19/03/2024 - Edição 540

Especial

Sob a sombra da teocracia cristã

Publicado em 26/11/2018 12:00 -

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O número de denúncias de discriminação religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana no Brasil feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento 24 horas do Ministério de Direitos Humanos, aumentou 7,5% em 2018. Foram 71 denúncias do tipo feitas de janeiro a junho deste ano, contra 66 no mesmo período de 2017.

Já as denúncias feitas por discriminação contra todas as religiões caíram de 255 para 210, queda de 17% no mesmo período. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Em todo o ano 2017, foram 145 denúncias de discriminação religiosa em todo o país. São Paulo teve 29 denúncias por meio do canal. O estado só fica atrás do Rio de Janeiro, com 34 denúncias.

Nem todos os casos são denunciados pelo telefone do ministério. Ouvidos pela reportagem, adeptos de religiões afro que sofreram violência não conheciam o canal.

Ao mesmo tempo em que crescem as denúncias de violência, as religiões afro-brasileiras registraram crescimento de 43,8% no número de adeptos em São Paulo, de acordo com o estudo “Diversidade Étnico-racial e Pluralismo Religioso no Município de São Paulo”, publicado em dezembro de 2016.

Ao todo, 50.794 pessoas declararam ser de umbanda, 18.058 do candomblé e 854 de outras religiosidades afro-brasileiras. A soma representa 0,6% das 48 religiões ou convicções filosóficas declaradas. “Muitos de seus fiéis preferem não se identificar publicamente por receio de discriminação religiosa”, diz o estudo.

Invasão e destruição

A casa de candomblé Ilê Asé Ojú Oyá, localizada em Guaianases, bairro da Zona Leste da capital paulista, foi atacada em março deste ano. Paula Torrecilha Ty Ayrá, 31 anos, conta que o local foi invadido, teve objetos furtados e quebrados.

"Quando chegamos, encontramos tudo revirado, todos nossos objetos sagrados no chão, espalhados, coisas vandalizadas, quebradas. Na cozinha jogaram todos nossos alimentos no chão. Muita coisa foi roubada", disse.

"Em um primeiro momento, ficamos bem fragilizados, com medo de que acontecesse novamente e nos tornasse vítimas de violência física, além da violência psicológica que um caso desses submete não só os integrantes da casa, mas toda a comunidade. Mexer com um acaba abalando o todo", conta Paula.

Segundo ela, a casa é formada majoritariamente por mulheres lésbicas, bissexuais, trans negras e periféricas. "Somos todas de luta. Esse ataque, que queria nos fragilizar, nos destruir, só serviu para nos unir e fortalecer. Descobrimos juntas um meio de restabelecer nosso Asé que foi profanado, reerguer tudo que foi levado e destruído."

Para Alexandre Cumino, sacerdote de umbanda e diretor da Associação Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo (Aueesp), a intolerância religiosa é advinda do preconceito em relação ao negro, à cultura do negro e à religião do negro.

"Boa parte dos casos [de violência] está relacionada a segmentos religiosos que têm uma discriminação e um preconceito na sua pregação doutrinária e identificam o Deus do outro como o diabo", explica ele.

Cumino é autor do livro "Exu não é o diabo", que desmistifica a ideia de que o orixá Exu é o representante do mal e por isso deve ser combatido.

"Há pessoas de outras religiões que acreditam que nosso orixá o Exu é o diabo. Quando se identifica o nosso orixá como o diabo e o diabo como o responsável por todos os males, então na cabeça torpe e infame do ignorante, se acabar com a minha religião, vai acabar com o diabo"

Segundo Cumino, que é bacharel em ciências da religião, não existe diabo na umbanda e no candomblé. Essas religiões não 'culpam' o diabo pelo mal ou por seus erros.

"Diabo é principalmente uma criação judaico-cristã e mais especificamente católica. O Lúcifer é bem católico mesmo, ele não existe no judaísmo. Você tem lá o Satã ou o Shaitan, que é uma figura muito específica no Velho Testamento. No livro de Jó, Satã senta ao lado de Deus e eles estão conversando o que vão fazer com Jó. Então esse Satã judeu que é um opositor, ele não é nem de perto esse grande diabão que construíram e muito menos os Exus, os orixás, ou as entidades de umbanda ou de candomblé, religiões que não reconhecem nenhum diabo. Quando a gente [adeptos da religião] faz uma coisa errada é a gente mesmo [que fez]".

