28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Na semana da Visibilidade Trans, covereadora Carolina Iara escapa de atentado a tiros

Publicado em 28/01/2021 12:00 - Caê Vasconcelos (Ponte), Jamil Chade (UOL) - Edição Semana On

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Dois tiros feitos dentro de casa, em Itaquera, na zona leste da cidade de São Paulo, acordaram a mãe da parlamentar Carolina Iara de Oliveira, 28 anos, covereadora da Bancada Feminista do PSOL, às 2h10 da madrugada de terça-feira (26/1). Um dos projéteis ficou alojado na parede da sala e um no muro.

Carolina Iara é travesti intersexo e foi eleita como covereadora na cidade de São Paulo com 46.267 votos. No momento dos disparos, Carolina, a mãe e o irmão estavam no local, mas ninguém ficou ferido. Na hora, contou a parlamentar, ela achou que pudesse ser alguma bala perdida, mas na manhã seguinte percebeu que era um atentado político.

Imagens obtidas por uma câmera de segurança do vizinho da frente de Carolina mostram um carro branco, com vidros escuros, parado na frente da casa da covereadora por aproximadamente 3 minutos, entre às 2h07 e 2h10. A covereadora também confirmou com os vizinhos o horário dos tiros: 2h10. Carolina teve que sair às pressas de casa com a família.

No último dia 27, a parlamentar esteve no Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa, no centro da cidade, para denunciar o atentado. Porém, o caso foi registrado pelo delegado Tiago de Sousa Delgado como dano e disparo de arma de fogo.

“Não podemos permitir que São Paulo tenha uma Marielle Franco trans. Eu peço para as autoridades da cidade e do estado de São Paulo para que me deem, junto com as minhas companheiras de Bancada Feminista, proteção”, clamou Carolina em breve coletiva de imprensa na porta do DHPP, extremamente abalada psicologicamente com o atentado.

O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, também do PSOL, executada na noite de 14 de março de 2018, até hoje não teve uma resposta em relação aos mandantes do crime. Desde então, parlamentares negras do Psol vêm sofrendo recorrentes ameaças de morte. Talíria Petrone (PSOL-RJ), deputada federal, já denunciou diversas vezes ameaças contra a sua vida. Benny Briolly (PSOL), recém-eleita a primeira travesti vereadora de Niterói (RJ), também foi ameaçada durante a campanha.

Carolina também pediu por proteção do Estado. “Ainda estamos em uma democracia, fomos eleitas com 46 mil votos, não é possível que esses 46 mil votos sejam deslegitimados com dois tiros na minha casa”, lamentou.

“Eu tive que sair fugida da minha casa. É inadmissível que uma parlamentar tenha que viver na clandestinidade na maior cidade do país. Sair de casa fugida vai ser um trauma que eu vou levar para a minha vida, mas não vão conseguir me calar”, completou Carolina.

A covereadora conta que nunca recebeu alguma ameaça de morte, mas, após ser eleita, recebeu dezenas de assédios, sexuais e morais, em suas redes sociais. “Eu tenho 10 anos de militância, é assustador, é estarrecedor”.

A três dias do Dia da Visibilidade Trans (comemorada nesta sexta, 29), argumenta Carolina, esse atentado é uma denúncia. “É uma denúncia de que uma mulher negra e trans, que consegue ascender a um poder institucional, não está segura. As pessoas trans continuam sendo alvejadas em suas casas”, lamenta.

“É uma tentativa de me calar. Não dá para dizer o motivo específico, se foi um crime de ódio por transfobia, se foi um cala-boca político, mas o fato é que todo o conjunto que eu represento politicamente é o que deu motivo para acontecer isso”, finaliza.

Ativistas estiveram na porta do DHPP para prestar apoio à Carolina Iara. Symmy Larrat, presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), afirmou que, mesmo que não seja comprovada uma ligação direta com o crime de transfobia, “uma pessoa trans recém-eleita incomoda e isso é uma tentativa de minar a nossa chegada a lugares de poder”.

