28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Como vai o combate à aids no Brasil?

Publicado em 02/12/2020 12:00 - Edison Veiga e Gudrun Heise - DW

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Acredita-se que o primeiro caso de aids no Brasil tenha ocorrido em São Paulo há exatos 40 anos, em 1980 – mas o diagnóstico da doença só foi confirmado dois anos mais tarde.

Quando o HIV surgiu, pessoas portadoras do vírus eram fortemente estigmatizadas. Conforme uma linha do tempo organizada pela Fundação Oswaldo Cruz para mostrar a evolução da questão no Brasil, em 1982 a aids chegou a ser chamada de "doença dos 5H", em alusão a homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos — usuários de heroína injetável — e hookers — profissionais do sexo. Jornais da época chamavam a doença de "peste gay" e de "câncer gay'.

De lá para cá, muita coisa mudou: a aids deixou de ser um mal desconhecido, os tratamentos avançaram e, de incurável e letal, passou a ser tratada como uma doença crônica, que demanda tratamento ao longo de toda a vida.

No entanto, embora hoje haja um protocolo avançado de tratamento que permite que pessoas diagnosticadas com o vírus HIV levem uma vida normal no Brasil, o descuido tem levado a um aumento no número de casos.

De acordo o relatório publicado em julho pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), houve um aumento de 21% dos casos de HIV na América Latina de 2010 para cá. E o Brasil tem peso grande nessa cifra. Calcula-se que 920 mil pessoas vivam com HIV no Brasil atualmente – e que 135 mil pessoas ainda não saibam que têm o vírus. De acordo com o último boletim divulgado pelo Ministério da Saúde sobre o assunto, em 2019, o número de casos novos é de quase 40 mil por ano. Foram 37.161 novos diagnosticados em 2018, por exemplo, o balanço mais recente da pasta.

Reconhecimento internacional

O Programa Nacional de DST e Aids foi criado pelo Ministério da Saúde em 1986. Ao longo das últimas décadas, o Brasil passou a ser visto como exemplo internacional no combate à aids. Em 2003, a Fundação Bill & Melinda Gates reconheceu a qualidade e a importância do trabalho, dando ao programa um prêmio de 1 milhão de dólares.

Em 1991, quando o Brasil contabilizava 11.805 casos notificados, o Ministério da Saúde deu início à distribuição gratuita de antirretrovirais. Em 1994, graças a um acordo com o Banco Mundial, as ações de controle e prevenção à aids no país aumentaram. Dois anos mais tarde, uma lei foi aprovada garantindo distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do vírus.

"Desde o início da epidemia, há 40 anos, o Brasil agiu de forma muito efetiva e adotou desde muito cedo políticas públicas sobre HIV. Fomos um dos primeiros países a ter tratamento e plano estratégico para a resposta ao HIV, por isso temos muita experiência em relação a isso", diz à DW Brasil Claudia Velasquez, diretora e representante do Unaids Brasil.

Segundo Velasquez, um esforço coletivo de diversos setores, governo, ONGs e comunidades, vem garantindo o acesso ao tratamento. "Os medicamentos estão disponíveis, temos uma mandala de prevenção combinada com diferentes métodos, mas o que faz o combate ao HIV ser efetivo e evitar a progressão para a Aids é esse trabalho conjunto para garantir que todas as pessoas tenham acesso a tratamento."

Além da existência de uma legislação específica para proteger pessoas que vivem com HIV e aids e garantir seus direitos no Brasil, Velasquez destaca o papel do Sistema Único de Saúde (SUS).

"O SUS disponibiliza preservativos, testagem, exame de carga viral e medicamentos antirretrovirais à população de forma gratuita", prossegue. "Desde 2018, o SUS também disponibiliza a profilaxia pré-exposição (PrEP), o que é um avanço em relação à prevenção do HIV. Na América Latina, o Brasil é o único país que distribui PrEP de forma gratuita."

Alta entre jovens

No entanto, de acordo com especialistas, depois de todos os avanços ocorridos sobretudo nos anos 1990, com novos tratamentos – e a política de acesso universal e gratuita a eles – e campanhas de conscientização, vê-se um aumento na incidência dos casos sobretudo entre jovens de 14 a 39 anos.

"Isso se dá pela banalização da doença frente ao tratamento bem sucedido, pela facilidade em se ter novos parceiros graças à tecnologia, pela falta de conhecimento sobre a doença e sua gravidade, falta de campanhas que estimulem o uso de preservativos e também para a prevenção de outras infecções sexualmente transmissíveis que facilitem a infecção pelo HIV", considera Gisele Cristina Gosuen, infectologista responsável pelo ambulatório de HIV da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Para o sociólogo Alexandre Grangeiro, pesquisador de saúde pública na Universidade de São Paulo (USP), uma "sinergia de questões" explica a alta das infecções entre jovens.

"Os jovens, ao longo da epidemia, têm sido os mais afetados dadas as suas próprias características — maior número de parceiros, menos experiência para lidar com saúde e prevenção, etc.", aponta.

"Porém, as novas gerações trazem um aspecto novo: parte dos jovens tem promovido uma importante 'revolução sexual', que a aids havia interrompido nos anos 1980 e 1990. Esse movimento tem sido marcado por reafirmação de uma multiplicidade de gêneros, novos arranjos afetivos e intensificado as experiências sexuais. Isso tem levado a um aumento do número de relações e de parcerias, ampliando redes sexuais que facilitam a circulação do HIV."

Segundo o sociólogo, tal cenário tem feito com que as "gerações nascidas após os anos de 1990 apresentem taxas de HIV maiores do que as gerações que as antecederam".

"Um novo valor sexual não seria um problema em si, se junto com ele estivessem associadas práticas preventivas", pondera "O problema é que a resposta brasileira ao HIV nos últimos anos tem experimentado um forte estreitamento, com importantes setores da sociedade tendo deixado de atuar, parte por uma desmobilização, e, especialmente, por uma onda conservadora e reacionária a novos padrões", considera.

Falta de campanhas

A falta de campanhas constantes de prevenção à aids é apontada pelos especialistas ouvidos pela DW Brasil como um problema da gestão atual do Ministério da Saúde.

"Há uma proibição institucional, não dita, de desenvolver ações que abordam as principais causas de infecção e morte por HIV. Isso ocorre como reflexo de uma política conservadora, que se distancia dos valores básicos do direito", analisa Grangeiro.

"A questão do HIV e da aids no Brasil foi abandonada [pelo governo federal]. Para você ter uma ideia, a gente não tem nenhum boletim e nenhuma informação a respeito de 2020", comenta à DW Brasil o médico infectologista Jamal Suleiman, que trabalha com o assunto no Instituto de Infectologia Emílio Ribas.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde limitou-se a enviar o relatório de 2019. E informou que a pasta deve "lançar campanha de combate à aids, em alusão ao Dezembro Vermelho" — mês do Dia Mundial de Combate à Aids, celebrado no último dia 1º. "Ainda não há data definida", pontuou, em e-mail enviado pela assessoria.

Gosuen acredita que a falta de campanhas constantes, "e não só em datas específicas como Carnaval e Dia Mundial de Luta contra a aids" é um obstáculo para a eficácia do programa brasileiro. Ela também defende ações específicas para populações mais vulneráveis, "como pessoas em situação de rua, profissionais do sexo, travestis e transexuais e idosos que não têm a cultura do uso do preservativo".

Grangeiro aponta que escolas reduziram seus programas de educação sexual e de prevenção ao HIV. "Com isso, tem diminuído paulatinamente o número de jovens que relatam ter tido acesso a programas de educação sexual, à prevenção do HIV e aos métodos de prevenção."

Também para Gosuen, a conscientização nas escolas é fundamental. "É preciso alertar, desde muito cedo, sobre a importância de se prevenir as infecções sexualmente transmissíveis, uma vez que a vida sexual tem se iniciado cada vez mais cedo", considera.

Sem perspectiva de vacina

Apenas alguns meses após o novo coronavírus aparecer, já havia vários projetos promissores de uma vacina. Em contraste, ainda não há nenhuma à vista para o HIV, descoberto há cerca de 40 anos. A pergunta, desde então, se repete: por que é tão complicado? A resposta, de forma bem simples: o HIV é um vírus camaleão, capaz de sofrer constantes mutações.

Um dos fatores que complica o combate ao HIV é que ele tem uma superfície tridimensional complexa. Metade desta superfície é revestida de uma glicoproteína, e o sistema imunológico não consegue atacá-la, assim como uma eventual vacina.

A pesquisa de vacinas provavelmente também estaria vários passos adiante se o HIV se comportasse como muitos outros vírus. Mas este não é o caso. Ele muda a forma de seu envelope viral enorme e rapidamente de uma geração para a outra.

Para poder combatê-lo, o sistema imunológico depende do reconhecimento do adversário. No entanto, se o vírus muda constantemente, o sistema imunológico não o reconhece, não o considera um patógeno e não o ataca. O HIV engana constantemente o sistema imunológico e parece estar sempre um passo à frente da pesquisa.

O HIV pertence ao grupo dos retrovírus. Eles têm a capacidade de inserir seu material genético no da célula hospedeira. Há muito tempo os pesquisadores vêm tentando entender como retrovírus se reproduzem a fim de desenvolver estratégias para uma cura. Sempre há estudos, mas sempre há novas decepções, porque o vírus parece ser simplesmente impossível de se controlar.

Estudos em andamento

O HVTN 702 foi um estudo de vacina em larga escala que começou na África do Sul, em 2016. Participaram 5.407 pessoas HIV negativas com idade entre 18 e 35 anos. Um esquema chamado "prime-boost" foi usado no estudo. Nele, duas vacinas foram combinadas.

A primeira vacinação – a vacinação "prime" – teve um ingrediente ativo diferente da vacinação "boost" posterior. A esperança era que o sistema imunológico reagisse de forma mais ampla do que com apenas uma vacina.

O estudo HVTN 702 foi baseado na vacina RV 144, a única que, em um estudo na Tailândia, até agora foi capaz de mostrar um efeito protetor – de 31% – embora muito baixo. O efeito de proteção durou apenas alguns meses. Houve 129 infecções pelo HIV entre os vacinados e 124 entre quem recebeu um placebo.

Em fevereiro de 2020, o estudo sul-africano HVTN 702 foi interrompido, porque nenhum sucesso claro era visível.

O teste com uma vacina chamada Mosaico é outro baseado no esquema de "prime-boost". Aqui também a primeira vacinação, chamada "prime", consiste em um ingrediente ativo diferente da "boost". Essa vacina contém uma proteína que replica a complicada superfície do HIV.

Os testes com macacos já foram realizados e têm mostrado resultados promissores. Essa combinação de vacinas reduziu a probabilidade de transmissão do HIV em quase 90%. Os ensaios clínicos estão em andamento nos Estados Unidos desde o final do ano passado. Ao todo, 3.800 pessoas estão participando.

O terceiro estudo que vale a pena mencionar é chamado Imbokodo. Ele também pertence à categoria de estratégias de "prime-boost", com 2.600 voluntários de diferentes países africanos. Até agora, o efeito protetor é de 67%. O estudo começou em novembro de 2017 e está programado para durar até fevereiro de 2022.

A profilaxia como alternativa?

O grande avanço ainda é esperado, mas os pesquisadores concordam em uma coisa: mesmo que uma das abordagens da vacinação contra o HIV seja bem-sucedida, não será possível esperar 100% de proteção em um futuro próximo. Mesmo uma vacinação com um efeito protetor de 60% a 70% seria um sucesso. Até lá, existe apenas a possibilidade de tratar a doença com medicamentos antirretrovirais.

Justamente por a pesquisa de uma vacina estar sendo realizada há tanto tempo sem sucesso, muitas esperanças se apoiam na profilaxia do HIV baseada em drogas na forma de PrEP (também conhecida como HIV-PrEP). A abreviação significa "profilaxia pré-exposição", ou seja, prevenção de possível contato com o HIV.

As pessoas soronegativas tomam medicamentos contra o HIV para se protegerem da infecção pelo vírus. Atualmente, está sendo procurada uma maneira de administrar esses medicamentos não como comprimidos diários, mas como injeções ou implantes durante vários meses.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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