29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

A baioneta que mudou o mundo

Publicado em 12/06/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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O mundo mudou drasticamente em 2011, ainda que poucos tenham notado.

No dia 20 de outubro, Muammar al-Gaddafi, ditador que comandou a Libia por 42 anos, estava em um comboio rumando a Sirte. Gaddafi sabia que não havia escapatória. Seu futuro estava selado. Era uma questão de tempo até que chegassem até ele. Aquela viagem era, na verdade, uma procissão de rendição. Queria morrer na cidade onde nascera. Gaddafi jamais chegaria a Sirte.

Um ataque aéreo atingiu o comboio pouco depois das oito horas da manhã. Gaddafi sobreviveu ao bombardeio com ferimentos leves na cabeça. Em seguida, de acordo com o relatório do Human Rights Watch, Gaddafi foi capturado por soldados da oposição, que o sodomizaram com uma baioneta, causando morte por hemorragia. Já estava morto quando uma bala atingiu sua cabeça.

As cenas da bárbara e humilhante execução estão à disposição na internet, para aqueles de sangue frio. Não me entenda mal: Gaddafi era merecedor de todo castigo do mundo e mais alguns. As torturas a que submeteu adversários políticos fizeram seu fim soar misericordioso. A não ser para uma pessoa: Vladmir Putin.

O ex-agente da KGB e atual presidente da Rússia assistiu ao vídeo do ocaso de Gaddafi inúmeras vezes, obcecado. O impacto daquela execução mudaria sua visão sobre política internacional para sempre.

Acontece que, antes de ser destituído, Gaddafi engajou-se em diversos acordos com os EUA e a OTAN. Pelo fim do embargo econômico, comprometeu-se com o fim do programa nuclear líbio. Sem programa nuclear, seu regime estava com os dias contados. Levou sete anos até que fosse executado com facadas nos fundilhos e exposto à visitação pública numa câmara fria. Sobre a morte de Gaddafi, uma Secretária de Estado Norte-Americana disse à TV: "Nós viemos, nós vimos, ele morreu", brincou Hillary Clinton.

Putin recebeu a mensagem em alto e bom som: não havia mais lugar para diplomacia no mundo moderno. Foi até a estante e sobrou a poeira do seu velho livro de técnicas da KGB. Resgatou o "Kompromat". Dois anos depois, Rússia receberia o Miss Universo e seu promotor, um tal de Donald Trump.

É verdade que a lição de "não confie nos Yankees" já fora apresentada por outros antes de Gaddafi. Saddam Hussain foi enforcado no Iraque cinco anos antes. O contexto foi parecido.

Mas, mesmo depois do ditador iraquiano balançar na corda, Putin ainda manteve relações cordiais com os EUA. Alguns diriam até subservientes. Qual a diferença? Por que a execução de Hussein não afetou o presidente russo da mesma forma?

Quando o soldado resolveu vingar 42 anos de opressão do povo líbio com sua baioneta, inadvertidamente, colocou a Rússia na ofensiva, além de inviabilizar qualquer tentativa de desarmamento por vias diplomáticas. Seja com Putin, seja com Kim Jong Un. O mundo vai queimar antes que alguém ceda às pressões pelo desarmamento nuclear de Trump ou de quem quer que seja.

Acontece que Putin associa poder à masculinidade, o que é comum aos governantes mais vaidosos e egocêntricos. Putin passeia de cavalo sem camisa, adora ser fotografado participando de esportes. Em certa medida, lembra nosso Bolsonaro e sua flexão de pescoço em meio a militares fazendo flexões de braço.

Mandatários de tendência despótica gostam de associar masculinidade à força política. Desta forma, tudo que "não é atitude de macho" é visto como fraqueza, como desvio, como subversão. Não é à toa que Putin gosta de dizer que "não há gays na Rússia". Claro que há. Algo me diz, inclusive, que ele sabe muito bem disso.

Um líder pode perder uma guerra e até ser executado pelos seus inimigos. Para seus apoiadores, o herói caído se tornará um mártir para as batalhar vindouras. Mas não se perder a masculinidade. Ou a percepção da mesma. Não é, Putin?

É daí que nasce a Homofobia Institucional. Respaldado pela leitura seletiva de textos religiosos, o conceito é nutrido pela masculinidade toxica e afirma que o poder é coisa de macho. E o gay é o "não-macho". Estes políticos enxergam o homossexualismo como a falta de legitimidade no exercício do poder.  Daí surgem as políticas homofóbicas do Rodrigo Duterte (confesso "ex-gay") nas Filipinas. Daí surge o "prefiro filho morto a filho gay".

Então, quando Bolsonaro diz que é um erro criminalizar a homofobia, não está falando dos gays ou dos pastores, mas de si mesmo. Aceitar os homossexuais, na cabecinha do presidente, é aceitar a "fraqueza da nação". Se há tantos "fracos" no país que comanda, o que isso faz dele? Significa que ele "é fraco", também?

Significa. Mas não do jeito que ele imagina.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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