20/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Scorsese está certo, mas está errado

Publicado em 16/10/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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Martin Scorsese é um laureado diretor de cinema norte-americano. Além de Taxi Driver, Scorsese é famoso por ter dirigido A Última Tentação de Cristo, um filme que foi alvo de protestos de muitos religiosos que se recusaram a ver o filme e faziam piquetes na porta dos cinemas. 

Mas o mundo dá voltas. Agora, Scorsese é quem se recusa a ver filmes de protagonistas com poderes sobrenaturais. Numa entrevista recente à revista Empire, o diretor disse que não assiste filmes de "super-herói". "Eu não assisto. Já tentei, sabe? Mas não é cinema. Honestamente, por mais bem feitos que sejam, com atores fazendo o melhor que podem naquelas circunstâncias, são como parques de diversão. Não é cinema de seres humanos tentando transmitir experiências psicológicas, emotivas, para outro ser humano."

Francis Ford Coppola, outro mestre, não só concordou como foi mais longe: disse que Scorsese foi gentil em sua crítica e chamou os filmes de herói de "desprezíveis". Spielberg não chegou a tanto, mas profetizou que o gênero teria o mesmo fim que o faroeste, relegado ao esquecimento. 

O vitríolo que se ostenta contra os filmes da Marvel e da DC só é comparável com a condenação a filmes pornográficos. Não consigo me lembrar de um cineasta que ache filmes de terror imorais, ou que considere as comédias do Adam Sandler como "não-cinema", por exemplo. Seriam os filmes de super-herói tão obscenos? Por que? O que leva estes honoráveis senhores a um posicionamento tão generalista e agressivo contra um gênero cinematográfico?

Minha primeira hipótese seria à aversão ao fantástico. Não, não estou falando do programa dominical, mas das narrativas que fazem uso de elementos não-realistas. Monstros, heróis super-poderosos, mágica. Como disse Scorsese, esses seres super-poderosos não são capazes de "transmitir experiências psicológicas, emotivas, para outro ser humano". Conflitos resolvidos através de raios laser, força sobrenatural e efeitos especiais não são reais. Logo, não são verdadeiramente humanos, acho que seria esse o argumento. No entanto, seres fantásticos sempre fizeram parte da "cultura clássica". O que dizer dos Trabalhos de Hércules, dos embróglios entre os moradores do Monte Olimpo, das aventuras de Ulisses na Odisseia? Até mesmo do realismo mágico de Gabriel Garcia Marquez, para não mencionar o maior super-herói de todos os tempos, que caminhava sobre as águas e deu a vida para salvar a humanidade. Uma narrativa que o próprio Scorsese fez questão de recontar. Histórias que, retratadas no cinema contemporâneo, usam e abusam de efeitos especiais onde a mágica serve de metafórica mediação das tensões entre seres humanos. 

Talvez o que desautoriza os filmes da Marvel e DC de usarem a classificação "cinema" seja o fato de que são produtos de consumo de massa. Todos iguais, produzidos em escala por grandes coorporações gananciosas. Não me parece que é possível dizer que Antman e Wolverine sejam "iguais". Na verdade, não me parece nem correto falar em gênero super-herói. Hoje, os personagens dos quadrinhos são retratados nas telonas em diferentes estilos, com variados tons, da comédia ao terror, com influências que vão do Western à elementos Shakespeareanos. Os resultados podem até ser questionáveis, mas não cabe falar em "padronização" sem colocar todo o cinema comercial no mesmo balaio. Sim, o cinemão é formulaico por natureza. Mas isso é um problema da Marvel, das comédias brasileiras, dos Velozes e Furiosos. Até do nosso amigo e detrator Spielberg. Isolar os super-heróis no problema é meio cínico. 

Então, ora bolas: Por que os tiozões da sétima arte não reconhecem Marvel e DC como cinema?

Minha teoria: Scorsese está certo, mas está errado. 

Ele não reconhece esses filmes como cinema porque o cinema mudou. O cenário da indústria de entretenimento é tão dramaticamente diferente do que era há 30, 40 anos, quando ele e Coppola mandavam e desmandavam em Hollywood, que não perceberam que o cinema virou um outro tipo de experiência. Os filmes menores, intimistas, os "Roma" da vida, encontraram casa em telas mais reservadas e intimistas, como nos serviços de streaming. As telas grandes, Imax, 3D e 4D, os grandes eventos culturais e globais, isso é o cinema do século XXI. Sejam super-heróis ou monstros, os protagonistas de Hollywood são gigantes que falam para a massa, não para o indivíduo. 

Scorsese diz que não reconhece filme de super-herói como cinema, mas o que não reconhece mais mesmo é o próprio cinema, que se transformou em outra coisa e o deixou no século passado. E talvez seja essa sua kriptonita.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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