19/04/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Chega de Bolsonaro

Publicado em 31/07/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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Até meados do século passado, era comum ouvir uma máxima nos círculos familiares e profissionais: "Futebol, religião e política não se discutem". Tinha uma razão de crer para que tal regra fosse tão presente. Futebol e religião eram manifestações de identidade social. Não tinham relação com argumentos. Não eram aspectos objetivos da vida. A questão não era simplesmente qual o melhor time, ou qual doutrina teológica fazia mais sentido. Eram dogmas baseados em paixão, superstição e tradição. Éramos deste time e igreja porque todos da família eram, ou porque fomos expostos a este clube ou livro sagrado desde muito cedo. Ninguém escolhia, de verdade. Eram só instrumentos de interação com nossos amigos e parentes. Coisa de tribo, não de intelecto. 

Mas política não era assim.

Não se discutia política, de início, por medo. Porque debater ideias sobre poder e organização social sempre foi um ato revolucionário que mais cedo ou mais tarde lhe custaria o pescoço. 

No futebol, sem dúvida, também se matava. Mas integridade física do torcedor estaria quase sempre garantida, contanto que se mantivesse do lado certo da arquibancada. Na religião, claro, também se matavam blasfemos, mas com fé e reverência às lideranças todos eram acolhidos no rebanho. 

Mas falar de política sempre foi perigoso. Basta uma discordância para que o prestígio de décadas de militância diligente fosse por água abaixo. Ter opiniões políticas, ainda mais ideológicas, consistia em navegar as consequências práticas da administração pública a partir de dogmas teóricos. Era fácil se ver mal interpretado e alinhado com o outro lado, ainda que momentaneamente. 

Quem viveu sob uma ditadura conheceu esse perigo. Muito liberal que criticou as políticas das cavalgaduras de farda que governaram o Brasil acabou registrado como "comunista". Muita gente morreu denunciando as cafajestices da caserna. 

Não falávamos de política, mas não porque era inútil, mas porque era arriscado criticar o poder. 

Quando os militares e o empresariado que os encilhavam cansaram de brincar de sete de setembro, a abertura parecia anunciar um novo tempo para o embate democrático brasileiro. Parecia.

Apesar do fim da censura e a chegada das eleições diretas, falar de política continuou sendo tabu. A tal da anistia "ampla, geral e irrestrita" pautou uma nova mordaça no debate nacional. Quem tinha as mãos sujas nos porões da ditadura fez questão de mudar de assunto, deixar o passado pra lá. Não falar de política virou uma fuga para quem preferia não admitir a própria responsabilidade pela montanha de cadáveres que os milicos deixaram para trás. O cidadão de bem não queria falar de política para não ter que falar de culpa.

Mas culpa é um troço que envelhece rápido. 

Em menos de trinta anos, não apenas nos esquecemos do tabu de falar de política. Tomamos gosto pela coisa. Como nossa única prática de diálogo era comparar campeonatos e escalações, passamos a discutir política nos mesmos termos que falamos do Paulistão ou da Copa do Brasil. Ou seja, política virou esse jogo desimportante de fazer chacota com o porteiro. 

O problema foi a internet, que transformou parentes distantes, desconhecidos e robôs em vizinhos. Aí política, futebol e religião viraram três lados de uma mesma identidade tribal, impermeáveis a qualquer argumento. Aí a democracia começou a ruir. 

O teto já estava caindo quando comecei a escrever neste espaço. E enquanto a casa não vier abaixo por completo, pretendo continuar. Mas essas férias de julho me levaram a refletir sobre meu papel nesse cabaré em chamas. 

Decidi que não falarei mais sobre Bolsonaro. Sei que é estranho para um comentarista político ignorar o presidente da república. Mas é mais estranho um presidente ignorar o discurso político. Nada que Bolsonaro diz e faz tem a ver com discurso político. São bravatas, grosserias de apelo tribal, idiotices e intolerâncias das mais várias matizes facistóides. Muito pouco do que sai daquela boca contribui para o debate democrático. 

Para você, amigo leitor, pouco muda. Quem procura desesperadamente justificar sua aliança com esse governo continuará dando suas cambalhotas filosóficas e me xingando. Quem o odeia, vai continuar se refestelando na burrice de Vossa Excelência. Só não contem comigo como buffer de indignados. Vou deixar as reações apopléticas a cada bobagem Bolsonariana para meus colegas de profissão. 

Já disse aqui que, inclusive, espero que Bolsonaro conclua seu(s) mandato(s). Acho importante que o país sinta a plena consequência do processo democrático. Isso de resolver no tapetão funciona para futebol e para religião. Para democracia, é fundamental que o eleitor entenda que o seu voto tem consequências. Isto posto, o fato permanece: o discurso de Bolsonaro é, literalmente, inconsequente e eu tenho coisa melhor com que me ocupar.

Pretendo discutir projetos e ideias sobre o futuro do planeta. Mesmo que nenhum deles tenha qualquer chance de ser implementado pela atual administração federal. Não muda o fato de que a marcha do progresso continua, ainda que o Brasil tenha parado para amarrar o tênis. E não saiba dar laço no cadarço.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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