A yalorixá (mãe de santo) Gabriela Beck, 39 anos, do Centro Cultural Eyin Osun, na Vila Industrial, extremo Leste de São Paulo, conta que a confusão entre o orixá Exu com Satanás já lhe rendeu ameaças com faca.

"Temos um vizinho que cresceu comigo no bairro e agora é evangélico. Ele acredita que o Satanás está instalado na minha casa. É desesperador. O problema dele é a casa de candomblé, onde também moro com meu pai. Ele nos ameaça com faca, nos ofende. Eu acho que em grande parte porque meu pai é idoso eu sou mulher. Eu tenho medo dele fazer alguma coisa, colocar fogo na minha casa, matar meu pai", diz ela.

Racismo religioso

A maioria dos adeptos de religiões afro-brasileiras na cidade de São Paulo é formada por pessoas brancas, de acordo com uma pesquisa da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial. São 60,6% brancos, 13,1% pretos e 25,5% pardos.

Embora sejam frequentadas mais por brancos, as religiões de matriz africana são majoritariamente associadas e a negros por causa de suas origens, de acordo com a secretária executiva de Promoção de Igualdade Racial da prefeitura de São Paulo, Elisa Lucas Rodrigues.

"Tudo o que se refere a negros há um olhar extremamente preconceituoso aflorado. São crianças agredidas nas escolas e todo tipo de absurdo que vemos todos os dias na televisão, É engraçado porque se você vai a terreiros, vê maior quantidade de brancos. Eu mesma conheço médicos e advogados, gente da classe média, que está aderindo a essas religiões. mas eles também sofrem essas agressões por serem de uma religião que remete a negros", diz Elisa Lucas Rodrigues, secretária executiva de Promoção de Igualdade Racial da prefeitura de São Paulo

O advogado e ex-secretário da Justiça do estado de SP, Hédio Silva Jr., 57 anos, adotou o termo "racismo religioso" para os casos de preconceito a adeptos de religiões de matriz africana.

"Não é tão comum ofensa a ateu, agnóstico, judeu, as ofensas são direcionadas a umbandistas e candomblecistas. E é assustador a apropriação de espaços públicos por grupos privados, por exemplo nas escolas, onde funcionários tornam a escola pública extensão do seu centro religioso", diz ele.

Segundo o advogado, o papel do estado pelo que determina a Constituição é o de assegurar que todos os segmentos religiosos possam se manifestar em clima de harmonia e paz. "O estado acaba sendo cúmplice na propagação dessas violências em um país como o nosso, que tem uma riquíssima geografia de identidade cultural".

Hedio criticou o primeiro pronunciamento de Jair Bolsonaro (PSL) que citou versículos da Bíblia sagrada no domingo (28), logo após ser eleito.

"Nós somos uma diversidade, somos um país plural inclusive do ponto de vista religioso. O primeiro mandatário do pais ignorar essa diversidade e assumir publicamente que tem compromisso com uma religião, significa que ele vai atuar por uma fé apenas e isso é péssimo. A crença ou a descrença são matérias do âmbito privado e da autonomia individual. As autoridades públicas não podem tomar uma atitude que afeta toda a população orientadas com base em normas religiosas e privilegiar um grupo com critérios religiosos porque aí já não é uma democracia."

Punição

A impunidade é um dos motivos para que crimes de violência contra adeptos de religiões de matriz africana sigam acontecendo em todo o Brasil, de acordo com Hédio.

"O sistema penal funciona segundo os valores da elite branca, para eles esse tipo de crime não é relevante. Há uma subestimação da gravidade. De acordo com a ONU, 75% dos conflitos armados, em curso tem alguma motivação cultural ou religiosa, então é gravíssimo porque esse tipo de violência vulnera a dignidade e compromete a paz", opina.

Hédio relembrou o caso do pastor Sergio von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, que em 1995 chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida durante a apresentação do programa “Palavra de Vida” na Record.

"Não é porque achamos que o intolerante tem de ir pra a cadeia, mas é que a impunidade retroalimenta a intolerância. Há uma banalização e uma naturalização contra as religiões afro-brasileiras, coisa que não acontece com as demais religiões. Você se lembra da comoção social quando um pastor chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida? Fatos muito mais graves atingem cotidianamente os terreiros e não geram a mesma repercussão", diz Hédio.

Em São Paulo, a deputada estadual Leci Brandão tem um Projeto de Lei (226/2017, de 25/04/2017) que tramita na Alesp (Assembleia legislativa de São Paulo que dispõe sobre penalidades administrativas a serem aplicadas pela prática de atos de discriminação por motivo religioso. A multa por reincidência pode chegar a R$ 77 mil.

"Existe uma dificuldade desse projeto ser aprovado porque não é de interesse de todos, mas acredito que com leis mais duras, casos de violência seriam coibidos. Quando a pessoa é obrigada a colocar a mão no bolso, percebe que aquilo não é uma brincadeira. A pessoa xinga e ofende, mas ninguém quer ser processado", opina Elisa.

Já existem leis que punem a intolerância religiosa. Os artigos 1º e 20 da Lei nº 9459, de 13 de maio de 1997 dizem que prática, indução ou incitação de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é passível de reclusão de um a três anos e multa.

Também há o artigo 208 do código penal e o artigo 5º da Constituição, que diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Para Hédio, o problema é a interpretação para o cumprimento das leis. "Nós temos boas leis para o enfrentamento da intolerância, o problema é a interpretação que o sistema penal dá a essas leis. Um dos desafios do período temeroso que vamos enfrentar é garantir uma interpretação dessas leis para que elas sirvam, de fato, para punição."

Sacrifício animal é julgado no STF

Uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questiona uma lei do Rio Grande do Sul que, em 2006, autorizou o sacrifício de animais em cultos de religiões cuja matriz seja africana. O julgamento foi suspenso no dia 9 de agosto após dois votos serem apresentados.

Na ocasião, os ministros Marco Aurélio Mello e Edson Fachin votaram a favor da prática. Alexandre de Moraes pediu vista, ou seja, mais tempo para analisar o caso. Ainda não há data para uma nova votação.

Para o Ministério Público do estado, a lei não pode dar tratamento privilegiado a um grupo religioso.

"Inúmeras outras expressões religiosas valem-se de sacrifícios animais, como a dos judeus e dos muçulmanos, razão pela qual a discriminação em favor apenas dos afro-brasileiros atinge frontalmente o princípio da igualdade, com assento constitucional", argumentou o MP.

Para Cumino, há sacrifício animal em outra religiões, como o judaísmo, islamismo e hinduísmo, mas só o candomblé (a umbanda não faz sacrifício animal) é atacado por causa do ato.

"No Judaísmo também tem sacrifício animal, no Velho Testamento da Bíblia Deus explica como fazer. Mas o único sacrifício animal que incomoda é o sacrifício [da religião do] negro? O bicho que você come tem de morrer para você comer. Mas nas religiões africanas, o bicho que você vai comer, você sacrifica ele em ritual para depois você comer. As partes que você não come são entregues em oferenda a uma dividade, isso é lindo, é um ritual. Você não mata bicho a torto e a direito, nenhuma religião faz isso."

Para Cumino, a intolerância é advinda do preconceito, que, por sua vez, provém da ignorância, que está disseminada.

"Isso se combate com informação, com esclarecimento e com alguns casos deve-se combater com a Justiça. Os adeptos das religiões afro-brasileiras, a umbanda e o candomblé principalmente, não agridem ninguém. Nós não acreditamos que a nossa religião é melhor do que a religião do outro, nós acreditamos que todas as religiões são importantes. A melhor religião é a que faz de você uma pessoa melhor. Agora como é que eu bato e agrido em nome de Cristo?"

Para o sacerdote, pessoas que cometem crimes em nome de Cristo estão "enganadas"

"Religião é a prática do bem, não importa qual religião. Todas as religiões praticam única e exclusivamente o bem, Isso vale para a religião judaica, cristã, o islã, o budismo, vale para todas as religiões de matriz africana, vale para a umbanda. Quando não for assim, é um engano. Agora, muitas pessoas estão enganadas, né? Há pessoas enganadas no cristianismo, há pessoas enganadas na umbanda, no candomblé, e ateus também. Todos têm o direito de viver como quer, mas tem o dever de respeitar como o outro quer viver."

Saiba como denunciar

Os tipos de violação relacionadas à discriminação religiosa de matriz africana recebidos pelo Disque 100 são:

  • Abuso financeiro e econômico/violência patrimonial
  • Discriminação
  • Negligência
  • Outras violações/outros assuntos relacionados a direitos humanos
  • Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes
  • Violência física
  • Violência institucional
  • Violência psicológica
  • Violência sexual

O Disque 100 funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.

As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel (celular), bastando discar 100.

As denúncias recebidas são encaminhadas para o Ministério Público e para o Decradi – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, onde também é possível denunciar.

