19/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Tchau, Democracia querida!

Publicado em 30/10/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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Não repare agora, mas a democracia está morrendo. Não aqui, apenas. No mundo todo. Não por causa da aliança entre milicianos, baixo clero político e alto clero pentecostal. Está morrendo porque perdeu a razão de ser. Deixou de ser útil como instrumento de apaziguamento popular. 

"Que bobagem, rapaz!", dirão os constitucionalistas, sempre prontos a passar pano para o status quo. "As instituições são fortes! Não só no Brasil como no resto do mundo. Mesmo que se desconfie da política brazuca, as grandes nações ainda são democráticas e assim permanecerão por muito tempo!". 

Será, amigo? Senão vejamos.

A democracia dos EUA começou a desmoronar em 1974, quando Nixon enfrentou um processo de impeachment e precisou renunciar. Apesar dos fortíssimos indícios de abuso de poder, o público norte-americano coxinha teimava em apoiar seu presidente. Somente depois de muitas semanas de jornalismo investigativo nos principais órgãos de imprensa, a opinião pública passou a apoiar o processo de impeachment. Acuado, Nixon renunciou. 

A elite conservadora anotou a lição no caderninho. Não, não precisavam de melhores políticos, mas de uma imprensa para chamar de "sua". Nascia assim a Fox News, maior rede de TV a cabo dos EUA, especializada em "endireitar" as notícias. Na sequência, o partido republicano abraço no neopentecostalismo como base eleitoral, formando a bolha conservadora que tomou conta do interior do país. 

O objetivo, no entanto, nunca foi combater a esquerda ou o "comunismo", necessariamente, mas associar posicionamento político à identidade cultural. 

É o que nos habituamos chamar de "guerra cultural". Posicionamentos políticos intimamente ligados à religião e identidades tribais, orientados pela coletividade. Quem mora em lugar x, vai na igreja x e convive com as pessoas x, jamais pensará y. Neste cenário, não se muda de opinião porque não se muda de tribo. A esquerda, por sua vez, adotou estratégias semelhantes, acolhendo precisamente a população rechaçada pelo conservadorismo religioso, o que aumentou o distanciamento. 

Enquanto a imprensa ocupou o centro do discurso, havia um fiel da balança na divulgação dos fatos. Quando a busca pela sobrevivência comercial fragmentou as mídias através do espectro ideológico, a notícia virou um iogurte, com sabores variados a gosto do freguês. Esse processo só piorou com a chegada da internet, onde não há diferença entre notícia e meme.

A cada ciclo eleitoral, o grupo dos indecisos, independentes ou desinteressados mingua, alargando o fosso ideológico entre eleitores. Já foi um terço, estatisticamente. Hoje, nem isso. 

E quando o núcleo isentão deixar de existir, a democracia deixa de fazer sentido. Vira performance, show, carnaval. Perde sua função fundamental: manter a ilusão de alternância de poder. Taí toda empresa petrolífera que não me deixa mentir. Pergunta pros Rockfeller.

Mais um empurrãozinho e a sociedade, como um todo, vai entender que há melhores maneiras de escolher quem toca o país. É para lá que rumamos, e não falta gente querendo dar esse "empurrãozinho", seja na Universidade de Chicago, nas casernas, nos púlpitos ou na lista de empregados do mês do Popaye's do Maine. 

Quando, então? Hoje? Amanhã? Semana que vem? Não sei. Esse é o problema da perspectiva histórica. Soa distante e artificial e nós preferimos pensar em situações personalizadas, causos. 

O declínio do império romano, por exemplo, levou uns quatro séculos, mais ou menos. Mas, para o cidadão de Roma à época, por mais feias que as coisas estivessem, a impressão era que a coisa tinha jeito. Afinal, eram romanos, poxa! Os donos do mundo! Até o dia em que deixaram de ser. 

O ser humano percebe aceleração, não velocidade. Para nós, é difícil perceber que o declínio da democracia pós-moderna está à toda. E eu não vejo qualquer motivo para a coisa ser diferente na Argentina, na Itália ou aqui. Convenhamos.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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