26/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Escola sem Partido é uma forma de macarthismo barato

Publicado em 27/11/2018 12:00 -

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Os americanos são fanáticos por listas de “melhores” e “piores” de seja lá o que for. Eles gostam de escolher desde os “dez melhores discursos presidenciais” até as “dez piores partidas de basquete da NBA” de todos os tempos. No mundo do Direito, são famosas as listas das melhores e piores decisões da Suprema Corte dos EUA. Há, inclusive, vários livros com essa temática.

Prefiro sempre estudar aquelas últimas, as decisões terríveis da corte constitucional americana, porque elas nos ensinam a sociologia das fragilidades judiciárias, demonstrando como juízes do mais alto gabarito podem, frequentemente, deixar-se levar por preconceitos tolos ou pela idiotice que não raro toma conta da opinião pública, patrocinada por políticos estúpidos ou velhacos. Ao mesmo tempo, as “piores decisões judiciais” são um alívio para céticos como eu, demonstrando que os votos vencidos de ontem poderão ser os votos vencedores de amanhã.

E, neste campo, a Suprema Corte dos EUA tem, de fato, uma verdadeira coleção de decisões bizarras e estapafúrdias que, felizmente, com o decurso do tempo, foram superadas (“overruling”) por jurisprudência mais sensata, equilibrada e razoável. Ou, até mesmo, desconstituídas por decisões legislativas e executivas (cabe lembrar que no sistema norte-americano, a Suprema Corte não apenas exerce o controle de constitucionalidade, como uniformiza a interpretação das leis federais).

Eis apenas alguns exemplos dentre os mais conhecidos das “piores decisões” constitucionais que acabaram condenadas pela história: Em Dred Scott v. Sandford (1857), a mais alta corte americana negou a cidadania aos negros nascidos nos EUA e declarou a inconstitucionalidade do Compromisso do Missouri, precipitando a Guerra Civil; em Plessy v. Ferguson (1896), a maioria da Corte considerou constitucional a odiosa doutrina racista “iguais mais separados”; em Lochner v. New York (1905), prevaleceu a opinião de que o Estado não poderia limitar a jornada dos trabalhadores, retardando o progresso do Direito do Trabalho nos EUA em pelos menos trinta anos; em Schenck v. U.S. (1919) uma decisão unânime condenou por delito de opinião manifestante que pregava a recusa ao alistamento militar obrigatório; em Buck v. Bell (1927) a Suprema Corte considerou constitucional lei estadual que autorizava a esterilização compulsória em doente mentais; em Minnersville v. Gobbits (1940), a maioria julgou constitucional lei que permitia punir alunos que se negassem a jurar a bandeira na escola, desencadeando perseguições às Testemunhas de Jeová; em Korematsu v. U.S. (1944), a corte concordou com a internação compulsória de americanos descendentes de japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

Enfim, a lista é longa e esta é apenas uma pequena amostra. Mas certamente não poderia faltar neste rol das mais ignominiosas decisões da Suprema Corte o celebérrimo caso Adler v. New York 342 U.S. 485 (1952), que, a seu tempo, foi uma espécie de julgamento sobre a “escola sem partido” no Estado de Nova Iorque. O caso Adler foi emblemático das perseguições a professores, intelectuais, artistas e servidores públicos durante o macarthismo, período de investigações de comissão do Congresso americano sobre atividades comunistas nos EUA, chefiado pelo temível senador Joseph McCarthy.

Em uma época de grande acirramento decorrente da Guerra Fria, os processos inquisitórios de comissões parlamentares, do FBI e de órgãos administrativos geraram nos EUA um clima de “caça às bruxas” entre a intelectualidade americana, especialmente em relação a ativistas políticos dos mais variados matizes. As acusações de “comunismo”, “socialismo”, “espionagem” ou de “atividades antiamericanas” por comitês de vários órgãos públicos (notadamente o do Senado presidido por McCarthy) foram muitas vezes feitas de forma precipitada e sem o devido processo legal, não raro com o intuito de perseguir adversários políticos, destruindo reputações e condenando milhares de pessoas ao ostracismo social. Até mesmo homossexuais foram coagidos sob a alegação de “perversão”.

Essa onda de perseguição do governo federal a quem destoava do mainstream político levou muitos Estados e municipalidades a criarem leis locais permitindo a exclusão de suspeitos de pertencerem a organizações “subversivas”. Os professores estavam dentre as vítimas preferenciais destas perseguições macarthistas, pois foram editadas então inúmeras normas do tipo “escola sem partido”, que tinham como objetivo vigiar os docentes e expurgar do sistema de ensino aqueles que eram considerados como “doutrinadores perigosos”.

Depois que o presidente Harry Truman expediu a ordem executiva de 1947 determinando procedimento para investigação de “lealdade” dos servidores federais, o Estado de Nova Iorque adotou a “Feinberg Law” de 1949, prevendo a possibilidade de demissão de professores que pertencessem a “organizações subversivas” e abrindo a possibilidade de que fossem denunciados pelas suas palavras em sala de aula. Além disto, a lei permitia que os professores fossem convocados à presença do Superintendente do Conselho das Escolas do Estado de Nova Iorque e indagados: “você é ou foi membro do partido comunista?”

Sob aconselhamento dos advogados do sindicato dos professores, boa parte dos professores recusou-se a responder a essa pergunta, ao argumento de que a questão violava estatuto dos servidores públicos do Estado de Nova Iorque, que proibia questionar o servidor sobre sua afiliação política. Irving Adler, além de professor da rede estadual, era um escritor, matemático, cientista, ativista político e educador, autor de 57 livros, publicados em 31 países, em 19 línguas diferentes.

Tendo sido um dos professores que se recusou a se submeter à humilhante sabatina, Adler foi despedido por insubordinação. Ele, juntamente com outros membros do corpo docente, processou o Estado de Nova Iorque na Justiça Federal, alegando a inconstitucionalidade da norma por violação à liberdade de expressão (Primeira Emenda) e o caso chegou à corte constitucional americana.

Em 1952, a maioria dos “Justices” da Suprema Corte, deixando-se tristemente levar pela “onda anticomunista”, por seis votos a três considerou a Lei Feinberg constitucional e os atos demissionais compatíveis com a Constituição. Porém, em meados da década de 1960, depois que os inúmeros abusos da Comissão McCarthy vieram à publico, a decisão seria revertida no caso Keyishian v. Board of Regents 385 U.S. 589 (1967), que finalmente pôs fim às ridículas leis de “escola sem partido”. Curiosamente, o que entrou para os anais da Suprema Corte não foi a decisão proferida em Keyishian, mas sim o memorável voto vencido redigido pelo célebre Juiz William O. Douglas no caso Adler, que então escreveu páginas indeléveis para definir a perniciosidade das tentativas do Estado em controlar a palavra dos professores em sala de aula:

As consequências desta lei são típicas do estado policial. A Lei de Nova Iorque transforma o sistema escolar em um projeto de espionagem. Os professores estão sob constante vigilância; seus passados são esquadrinhados à procura de sinais de deslealdade; suas manifestações são observadas como possíveis indicações de pensamentos perigosos. As salas de aula são cobertas por um pálio. Não pode haver real liberdade de cátedra neste ambiente. Quando a suspeita empesta o ar e mantém os professores subjugados, medrosos da perda de seus empregos, não pode haver livre exercício da inteligência. O servilismo e o dogmatismo substituem a indagação. Passa a existir uma linha de partido tão perigosa quanto a linha de partido dos comunistas“.

Os brasileiros ultraconservadores que paradoxalmente se acreditam liberais e apoiam o macarthismo barato das leis conhecidas como “escola sem partido” precisam, com urgência, recapitular a história dos EUA nos anos 1950 e, principalmente, ler o voto vencido do grande Juiz norte-americano William Douglas (voto que o tempo transformou em vencedor). Se, ao lê-lo, mudarem de opinião, poderão se dizer, de fato, liberais. Mas se continuarem a apoiar essa sandice, não passarão de liberais de fancaria, como tantos que há em nosso país.

***

Os professores do Estado de Nova Iorque que haviam sido demitidos na década de 1950 sob a Lei Feinberg entraram com nova ação de reintegração no emprego após a mudança de jurisprudência determinada pela Suprema Corte no caso Keyishian. Irving Adler foi reintegrado e se aposentou em 1977. Ele se transformou em um ícone da liberdade de cátedra nos Estados Unidos. Em 2009, recebeu da American Civil Liberties Union um prêmio pela sua “dedicação de quase um século em transformar o mundo em um lugar melhor e mais humano, através de sua fé inabalável nos direitos individuais e no tratamento igual perante a lei”. Irving Adler faleceu aos 99 anos em setembro de 2012, em Bennington, Vermont.

Cássio Casagrande – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.


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