28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Uma Solução Chinesa para o Brasil

Publicado em 14/11/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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Há algumas décadas a China entrou de cabeça no mercado global e começou sua caminhada rumo ao topo da cadeia alimentar das economias mundiais. Se hoje a muralha chinesa faz sombra nos EUA, país nenhum sai do feudalismo para se tornar uma das nações mais ricas do mundo sem algum tipo de fricção cultural. Uma das grandes dificuldades da sociedade chinesa é o déficit de confiança da população nas instituições e – por que não dizer – em seus os próprios cidadãos.

O grande segredo do sistema financeiro é que, em grande parte, se trata de um mecanismo ancorado em confiabilidade. Confiamos nos bancos, confiamos que o cidadão vai honrar seus compromissos e assim por diante. Sem esse acordo social, não há país que vá pra frente.

Cada país desenvolve uma forma para lidar com essa "falta de confiança". No Brasil, temos o Serviço de Proteção ao Crédito – SPC, que mantém uma lista das pessoas que têm dívidas em aberto. Os EUA trabalham com um sistema de pontuação. Quanto mais ativa e pontual a pessoa é nas suas transações comerciais, maior sua pontuação. Pegou dinheiro emprestado e pagou em dia? Sobre o crédito. Deu calote? Desce o crédito.

Para a China, nenhum dos dois sistemas funcionaria, já que uma grande parcela da população vivia como no século XV até ontem, sem qualquer histórico de movimentação financeira. O governo chinês tirou a solução diretamente de um episódio de Black Mirror.

Para quem não sabe, "Black Mirror" é uma série de ficção científica na Netflix. Cada episódio explora as consequências da evolução tecnológica da sociedade, normalmente com um viés pessimista. No episódio "Nosedive," toda interação entre pessoas é avaliada com "estrelinhas" via smartphone, assim como já fazemos com motoristas e pizzarias. Gostou da pessoa, cinco estrelas. Pessoa meio mala? Uma, duas estrelas. Como consequência, cria-se na sociedade uma elite "cinco estrelas" com acesso a melhores oportunidades, e uma classe de "desestrelados", marginalizados e esquecidos.

Pois alguém na China deve ter assistido a esse episódio sem legenda e adaptou a ideia na vida real. Na cidade de Rongcheng, 700 mil habitantes já estão vivendo este novo paradigma de contrato social.

Lá, tudo o que o cidadão faz impacta a sua "avaliação cidadã". Parou em lugar proibido? Perde pontos. Fez trabalho voluntário? Ganha pontos. Violou a lei do silêncio depois das 22 horas? Perde pontos. Reciclou o lixo? Ganha pontos. E assim por diante.

O resultado da pontuação cria diferentes categorias de confiabilidade. Os que estão na categoria "A" recebem algumas vantagens, como convites para eventos exclusivos promovidos pelo governo, linhas de crédito a juros especiais e ganham preferência para empregos públicos. E mais: sua "nota" é informação pública e pode ser consultada via app. Alguns empresários usam essa informação para escolher seus empregados. Alguns donos de imóveis priorizam os inquilinos de melhor pontuação. Efetivamente, quem é avaliado como uma melhor pessoa recebe melhores privilégios na sociedade como um todo. E quem está mal na lista se torna um pária, incapaz de abrir negócios, ter conta em banco, alugar e comprar imóvies. Lá, quem não segue as normas sociais de conduta vira um marginal, literalmente. Quando alguém liga para o celular de uma pessoa com baixo crédito social, antes da ligação completar, o cidadão ouve uma gravação que começa com uma sirene de polícia, seguida da mensagem: "Atenção. Você está prestes a falar com um cidadão de baixo crédito social. Cuidado. Não confie nesta pessoa ou faça transações comerciais com ela". Juro.

O programa é um sucesso e a previsão é que em dois anos, todo o país adote o modelo de crédito social.

As últimas eleições no Brasil mostraram que somos um país obcecado pela remoralização da pátria. Fora a corrupção e "tudo isso que está ai", foi a única plataforma da maioria dos candidatos eleitos. Sejam eles capacitados para tal tarefa ou não. Sejam eles mesmos corruptos ou não.

No ímpeto de purificação, buscamos soluções pelo tempo e espaço. Misturamos a fanfarronice desregulatória Norte-Americana com a brutalidade institucional das Filipinas. Da Itália, mixamos a Operação Mãos Limpas com o facismo pré-guerra.

Mas uma coisa é a solução que buscamos, outra é a que precisamos. Talvez a chave para a moralização do Brasil tenha um perfil mais individual. Já imaginou, por exemplo, se adotássemos o modelo do Crédito Social Chinês? Se avaliássemos cada cidadão como avaliamos políticos e pizzarias? Qual seria o impacto deste sistema na Afonso Pena, nos Jardins, no Leblon?

Talvez a China tenha algo para nos ensinar. Basta saber se queremos aprender.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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