19/04/2024 - Edição 540

True Colors

Como indígenas brasileiros lidam com a sexualidade

Publicado em 10/10/2017 12:00 - Naiara Albuquerque – Nexo

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O livro “Existe índio gay? A colonização das sexualidades indígenas no Brasil” surgiu a partir do questionamento contido no título da obra, ouvido repetidas vezes por Estevão Rafael Fernandes, professor da Universidade Federal de Rondônia.

Fernandes é antropólogo e doutor em ciências sociais pela Universidade de Brasília. Seu novo trabalho é resultado de pesquisa bibliográfica, documental e de campo feita, desde 2012, nos Estados Unidos e no Brasil. Ele entrevistou indígenas de povos norte-americanos e em Estados como Pará, Rondônia, Acre, e Mato Grosso. “Por uma questão de ética e confidencialidade”, Fernandes não expõe os nomes dos entrevistados nem de seus povos.

“Decidi não individualizar as comunidades e aldeias. Percebi que boa parte dos indígenas de uma etnia não se sentiria bem dizendo: ‘aquele povo é um povo homofóbico’”, disse.

Para o pesquisador, no Brasil, o processo de construção de um “Novo Mundo” com a colonização europeia afetou, também, as sexualidades indígenas e o modo como esses povos passaram a enxergar a sexualidade LGBT (Lésbica, Gay, Bissexual, Transexual) como algo a ser combatido.

“Trata-se de dizer que a colonização opera impondo aos colonizados, por meio de práticas institucionais que se baseiam em pressupostos morais, religiosos, científicos, acadêmicos, filosóficos, políticos, sociais etc., um conjunto de regras que busca reproduzir, nos corações e almas dos colonizados, as lógicas que movem a sociedade colonizadora”, diz Estevão.

Nesta entrevista, o pesquisador falou sobre sua trajetória acadêmica, como foi feita a pesquisa que deu origem ao livro e como o processo de colonização afetou e ainda afeta as sexualidades indígenas.

 

Como começou a pesquisar esse tema?

Eu fazia uma disciplina no doutorado que era sobre gênero e sexualidade na América Latina. Quando os professores entregaram o programa de disciplina vi que não tinha nada relacionado ao universo LGBT dos povos indígenas no Brasil. Então comecei a pesquisar o tema e vi que não tinha muito material a respeito. A literatura no Brasil abordava a temática da sexualidade indígena com ênfase no preconceito e na perda de cultura desses povos. Pesquisando em inglês, principalmente nos EUA e no Canadá, havia uma ampla literatura escrita pelos próprios indígenas LGBT, a partir de uma experiência acumulada deles na academia e nos movimentos indígenas. Notei que a sexualidade para eles não era uma questão focada no corpo, no desejo ou no afeto. Aos poucos, passei a procurar aqui no Brasil referências a indígenas que tinham sexualidade fora do modelo binário. Esse material eu usei em meu trabalho para falar como a heteronormatização acabou sendo uma das técnicas sem as quais o colonialismo não sobreviveria.

Essa área de pesquisa é considerada um campo dentro da antropologia?

É complicado isso. Ficamos em um terreno entre a história e a antropologia, a sexualidade, gênero e a cosmologia e etnologia. É um terreno nebuloso de interseccionalidade entre disciplinas e temáticas. Se estivesse em um programa de antropologia teria de optar entre trabalhar com gênero ou etnologia indígena. Se estivesse em um programa de história teria de optar entre alguma abordagem específica ou algum período específico. Eu optei por fazer um programa interdisciplinar, cujo o único pré-requisito era fazer uma tese que tentasse comparar dois países das Américas. No meu caso, escolhi Brasil e EUA.

Essa área de pesquisa é considerada um campo dentro da antropologia? Estevão Fernandes É complicado isso. Ficamos em um terreno entre a história e a antropologia, a sexualidade, gênero e a cosmologia e etnologia. É um terreno nebuloso de interseccionalidade entre disciplinas e temáticas. Se estivesse em um programa de antropologia teria de optar entre trabalhar com gênero ou etnologia indígena. Se estivesse em um programa de história teria de optar entre alguma abordagem específica ou algum período específico. Eu optei por fazer um programa interdisciplinar, cujo o único pré-requisito era fazer uma tese que tentasse comparar dois países das Américas. No meu caso, escolhi Brasil e EUA.

O que te motivou a escrever esse livro?

Ouvi e vi muitas histórias de preconceito, inclusive dentro das aldeias. Existem jovens sendo forçados a sair das aldeias por conta da orientação sexual e pais matando filhos nas aldeias porque eles são LGBT. Em minha pesquisa, encontrei relatos de queer indígenas no Brasil desde 1530. Ou seja, os indígenas acolhiam os indígenas LGBT. Nós que ensinamos o preconceito aos indígenas e ensinamos que isso significaria ir pro inferno. No final das contas, vejo que essa mesma nuvem discursiva de subalternização dos homossexuais é o que faz o Brasil o que é. O Brasil não é um país de gente tolerante e não preconceituosa. Nós somos, historicamente, um país desigual.

