28/03/2024 - Edição 540

True Colors

O que significa a sigla ‘LGBT’ e por que cada vez mais letras são agregadas a ela

Publicado em 18/09/2019 12:00 - Victor Gouvêa – Huffpost

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Ao fazer uma busca do Google por “sigla LGBT”, palavras como “completa”, “oficial”, “correta”, “mudou” acompanham o termo e revelam que o desejo por informações sobre a sigla também é repleto de dúvidas em relação ao seu uso adequado e atualizado. As mudanças, de fato, não foram poucas.

Na década de 1990, foi popularizada como “GLS”. Com o tempo o S, referente a simpatizantes, acabou sendo derrubado para dar espaço ao B, de bissexuais, e ao T de transexuais. A ordem também mudou: comumente invisibilizadas dentro do movimento, lésbicas pressionaram e tomaram a frente. 

Assim chega-se à sigla que se tornou, por algum tempo, a expressão para se referir a pessoas de designações divergentes da heterossexual.

“Há uma forma sedimentada na língua, que é LGBT, [e ela] vai continuar sendo a mais utilizada”, constata Emerson da Cruz Inácio, professor de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP (Universidade de São Paulo), que também pesquisa gênero e sexualidade no idioma.

Há uma questão no aumento dessa sigla no que diz respeito àquilo que estamos querendo representar com ela.Emerson da Cruz Inácio, professor de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP

Segundo o pesquisador, a intensificação das discussões sobre expressão da sexualidade e identidade de gênero começaria, aos poucos, a questionar essa sigla como sendo insuficiente. Foi demandado espaço para o Q, o I e o A, para contemplar, respectivamente queer, intersexo e assexuais. E no final de tudo um sinal de mais (+), que cumpria o papel de um vago “etcétera”. 

Quando, em 2018, o site britânico The Gay UK propôs que a sigla correta deveria ser LGBTQQICAPF2K+, até a própria comunidade torceu o nariz.

“Há uma questão no aumento dessa sigla no que diz respeito àquilo que estamos querendo representar com ela”, aponta o pesquisador. “Acho muito difícil que pegue em termos linguísticos”, diz. “Quanto mais elementos são colocados, menos se comunicam realidades e experiências.”

Expressões da sexualidade de A a Z

Reconhece-se hoje algo em torno de 30 a 60 expressões e identidades de gênero distintas, dependendo da fonte de referência. Iran Giusti, ativista, fundador e presidente do Centro de Acolhida e Cultura Casa 1, em São Paulo, aponta que é mais interessante analisar o que a sigla, em si, expressa.

“Vamos chegar ao momento em que teremos um nome específico para a comunidade lésbica negra, pros LGBTs asiáticos?”, exemplifica. “É inegável que a minha experiência é completamente diferente de uma mulher trans negra, olha quantos recortes e vivências existem em um único movimento”.

Para ele, é fundamental falar sobre sigla, visibilidade e nomenclatura, mas talvez no momento seja mais urgente que o movimento se comunique com mais efetividade. “A gente está brigando ainda por coisas muito básicas, com o governador recolhendo apostila que falava sobre hétero, homo e bissexual, por exemplo e  enfrentando conservadorismo e até censura por parte do Estado”.

O ativista se refere a recentes ofensivas tanto de governos municipais quanto o Federal. Neste mês, o presidente Jair Bolsonaro disse ter determinado ao Ministério da Educação (MEC) que seja elaborado um projeto de lei para proibir a abordagem de questões de gênero nas escolas de Ensino Fundamental.

Também neste mês, João Doria, governador de São Paulo, mandou recolher material que continha apologia à “ideologia de gênero”. Após um grupo de professores questionar na Justiça, Doria foi obrigado a devolver o material.

Na semana passada, foi a vez do prefeito Crivella. Ele determinou que a história em quadrinhos Vingadores: A cruzada das crianças, da Marvelpublicada em 2016 no Paísfosse recolhida da Bienal do Livro por conter um beijo gay. 

Recentemente, Bolsonaro também criticou produções audiovisuais de temática LGBT que estavam pré-selecionadas em um edital para TVs públicas da Ancine, o que fez o governo federal suspender o processo de seleção.

Iran defende que deveria existir um “alfabeto inteiro” para gerar utilidade na luta por políticas públicas para a população LGBT, mas que também é preciso traçar estratégias para que, novamente, a comunicação seja efetiva. 

“A gente na ‘Casa 1’ usa LGBT no fluxo de comunicação geral, porque é uma terminologia com um pouquinho mais de entendimento por parte da população”, explica. “Quando temos mais espaço de inflexão, trabalhamos com LGBTQIA+”.

