18/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Parados no tempo

Publicado em 01/07/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Tem gente que faz bastante força para não enxergar os problemas estruturais da sociedade. Alguns, por pura falta de empatia. Outros, para evitar a desconfortável conclusão de que, se o tal jogo é de cartas marcadas, talvez eu não seja tão bom jogador assim. 

E a galera interessada na preservação do status quo utiliza diversas artimanhas. A maior delas é a fulanização histórica. Seus parças nas cátedras e editoras criam narrativas heróicas de personalidades, as publicam em livros didáticos, criam feriados e – principalmente – erguem estátuas em homenagem a esses mitos.

Nem de longe é uma estratégia nova: se hoje temos mais versões de Nossa Senhora do que do Peter Parker no Aranhaverso, é porque a igreja católica já reconhece a importância da fulanização histórica há um bom tempo. Isso sem falar dos quase 900 santos.

Transformar uma pessoa num símbolo é uma maneira muito eficiente de higienizar a história de um povo e a própria biografia do retratado. Quando os imigrantes italianos nos Estados Unidos precisaram idealizar sua narrativa na história norte-americana, surgiu o mito de Cristovão Colombo, o descobridor das Américas, que nada descobriu, mas muito saqueou e pilhou, financiado pelo rei da Espanha. Hoje, falar em remover estátuas de Colombo dos locais em que centenas de pessoas foram massacradas pelo próprio, é visto como uma ofensa "às tradições dos ítalo-americanos". 

Não é à toa que o sul dos EUA está apinhado de estátuas de generais da guerra civil. Racistas, escravocratas, sádicos. Seus crimes são ressignificados como atos de bravura por aqueles que endossam essas homenagens. Negros norte-americanos que hoje vivem naquelas regiões tem que conviver com essa ameaça velada nas praças públicas, mantidas com o dinheiro público. 

Os conservadores de sempre reclamam que destruir estátuas é apagar a história. Um argumento que ninguém utiliza quando se trata de um busto do Hugo Chaves ou do Saddam Hussein. Como a maioria dos discursos tradicionalistas, é um argumento de conveniência.

O que os "defensores da história" não toleram é a desfulanização das narrativas históricas destes heróis que resolveram magicamente problemas sistêmicos que, obviamente, ainda não foram plenamente superados. Estátuas revertem transformações sociais em conquistas de indivíduos. Calcificam, subliminarmente, a ideia de que "só gente que ganha estátua na praça pode mudar as coisas. Só quem vira estátua pode fazer história". A estátua imortaliza o personagem e congela a narrativa. É um ponto final numa conversa que está longe de ser concluída. 

Não se trata de fazer de conta que o passado não ocorreu ou apagá-lo. Pelo contrário. Quem faz isso é a torcida do pedestal, que se recorra a reexaminar as próprias narrativas. Há lugares onde os flagelos da história são preservados para que as futuras gerações se envergonhem de nós. Chamamos estes espaços de museus e bibliotecas. Esculturas de facínoras e memorabília nazista têm lugar num contexto de conservação histórica e compreensão contextual. Derrubar estátuas de personagens históricos não apaga a história, mas permite que ela avance e que os mitos sejam superados pela evolução, inclusão e progresso social. 

Além do mais, é um troço feio pra cacete. 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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