de classe média alta, em Brasília. Na quadra esportiva, duas crianças de seis anos jogavam bola. Um dos meninos escorregou e deu com a cara no chão. Chorando, foi buscar consolo em casa. Encontrou fúria. De acordo com as imagens das câmeras de segurança, o pai do garoto veio à quadra possuído, gesticulando e fazendo ameaças. Segurou o outro menino e exigiu que o próprio filho desse um tapa no coleguinha. Depois disso, a mãe dele se juntou ao petit comité de linchamento e também agrediu a criança.

Diante da imagem do filho chorando, os adultos entenderam que o melhor curso de ação seria a vingança. Contra uma criança de seis anos de idade. Pior, exigiram que o próprio filho executasse a sentença, rosto ainda marcado por lágrimas e – provavelmente – pela dor da queda acidental.

Abusar psicologicamente do próprio filho e agredir fisicamente o vizinho não foi o bastante. A mãe se sentiu justificada em ela mesmo esbofetear o menino. O casal, que por sinal não é morador do condomínio mas visitavam o avô que é o real condômino, sentiu-se legitimado em adotar o Estatuto da Criança e do Adolescente da Lei de Talião: olho por olho, dente de leite por dente de leite.

Vamos recapitular para ficar claro: o filho dos descontrolados caiu sozinho, como costuma acontecer com os pequenos. O vídeo é claro. Mas isso não importa. Não deve importar para nós, que sabemos que nenhuma criança merece ser socada, e claramente não importou para os pais truculentos. O que eles queriam era claro: que alguém pagasse pelo inconveniente: ter sua tarde de domingo importunada pelo chororô. Alguém precisava pagar, e o filho falou que estava jogando bola com alguém. Ilogicamente, concluíram que esse alguém deveria pagar, fosse quem fosse.

O que me interessa sobre essa história é justamente essa parte: essa falta de ponderância que culminou com dois adultos abusando de duas crianças, incluindo a própria prole. Essa ausência de empatia e de ponderância que parecem ser a tônica central da classe média brasileira. É um misto de desconfiança nos processos civilizatórios com desejo de poder. Não o poder conciliatório, moroso, diplomático e de longo prazo. O poder violento, desmedido, desproporcional. O poder que acredita que violência é a melhor forma de educação e que o diálogo é subversivo e doutrinador.

Esses pais, que responderão na justiça por agressão e ameaça, não estão sós. Bastam alguns segundos nos fóruns dos portais de notícia que reportaram o acontecido. Eles apenas foram filmados no ato de uma prática velada de exercício de agressão. Conheço muito pai de família que teria feito o mesmo. Não me surpreenderia se este também fosse o posicionamento do presidente eleito.

Este é o Zeitgeist que paira sobre o Brasil na virada do ano. E contra ele, não há muito que se possa fazer. Punir os excessos, sim, claro. Mas para isso, será preciso uma multitude de câmeras e circuitos internos capaz de fazer George Orwell chorar. No futuro distópico brasileiro, a vigilância digital é mais aliada que inimiga, por incrível que pareça.

E é isso que eu te desejo, amigo leitor. Que em 2019, você não seja uma vítima. Mas, caso venha a ser, que seus agressores sejam capturados, pelo menos em vídeo.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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