Como foi feita a pesquisa?

Por viver em Rondônia, eu acabei ouvindo mais histórias localizadas na Amazônia. Ouvi relatos do Acre, Amazonas, Rondônia, Pará. Mas também ouvi relatos de indígenas que vivem no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Eles me procuraram de uma forma bem espontânea. A partir de uma escolha minha, decidi por não individualizar as comunidades e aldeias. Percebi que boa parte dos indígenas de uma etnia não se sentiria bem dizendo: “aquele povo é um povo homofóbico”. Cabe aos próprios indígenas lidarem com suas próprias aldeias. Eu não estaria respeitando a autonomia nem do povo indígena, nem dos jovens ou mais velhos que se percebem como LGBT. Isso é um processo deles. Além disso, não os enxergo como objeto, são parceiros com quem eu acabei dividindo a trajetória. Você tem pessoas que não encontram acolhimento por serem LGBT e indígena. Assim como eles estão em um vácuo, em um não lugar do ponto de vista acadêmico, eles também estão em uma fronteira difícil de circular e se encontrar como indígenas LGBT. Na minha visão, homossexualidade indígena é um conceito político. Quando o indígena se percebe como gay ele se percebe como um alvo de preconceito – que a gente ensinou a eles como opera. Nós ensinamos como é errado ser LGBT.

É possível falar dos povos indígenas brasileiros e suas sexualidades em termos gerais? Qual papel é dado aos que se reconhecem gays nessas sociedades?

Não. Cada percurso é um percurso. Do ponto de vista estrutural existe uma série de pontos em comum que permite compreender o processo de colonização. A questão da submissão do desejo do outro, do corpo, do prazer e da atividade do outro ao desejo do colonizador. Em meu trabalho, tento mostrar como aconteceu o processo do ensino do preconceito aos indígenas.

Pensamos no colonialismo como um processo que acabou em algum momento histórico. E não acabou. A grande questão é mostrar como o que aconteceu no século 19, por exemplo, se perpetuou passando por diversas instituições.

Os antropólogos em geral cometem um erro quando vão lidar com a sexualidade indígena. É o erro de particularizar, de trabalhar a partir de uma noção de um povo, por exemplo. Eles [os indígenas] não gostam disso e já me falaram: “olha, fazendo isso vocês acabam exotizando mais ainda o que a gente é.” O que mais me intriga entre essas críticas é que eles deixam claro que o problema não é a sexualidade indígena, mas a forma como o colonizador lidou com essas questões sem entender a complexidade que isso tinha para os próprios povos indígenas e como que sexo não tem a ver com a genitália, mas com todo o universo cosmológico e com a identidade de um grupo. E quando os não indígenas chegam na aldeia impondo seu próprio modelo focado na moral, na religião e depois na ciência e na raça, todo esse universo é desconsiderado.

Em 2013, ouvi algo de um indígena two-spirit americano que me intrigou. Ele me disse: “Indígenas queer dos Estados Unidos se identificam muito mais com os indígenas brasileiros que são héteros do que com o homossexual norte-americano [não indígena]. Isso porque os indígenas sabem, como a gente, o que é a colonização, e o homossexual branco norte-americano não.” Para mim, essa fala deixa muito claro o que eles [os indígenas] querem combater.

Sobre o papel dado, depende muito. Existem comunidades que sequer dão nome para homens e mulheres indígenas que se reconhecem como LGBT. Mas também existem povos que assimilaram a carga de homofobia a um ponto de ameaça de morte e destruição da aldeia. Existem alguns relatos aqui no Brasil de indígenas que se mataram, que foram mortos e são apedrejados quando andam pela aldeia.

Em seu livro, você fala que “o índio gay subverte duplamente um ideal colonizador”, por quê?

 Porque por um lado eles contrapõe o modelo hegemônico ao comportamento sexualmente esperado, visto como "correto" pelo colonizador. Por outro, eles vão de encontro à imagem historicamente construída do indígena como "bom selvagem" ou como "guerreiro". Assim, o indígena que mora na cidade, que busca conseguir um emprego, com problemas e desafios cotidianos, acaba sendo encapsulado em uma visão que foi imposta durante o processo de colonização. Logo, esse indígena queer subverte a própria lógica do que se espera ser um indígena ideal e a-histórico, assexuado e sem conflitos. Eles mostram as contradições dessas visões romantizadas construídas historicamente.

Leia outros artigos da coluna: True Colors

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *