28/03/2024 - Edição 540

True Colors

A legitimação do prazer lésbico

Publicado em 02/04/2020 12:00 - Karina Cidrim – Carta Capital

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A cena é clássica nos filmes pornôs: duas mulheres juntas, se beijando, olhando pra câmera e não uma para outra, até que um homem decide participar do sexo e elas passam a satisfazê-lo. Assim, geração após geração, é vendida a ideia do sexo entre mulheres: uma preliminar, diversão entre amiguinhas, um sexo incompleto e que deixa qualquer homem hétero enlouquecido com a ideia de ficar com duas mulheres.

Ideias como essas vêm sendo cada vez mais combatidas pelos profissionais que trabalham com sexualidade e pelas mulheres lésbicas e bissexuais no intuito de legitimar as relações sexuais entre mulheres como elas realmente são: um ato de cumplicidade, amor e/ou apenas tesão entre duas mulheres, em que um pênis e um homem são dispensáveis visando o prazer dessas pessoas e não de terceiros.

Dessa forma, é muito importante dar visibilidade ao tema e tentar ressignificar alguns pensamentos sobre a sexualidade dessas mulheres.

O primeiro conceito a ser entendido é: não falta um pênis! Mulheres que se relacionam com mulheres querem exatamente isso: uma mulher. O prazer vem da exploração do corpo feminino, e o pênis (muitas vezes até os objetos fálicos) é totalmente dispensável.

Poucos estudos científicos avaliam exatamente o prazer sexual das lésbicas, mas os poucos existentes demonstraram uma taxa de satisfação sexual três vezes maior que na população heterossexual em vários parâmetros analisados. Mas por que isso acontece?

Todas as mulheres, desde a primeira infância, são pouco ensinadas sobre sexo e sua genitália, local que não deve ser tocado, exposto, nomeado e deve-se ter vergonha. Associado a isso, a falta de educação sexual masculina é ainda maior. Há mais incentivo ao sexo e supervalorização da genitália, porém, nenhuma orientação sobre o corpo feminino e sobre a resposta sexual da mulher.

Mulheres heterossexuais entrevistadas em inventários de pesquisa relatam falta de orgasmo nas relações em até 40% dos casos e quando se fala em falta de desejo sexual essa taxa pode ser ainda maior. Queixas sexuais são muito frequentes no dia a dia de um consultório ginecológico entre as mulheres heterossexuais, sendo a falta de conhecimento do parceiro sobre o seu corpo (prática de sexo oral, exploração digital da vagina, ato sexual focado apenas da penetração que por vezes chega a ser dolorosa etc) uma reclamação constante.

Entre as lésbicas, as queixas sexuais são menos frequentes. Se há dor na penetração, ela é evitada sem grandes prejuízos. É raro ter falta de orgasmo devido ao bom conhecimento das parceiras sobre seus corpos e principalmente pelo sexo não tão genitalizado. Há maior liberdade de diálogo sobre o relacionamento e sobre as práticas sexuais na maioria dos casos.

Mas e o desejo? Por muitos anos ouviu-se falar no termo “lesbian bed death”, que caracterizaria a falta de sexo num relacionamento duradouro entre mulheres, porém, hoje entende-se que a diminuição do desejo sexual ao longo das relações faz parte da resposta sexual feminina.

Mulheres hétero também perdem o desejo espontâneo a longo prazo, mas existe uma maior cobrança do parceiro pelo sexo, o desejo reprodutivo, os conceitos machistas de “fazer por obrigação do casamento” ou pelo medo de perder o parceiro caso não tenha relações frequentes. Todas as mulheres necessitam de vários fatores para despertar e manter o desejo sexual que vão além do desejo puramente físico. Cumplicidade, respeito, segurança, admiração são exemplos desses fatores.

Em 2001, a médica Rosemary Basson desenvolveu o modelo mais aceito atualmente sobre a resposta sexual feminina e seus estudos mostraram que essa reposta é cíclica: desejo gera prazer, que gera orgasmo, que pode gerar orgasmo novamente, que pode gerar nova lubrificação e todo esse processo é mantido pelo bom entrosamento do casal e sua relação com a sociedade.

A resposta sexual masculina (já estudada desde a década de 50 pelo casal Master e Jonhson e posteriormente por Helen Kaplan) é diferente: linear, onde temos excitação, ereção, prazer, ejaculação e resolução. Essas diferenças nas respostas sexuais podem gerar inadequações entre casais heterossexuais, o que é minimizado no sexo entre mulheres por todos os fatores já expostos.

Mas então a vida sexual das lésbicas é um “mar de rosas”? Longe disso. Elas também apresentam queixas sexuais e inadequações. Algumas sentem total aversão à penetração, o que pode gerar insatisfação na parceira; outras têm mais repressões sexuais. Conflitos do dia a dia causam um impacto maior na relação, além de fatores que numa relação entre mulheres são duplicados: TPM, cólicas, período menstrual, menopausa, gestação. Definições de papéis dentro do relacionamento podem também gerar conflitos sexuais: diferenças de salário, idade, grau de autoaceitação e aceitação dentro da família e da sociedade. Relações abusivas podem também estar presentes (lembremos que a masculinidade tóxica atinge a todos na sociedade e não apenas o sexo masculino).

É muito importante falar sobre o sexo entre mulheres não só do ponto de vista da saúde, cuidados e outros fatores, mas pela ótica do prazer. O prazer da mulher lésbica é muito pouco reconhecido na sociedade atual, e isso dá margem a comentários preconceituosos, investidas masculinas e desrespeito. Não é infrequente ouvir um homem pedindo a duas namoradas: beija pra eu ver, deixa eu participar. Ele pediria isso a mulher com um homem do lado? Provavelmente não. O sexo lésbico existe, por amor ou por tesão e ele pertence apenas àquele casal, não está à disposição do fetiche masculino, não é “menos sexo”, na grande maioria das vezes não é só uma fase ou uma experimentação.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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