19/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Chame o Xamã

Publicado em 19/01/2018 12:00 - Rodrigo Amém

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Evo Morales é visto pela imprensa como uma espécie de Maduro Light. Tem aquela mesma paixão pelo poder que se renova ad nauseum, além dos figurinos pitorescos e culturalmente engajados. Mas tem, acima de tudo, uma narrativa de retomada do poder pelo povo indígena depois de séculos de dominação caucasiana.

Ao contrário do seu colega venezuelano, nem toda decisão de Morales é um equívoco constrangedor e trágico. Por exemplo, Evo regularizou o aborto para gestações de até oito semanas. Por outro lado, também retomou as refinarias da Petrobrás em solo boliviano. E Lula bateu palmas e achou bonito, diga-se de passagem.

Nos últimos meses, uma outra briga de Evo tem chamado a atenção, pelo menos nos portais "gospel". Acontece que o presidente boliviano está tentando aprovar uma lei que proíbe "o recrutamento de pessoas para participação em organizações religiosas ou de culto".

É importante que se diga que Evo Morales não é um presidente particularmente secular. Ano passado mesmo, ele participou de um ritual indígena aimará para aplacar a seca que se abateu sobre o seu país. Isso mesmo: o presidente participou de uma cerimônia de dança da chuva. Neste contexto, a nova lei parece perseguição à liberdade religiosa. E é.

Evo se defende afirmando que a questão está na palavra "recrutamento". A igreja neo cristã pode existir, pode fazer seu culto, pode até cobrar o dízimo. Só não pode recrutar. Como você determina a diferença entre conversão e recrutamento é o grande mistério. Como determinar a natureza do engajamento religioso do fiel? Talvez seja necessário chamar um Xamã.

A saída para um governante que pretende libertar seu país do obscurantismo religioso não é a canetada autoritária. É a educação. É a saúde. Uma nação com sólidos índices de desenvolvimento humano tende a ser mais resistente aos impostores que vendem uma vida melhor no céu.

Além da narrativa histórica de resgate das raízes culturais indígenas, há outras questões importantes em jogo. Atire a primeira pedra quem nunca viu um picareta de bíblia debaixo do braço explorando gente humilde. Atire a segunda quem nunca soube de associações entre pastores de araque e traficantes, políticos e outros bandidos.

Para um governante populista como Morales, ter sua base eleitoral minada por salafrários pode ser fatal. Na Nigéria, o Boko Haram, por exemplo, dilacerou a democracia com um fanatismo religioso de quinta categoria. No Brasil… bem, todos sabemos como a religião afeta a política no Brasil.

Mas eis o problema: o direito à religião é fundamental para a sociedade. Qualquer sociedade. Ainda que, eventualmente, cultos e seitas se tornem uma ameaça para a democracia. O credo no imponderável é um dos preços da liberdade. Sempre haverá um impostor explorando inocentes. Quando a natureza desta relação é meramente comercial, trata-se de estelionato, e a vítima tem direito à proteção do Estado. Quando a natureza desta relação for religiosa, a vítima tem direito a não ser protegida. Porque o valor que se dá ao conforto espiritual é pessoal e intransferível. E se o cidadão quer doar seu tempo, dez por cento de seu salário, seus bens, a poupança de seus filhos ou o governo do seu país, é um direito dele, assegurado pela Constituição. Porque não é a falta de regulamentação estatal que permite que o povo seja explorado por gente sem escrúpulos. É a falta de perspectiva e esperança que proporciona terreno fértil para os ladrões da fé.

A saída para um governante que pretende libertar seu país do obscurantismo religioso não é a canetada autoritária. É a educação. É a saúde. Uma nação com sólidos índices de desenvolvimento humano tende a ser mais resistente aos impostores que vendem uma vida melhor no céu. Na Holanda, igrejas abandonadas viram livrarias, cafés e museus. O mesmo acontece até nos EUA de Trump, veja você. Este é um comprometimento difícil, de longo prazo, com resultados que só se fazem sentir nas futuras gerações. Mas é o único caminho.

Porque leis opressoras são tão eficazes quanto dança da chuva.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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