“É muito preocupante e aterrorizante essa tentativa de acabar com qualquer esperança e luta por conquistas que possam diminuir a vulnerabilidade que a gente vive. Isso é um exemplo de tudo o que falamos: a transfobia existe”, completa Larrat.

Simone Nascimento, integrante do Movimento Negro Unificado, aponta que a violência estrutural racista e a transfobia são responsáveis pelo atentado. “Vivemos no país que mais mata travestis e transexuais no mundo e isso também é uma violência política cotidiana. A gente precisa falar sobre a garantia de direitos humanos para essas pessoas”.

Para Simone, o que aconteceu com Carolina Iara é um reflexo do que acontece todos os dias com pessoas trans e travestis. “Nossa sociedade é racista, transfóbica, patriarcal e machista. Todos dias a população negra e transgênera é vítima dessa sociedade. Quando você pensa em uma mulher trans e negra, você pensa em intensificação do ódio que não reconhece esse corpo como humano”.

Dimitri Sales, presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), aponta que o atentando à Carolina Iara tem natureza política. “Sem que houvesse prévia ameaça, a covereadora foi alvejada em sua residência por tiros, que tem a finalidade de inibir a sua atuação, já que é uma militante ativa dos movimentos sociais”.

“Carol leva com o seu corpo e sua experiência uma diversa representatividade para a Câmara Municipal de São Paulo. Esses tiros são uma tentativa de intimidar a sua atuação política e, por essa razão, caberá uma rigorosa apuração dos fatos e o Condepe vai cobrar a Secretaria de Segurança Pública”.

Outro lado

A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública para perguntar sobre a decisão do delegado Tiago de Sousa Delgado em registrar o caso apenas como dano e disparo de arma de fogo e sobre as medidas que podem ser tomadas para reforçar a segurança de Carolina, mas a assessoria de imprensa da pasta se limitou a enviar a seguinte nota: “a vítima compareceu na tarde desta quarta-feira (27) à sede do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). Ela foi ouvida na 1ª Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes contra a Liberdade Pessoal, onde a ocorrência foi registrada como dano e disparo de arma de fogo. A unidade responsável pela investigação já encaminhou perícia técnica para o local dos fatos e as apurações prosseguem.”

Um ativista foi morto no Brasil a cada oito dias

Um informe da relatoria da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre defensores de direitos humanos e que será apresentado em fevereiro aos governos irá denunciar os assassinatos de líderes comunitários, ativistas, ambientalistas e defensores de direitos humanos no Brasil.

De acordo com o levantamento do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, entre 2015 e 2019, 174 brasileiros foram executados. O número é o segundo maior do mundo e supera a situação nas Filipinas, com 173 assassinatos. Apenas a Colômbia – diante de sua crise entre paramilitares, governo e ex-guerrilheiros — soma um maior número de mortes, com 397 casos.

Na prática, os dados revelam que um ativista brasileiro foi morto a cada oito dias e que o país é responsável por mais de 10% de todos os assassinatos desses líderes no mundo no período avaliado. Procurado pela coluna, o Itamaraty se manteve em silêncio.

O documento foi preparado pela relatora especial da ONU sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, Mary Lawlor. De acordo com o levantamento citado pela perita, a entidade registrou no mundo 1.323 mortes de defensores, incluindo 166 mulheres e 22 jovens defensores dos direitos humanos. Isso ainda inclui, no mundo, 45 lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e defensores intersexuais mortos entre 2015 e 2019.

Nesse mesmo período, a região da América Latina e do Caribe registrou consistentemente o maior número de defensores assassinados, com 933 do total de 1.323 mortos registrados durante esses anos.

Além de Colômbia e Brasil, a lista inclui México (151), Honduras (73), Guatemala (65), Peru (24), Nicarágua (14) e Venezuela (14). Em outras regiões do mundo, números elevados ainda são encontrados nas Filipinas (173), Índia (53) e Iraque (30).

281 assassinatos em 2019

2019, segundo a ONU, foi um ano especialmente violento, com 281 assassinatos pelo mundo. Mas a entidade admite que existe um problema profundo de subnotificação e que, de fato, a crise poderia ser ainda maior.

Para a relatora, "os ataques, incluindo assassinatos de defensores dos direitos humanos, freqüentemente vêm em um contexto de violência estrutural e desigualdade, inclusive em sociedades em conflito, e como produto de sistemas patriarcais e heteronormativos".

"Ameaças e assassinatos frequentemente acontecem quando um contexto negativo foi criado em torno de defensores", disse. "Isso pode torná-los vulneráveis a ataques", indicou.

Um papel fundamental nessa violência vem dos líderes políticos. Para a relatora, se houver uma narrativa positiva por parte da cúpula no poder, os riscos de ataques contra esses ativistas poderiam ser reduzidos.

Governos deveriam proteger ativistas, diz ONU

Os defensores dos direitos humanos que trabalham em algumas questões parecem ser particularmente vulneráveis a ataques. "Alguns dos mais visados são ambientalistas, aqueles que protestam contra a apropriação de terras ou aqueles que defendem os direitos das pessoas, incluindo os povos indígenas, através de objeções aos governos que estão impondo projetos empresariais às comunidades sem o consentimento livre, prévio e informado", disse.

De fato, uma em cada duas vítimas de assassinatos registrados em 2019 estava trabalhando com comunidades em torno de questões de terra, meio ambiente, impactos das atividades comerciais, pobreza e direitos dos povos indígenas, afrodescendentes e outras minorias.

Para a ONU, a responsabilidade por proteger esses defensores é dos governos. "A não adoção de tais medidas para cumprir as obrigações deve ser considerada pelos organismos internacionais ao determinar as conseqüências legais do não cumprimento", alertou a relatora. Ou seja, governantes que não oferecem e garantirem proteção serão responsabilizados legalmente.

Líderes ameaçados ficam sem proteção

O documento ainda traz um exemplo de como ameaças contra líderes comunitários ficam sem a proteção do estado, mesmo que programas existam para garantir a vida desses defensores de direitos humanos.

O caso citado é do cacique Babau, no Brasil. Em 29 de janeiro de 2019, o líder indígena recebeu informações de uma fonte confidencial sobre um plano para assassiná-lo e pelo menos quatro de seus parentes.

"O plano teria sido desenvolvido em uma reunião com agricultores locais e representantes da polícia civil e militar", diz o documento. "Babau foi formalmente incluído no programa do governo para a proteção dos defensores dos direitos humanos. No entanto, ele aparentemente ainda enfrenta ameaças severas em sua comunidade, e nenhuma investigação foi aberta sobre as supostas ameaças de assassinato", completou.

Governo Bolsonaro é "motor" da violência, diz movimento social

"Temos verificado um acirramento dos ataques e dos assassinatos de defensores de direitos humanos", confirmou Glaucia Marinho, coordenadora da Justiça Global. Para ela, a violência contra ativistas no país tem um carácter racial, já que atinge especialmente negros, indígenas e quilombolas.

Segundo a representante da Ong, a tendência de violência aumentou a partir de 2019, com o governo de Jair Bolsonaro. "Esse governo é motor para esse cenário de violência. É o próprio governo que fala contra a sociedade civil organizada, contra indígenas e quilombolas. Não por acaso, tem aumentado o número de mortes", disse Glaucia.

A entidade destaca que o governo federal não mantém um levantamento desses ataques e que tal mapeamento é feito apenas pela sociedade civil.

Glaucia ainda aponta que nem a pandemia da covid-19 interrompeu essa violência e que os mais afetados foram ambientalistas e quem luta por terra. "Os violadores se aproveitaram das medidas de restrição e isolamento social para cometer crimes", acusa. "Houve um número elevado de invasão de grileiros em terras indígenas", destacou.

A Justiça Global também revela como esses ataques continuam em 2021. Especialmente preocupante é a situação de mulheres negras defensoras de direitos humanos que foram eleitas nas votações no final de 2020. "Muitas foram alvo de ataques caso assumissem os cargos", constatou.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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