O que é o Estado Laico? E por que ele é importante

O conservadorismo, o obscurantismo, o racismo e a xenofobia estão reaparecendo no mundo. Do “Tea Party” americano aos grupos governistas da Ucrânia, passando pelo coração da Europa e chegando ao Brasil parece ser esse um movimento mundial, embora ainda não homogêneo. Sociólogos falam do “desencanto” das pessoas pela sociedade de massas capitalista contemporânea e sua falta de igualdade e opções sociais, psicólogos falam do efeito negativo das novas tecnologias e do modo de vida contemporâneo, dos estímulos que o indivíduo recebe para o individualismo causando uma série de problemas para sua saúde psicológica e física. Historiadores preferem ver nesse movimento uma tentativa de combate às modificações que os últimos 30 anos encerraram: os governos populares de esquerda na América do Sul e a grave crise do capitalismo que desde 2008 assola o mundo sem trégua. Economistas se preocupam com o PIB.

A análise de todo esse fenômeno é algo para alguns livros e obviamente não há espaço nesse artigo para fazê-la. Entretanto, todos os problemas acima citados seriam combatidos com um Estado que primasse pela igualdade e justiça sem discernir pensamentos, cores da pele, gostos sexuais ou preferências religiosas. Um Estado que compreendesse a força e o tamanho da palavra “Cidadão”. E é exatamente aí que as forças que mais trabalham pela volta desse obscurantismo trabalham. Sem Cristo, nem Buda, nem Maomé, nem Moisés, Oxalá, Bahaullá, Anunakis ou quaisquer outras hierofanias, o Estado tem apenas o cidadão a quem ouvir e prestar contas. Com qualquer dessas personificações divinas acima de mim, de você, de nossos filhos e pais teremos o fim da igualdade.

Em primeiro lugar, laico não quer dizer contra a religião. Laico quer dizer dissociado dela. Como dois mundos que convivem, mas não se sobrepõem, especialmente nos espaços públicos. Se um juiz quer manter o crucifixo no seu escritório isso é de foro privado, mantê-lo num tribunal é uma afronta ao Estado laico. Estamos acostumados a fechar os olhos para essas afrontas quando elas são feitas pela Igreja Católica. Aceitamos, crucifixos, orações antes de votações, menções no nosso dinheiro de louvor a Deus, menções em leis e códigos de inspiração divina e etc. Basta que se troque o crucifixo pela estrela de davi ou pelo cajado de oxalá para que a gritaria comece. Perceba que já aí acaba a igualdade. Temos um ranço medieval pútrido que pode nos fazer pagar caro. Melhor dizendo, nós até podemos pagar caro, as Igrejas – que gozam de imunidade de impostos – não pagam nada. Precisa de mais algum exemplo para você concluir, de imediato, que não há igualdade? E perceba que sequer falei ainda nos direitos daqueles que não tem religião alguma …

Desde o surgimento da humanidade até o século XVIII (Iluminismo) as diversas formas religiosas estiveram intimamente ligadas às formas de controle da população. Falando de forma menos precisa, mas de mais simples entendimento, até o século XVIII a religião foi usada como forma de dominação do Estado e, por conseguinte, das pessoas. Por mais de quarenta séculos (4000 anos!) faraós, xamãs, oráculos, sacerdotes de todas as formas, reis com origem divina, santos, monges e etc. tiveram primazia nas decisões de Estado, submetendo as populações à sua vontade dizendo que, em realidade era a vontade de seu Deus. Poderia até ser, mas o fato concreto é que esses 4000 anos não são caracterizados como um período de paz, de tolerância, de amor ao próximo, de igualdade entre os homens ou mesmo de fortalecimento de comportamentos que as religiões costumam se arrogar, como amor, solidariedade, piedade e etc. Existem mares e desertos de distância entre o dito e o efetivamente feito durante esse tempo. Mares e desertos somente cruzados ou abertos para a população nos livros que essas mesmas religiões julgam sagrados.

Se olharmos apenas para a modernidade, evitando erros de interpretações e que esse texto fique cheio de vocabulário pesado, vamos perceber que as sociedades europeias regidas pela religião foram as que mais mataram, devastaram, escravizaram, desumanizaram e destruíram outras civilizações e áreas do globo. Tudo em nome de Deus. No século XX as maiores atrocidades são cometidas em nome da Santidade da cidade de Jerusalém ou de Alá. E para que você não pense que conflito religioso e massacre é coisa de gente não-civilizada, por décadas a Inglaterra anglicana cometeu atrocidades contra a Irlanda católica (em pleno século XX), e os populações cristãs dos EUA chacinavam minorias étnicas ou religiosas. Provavelmente você viu muito pouco disso na televisão … Talvez queira ler a letra de “Sunday, bloody Sunday” do U2 e saber do que se trata.

Veja que não são seres “irracionais” que entendem as palavras de suas respectivas religiões de forma errônea e daí praticam absurdos. O monstro parece não precede o fundamentalista. Os dois são a mesma coisa. A explicação mais correta é que esses diversos escritos por se dizerem a palavra suprema rebaixam todas as outras palavras e por não aceitarem que a cultura e educação terrena estejam acima dos “desígnios” do sagrado perpetuam uma escala de valores em que a palavra divina é necessária, imprescindível e suficiente para a vida humana. Para eles o Corão, o Pentateuco, a Bíblia e outros estão acima de Shakespeare, de Victor Hugo, de Einstein ou da ONU. Por óbvio, estão acima da Constituição, do Código Civil e da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou mesmo da carta de amor que um muçulmano escreveu para uma judia, que um umbandista escreveu para uma evangélica. E, segundo eles, não há nenhuma necessidade de conhecer nada além da palavra de Deus. Esta palavra que não se ouve, escrita num livro que não se viu escrever, repetida por pessoas que não a levam como código de suas vidas tem mais poder que os pedidos de piedade, ajuda e justiça daqueles que você vê, sente e toca, daqueles que precisam e choram.

Não é verdade que a religião leva somente a ignorância. O mundo Bizantino (o que englobaria hoje a Turquia, por exemplo) foi centro de esclarecimento, pesquisas e cultura durante dos séculos V e XV d.C. O Islã provocou na península ibérica um desenvolvimento de universidades e trocas de saberes entre o oriente e ocidente sem precedentes entre os séculos IX e XV d.C. Mesmo durante a Idade Média, não podemos nos esquecer que Santo Agostinho é um dos filósofos mais conhecidos do mundo ocidental e era padre, tal qual Jean Bodin (Ciência Política e Direito), Gregor Mendel (Pai da Genética), Roger Bacon, Giordano Bruno, William Ockham e etc … Atualmente temos inúmeros padres cientistas que foram imprescindíveis para o desenvolvimento da ciência como Georges Lemaitre, Landell de Moura e etc. A lista é realmente longa. A questão é que enquanto a religião dominar o Estado ela decide quem é apto a conhecer o quê e exatamente o quê pode ser conhecido. Obviamente que a popularização do conhecimento (em um conhecimento livre) é inexistente e impensada.

Se tudo o que já foi falado ainda não é suficiente para que você entenda a necessidade de um Estado laico, talvez você seja religioso e pense que não há problema nos argumentos acima. Mas aí está também um erro. Se você é religioso deveria também exigir um Estado que não fosse religioso. Afinal você nunca saberá qual exatamente será a religião que estará no poder, qual será o líder e que linha de entendimento dessa mesma religião ele tem. Cristãos mataram cristãos durante a Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea na Europa. Muçulmanos chacinaram muçulmanos nas disputas entre califados e sultanatos, entre sunitas e xiitas e assim continuam fazendo. Judeus matam judeus de etnias e linhas religiosas diferentes. E mataram por serem os mortos cristãos, muçulmanos e islâmicos. Foi assim no passado e será assim sempre. O estado laico é a garantia que você poderá exercer seu credo, sua fé ou nenhuma fé sem que qualquer outro credo religião venham a se constituir como “poder de fato” e lhe retirem esse direito.

“Não acredite que aqueles que falam por Deus em seus ministérios continuarão fazendo quando assumirem o Estado. Não acredite num Deus que escolhe seus ministros para serem ricos e bem sucedidos e seus fiéis para receberem as migalhas. Não acredite que alguém que não consegue erradicar a pobreza da sua quadra enquanto enriquece aviltantemente vá resolver os problemas de um país todo. É muito mais provável que ele venha a ficar ainda mais rico e os problemas que já não eram resolvidos em nível local também não o sejam no âmbito nacional. A história mostra que não existe instituição religiosa pobre, não existe líder religioso que não esteja de mãos dadas com a riqueza terrena material. Já sua massa de fiéis continua sempre com a mesma vida, e as mesmas agruras. E isso desde Tutancâmon no Egito até Silas Malafaia hoje. Todos. Sem exceção”, afirma Fernando Horta, historiador, professor, doutorando em relações Internacionais UNB.


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