Cruz Inácio corrobora a opinião do ativista. “Esse acréscimo [de letras] compromete sobretudo a comunicação com o público externo, não queer, sobre o entendimento daquilo que se quer veicular. Essa é a grande questão”. 

Explicando o mais “novo” integrante: O Q, de Queer

 

Apesar de tentativas recentes, o termo “queer” é quase que intraduzível. Em português, ele significaria algo como a síntese de “qualquer expressão da sexualidade discordante da heteronormatividade”, ou seja, tudo o que foge à norma, à binariedade que calcifica representações masculinas e femininas.

Para a socióloga e professora da UnB, Berenice Bento, a tradução mais próxima para o termo seria a palavra “transviado” ― mas, mesmo com esta proposição sendo reconhecida pela academia, ela é pouco utilizada.

Mas estas poderiam, então, ser uma solução linguística para o termo?

“Em outras experiências, nos Estados Unidos e França, têm se utilizado com maior frequência o ‘queer’ como uma palavra ‘guarda-chuva’, onde cabem muitas coisas”, aponta o professor da USP.

“Não sei se ‘queer’ dá vazão a tudo, mas é um termo neutro, e essa neutralidade abarcaria com maior facilidade”, defende ao mencionar que versões aportuguesadas, como “cuier” ou “quier” também estão sendo discutidas em termos de linguagem.

Isso acontece porque “queer” é uma palavra inglesa, usada há quase 400 anos para denominar pessoas que estão dentro do espectro do que a palavra significa literalmente: estranho, desviante. Há registros de que, em Londres, na Inglaterra, havia até uma rua que foi apelidada de “Queer Street”, onde viviam pessoas marginalizadas como prostitutas, homossexuais e famílias pobres.

O termo logo se consolidou como pejorativo no norte do mundo. Mas, por volta dos anos 90, com o amadurecimento dos estudos de gênero nas universidades europeias e, principalmente, norte-americanas ― com a publicação do livro Problemas de Gênero, da filósofa Judith Butler ― movimentos LGBT tomaram posse desta identidade “estranha” e “desviante” para ressignificar seu uso.

É tudo muito novo até na própria construção das identidades dentro do movimentoIran Giusti, jornalista e diretor-presidente da Casa 1

Um possível equivalente brasileiro que talvez servisse como “guarda-chuva” seria a palavra “diversidade”. O ativista Iran Giusti não recusa o termo, mas pontua que, atualmente, colocar todas as identidades ― que são plurais e subjetivas ― em uma única “caixinha”, não é positivo para a discussão.

“Falar de uma única ‘diversidade’ é deixar o debate superficial, e a gente precisa que esse debate seja feito hoje. É tudo muito novo até na própria construção das identidades dentro do movimento”, aponta.

Ele diz que discussões sobre representatividade e intersecção do que cada identidade que compõe a sigla traz consigo acontecem, mas que ainda é preciso fazer um debate anterior, que diz respeito à vivência do que é ser LGBT.

“Hoje a gente tem um debate muito mais forte das inserções nessas ‘caixinhas’, sobre questões identitárias, o que é totalmente natural quando você não precisa mais se preocupar com questões mínimas de sobrevivência”.

Os dados sobre LGBTfobia no Brasil

De acordo com o Atlas da Violência do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), cresceu 10% o número de notificações de agressão contra gays e 35% contra bissexuais de 2015 para 2016, chegando a um total de 5.930 casos, de abuso sexual a tortura.

Canal oficial do governo, o Disque 100 recebeu 1.720 denúncias de violações de direitos de pessoas LGBT em 2017, sendo 193 homicídios. A limitação do alcance do Estado é admitida pelos próprios integrantes da administração federal, devido à subnotificação e falta de dados oficiais.

Por esse motivo, os levantamentos do Grupo Gay da Bahia, iniciados na década de 1980, se tornaram referência.

Em 2018, a organização contabilizou 420 mortes de LGBTs decorrentes de homicídios ou suicídios causados pela discriminação. O relatório “População LGBT Morta do Brasil” mostra, ainda, um aumento dos casos desde 2001, quando houve 130 mortes.

O grupo divulgou nova pesquisa que aponta 141 vítimas entre janeiro e o dia 15 de maio deste ano. De acordo com o relatório, ocorreram 126 homicídios e 15 suicídios, o que dá uma média de uma morte a cada 23 horas por homofobia.

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, em junho deste ano, que a LGBTfobia deve ser equiparada ao crime de racismo até que o Congresso Nacional crie uma legislação específica sobre este tipo de violência. Pena é de até 3 anos e crime será inafiançável e imprescritível, como o racismo.

Leia outros artigos da coluna: True Colors

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *