28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A descoberta das aspas

Publicado em 29/05/2015 12:00 - Rodrigo Amém

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Blarg terminava os últimos detalhes no rabo do búfalo. Urg chegou bufando.  

– Rapaz, desse jeito não dá – desabafou Urg, jogando a clava ao lado do fogo.

– Vixe. Que bicho te mordeu? – perguntou Blarg, enquanto jogava areia na parede para secar a tinta ocre.

– Ah, você não vai acreditar. Sabe aquela fêmea do clã na beira do rio? Aquela novinha? Das tetas grandonas?

– Seeeei… – sorriu Blarg, já semi ereto.

– Então. Peguei.

– Zoou! Mandou bem, lobão! – vibrou Blarg.

– Aí que você se engana! Eu cheguei, cheio de respeito. Quando ela virou de costas, sentei minha clava na cabeça dela. Pensei: "me dei bem! ela tá caídinha" Peguei pelo cabelo e fui puxando pra minha toca.

– Maneiro!

– Pois é! Mas aí ela acordou e fez um escândalo! Me chamou de monstro, de babaca, tentou me bater.

– Que isso? Ela não gosta de macho?

– Foi o que eu pensei. Que ela era dessas fêmeas meio macho. Mas ela disse que não, que isso de bater na cabeça era agressivo, que ela exigia respeito, que ela também era neandertal e exigia ser tratada como "neandertal" – disse Urg fazendo as aspas com os dedos, muito embora ele não conhecesse o conceito de aspas. Blarg também não entendeu o gesto, mas deixou pra lá.

– Que absurdo, isso. Onde vamos parar? Esse negócio de direitos iguais está deixando a planície muito sem graça. Não pode mais nada!

– Mais nada! Daqui a pouco a gente não vai mais poder nem pegar a comida daquelas famílias de fracotes que moram no pântano.

– Pode crer! Vão falar que "não é justo" pegar comida dos outros. – Blarg fez as aspas no ar com as mãos e sentiu que tinha pegado o conceito do gesto.

– Aí eu perguntei pra tetuda. "Que que tu quer da vida, tetuda?! Não quer macho, não? Quer cuidar de cria, não?" Sabe o que ela respondeu?

– O que?

– Que ela quer ser respeitada. Quer um macho que a valorize como neandertal, não como objeto.

– Ah, já vi tudo. Ela deve gostar daqueles afrescalhados que andam reto, que parecem que têm um pedaço de árvore amarrado no lombo. Esse povo que não usa mão pra andar, só pra fingir que é mais alto.

– Dá vontade de encher de porrada esses boiolas. Só pra aprenderem a andar que nem macho!

– Fica tranquilo, meu irmão. Isso não vai dar nada, não. No final das contas, fêmea gosta é de macho que nem a gente. Sempre foi assim, "sempre vai ser". – Blarg fez as aspas no ar de novo, exibindo sua dificuldade de adaptação com novos conceitos. 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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