29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

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Publicado em 20/02/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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Imagine um garoto hipotético. Vamos chamá-lo de Omar. Ninguém jamais desejou Omar no mundo. Ele apenas aconteceu, em meio à ignorância e indigência social e financeira. Jamais conheceu o pai. A mãe, jovem e sobrecarregada com a meia dúzia de filhos, deixou Omar à própria sorte. Faltava-lhe comida, faltava-lhe estudo. Sobrava violência. O garoto cresceu com a convicção de que o mundo não era para ele, e que as pessoas o olhavam com medo, desconfiança e asco. Aonde quer que fosse, Omar sentia não pertencer.

Então, um conhecido o convidou para uma reunião. Disse que seria divertido, com música e gente alegre. Omar só estava acostumado a ser convidado a sair de ambientes. Entre curioso e confuso, ele aceitou.

Ao chegar no endereço, percebeu que se tratava de um templo e fica receoso. O conhecido que o convidou o encorajou. Ninguém o obrigaria a nada.

Omar foi recebido por estranhos, todos sorridentes, de braços abertos. Pela primeira vez, o garoto vivenciou a sensação reconfortante de ser acolhido. Do palco, a música contagiava, executada ao vivo por músicos particularmente talentosos. Os ritmos variavam de intensidade. Ora todos dançavam e pulavam em êxtase, ora se deixavam levar por temas melódicos e intimistas. O resultado era algo inédito para Omar: ele se sentia parte de algo maior, de um grupo de pessoas movidas pela mesma emoção. Os arrepios corriam pela pele.

O líder espiritual tomou o palco e declarou que a vida de Omar tinha um propósito, e que foi Deus que o chamou para estar ali. O garoto que ninguém quis descobriu que sua existência tinha uma razão de ser: estar lá.

Omar mergulhou de cabeça na comunidade de frequentadores do templo. Mudou a maneira de vestir, de falar, fez amigos, conseguiu emprego na loja de um empresário frequentador do templo, conheceu uma garota. Namoraram, se casaram e tiveram filhos.

Antes, Omar não tinha vida. Agora, Deus lhe dera tudo. Até uma razão de ser.

O tempo passou e Omar começou a notar que havia coisas estranhas na comunidade. O líder do templo passava uma parte considerável dos discursos condenando pessoas à danação eterna. Pregava que os membros da comunidade se afastassem do resto do mundo, corrupto e sujo. Ao mesmo tempo, sugeria que seus seguidores apoiassem políticos com histórico de corrupção e violência.

Pouco a pouco, Omar passou a sentir um certo desconforto com a maneira que seu grupo interagia com o mundo. Ele não conseguia verbalizar – até porque não teria com quem desabafar – o que era, exatamente. Mas lhe parecia que o templo se comportava como uma ilha paradisíaca cercada de monstros por todos os lados. E Omar ainda se lembrava vivamente de como era ser visto como um dos monstros.

Omar testemunhou alguns membros do Templo tomando atitudes extremas, agredindo física e verbalmente gente de fora do grupo. Parecia que, a cada dia, havia uma nova indignidade para ser engolida em silêncio.

Um dia, Omar presenciou o destino de um dos dissidentes. Gente com opinião contrária ao líder e – consequentemente – ao grupo. Perdeu amigos, empregos, até a família o deixou. E Omar, que sabia como era não ter nada, resignou-se. Mesmo que não tivesse perfeita consciência dessa decisão.

Seus pesadelos mais profundos de maldição espiritual e abandono real fizeram todo o trabalho para ele. Sem saber, Omar sabia que não devia questionar. Que devia ignorar fatos e provas e manter confiança cega na liderança.

Para Omar, o custo social de mudar de opinião e de divergir de seu grupo era tão grande que ele nem sequer ousava considerar a hipótese.

Omar não era idiota, não sofreu lavagem cerebral, não era um alienado. Omar era um ser humano, com medos, inseguranças, necessidades e incongruências de ser humano.

Assim como não devemos recriminá-lo, não devemos esperar por sua redenção.

Afinal, redenção que se dá através do sacrifício e da auto imolação é coisa rara, comum apenas entre os livros mais vendidos.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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