29/03/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Eu avisei…

Publicado em 24/02/2021 12:00 - Idelber Avelar

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Nada mais chato do que ficar lendo pessoas que tomam a notícia do dia como confirmação de algo que elas disseram antes. O "eu avisei" é um dos gêneros mais chatos da internet.

Mas hoje não vou perder a oportunidade, não, porque os EUA, previsivelmente, voltaram a bombardear a Síria. E eu ouvi muito palpite errado e desaforo depois que publiquei um artigo na Folha dizendo que o governo Biden seria o retorno ao intervencionismo imperialista, aos bombardeios não provocados, e à subserviência da imprensa americana ante essas políticas.

Junto com essa divertida charge sobre a diferença entre bombardeios Republicanos e bombardeios Democratas, deixo três prints:

NYT tecendo um poema de amor ao bombardeio já na manchete e no lide. É basicamente a imprensa fazendo assessoria de imprensa para o governo.

Tuíte de Kamala Harris de 2018 criticando o bombardeio de Trump à Síria. Kamala Harris é agora vice-presidente do governo responsável pelo bombardeio de ontem.

Tuíte da jornalista Jen Psaki de 2018 criticando o bombardeio de Trump à Síria. Jen Psaki é agora porta-voz do governo responsável pelo bombardeio de ontem.

Com a exceção da Fox e veículos de direita, e alguns veículos bem pequenos de esquerda, como o Democracy Now, toda a imprensa americana hoje faz assessoria para o governo Biden.

RECORDE

Na quinta (25) o Brasil bateu recorde de mortes em 24h desde que começou a pandemia: foram 1.582 óbitos. São 251.661 mortes no Brasil até agora.

Na live do minúsculo presidente, o tema era "o efeito colateral" do uso de máscaras, enquanto no país todo, autoridades locais avisam que seus sistemas de saúde estão entrando em colapso. Está desmantelado o Plano Nacional de Imunização. Vários países já estão vacinando em massa e reduzindo óbitos de forma acelerada, mas no Brasil nem especialistas — ouvi algumas hoje no Clubhouse, em uma sala coordenada por Vera Magalhães — conseguem vislumbrar um fim da agonia em futuro próximo, pois não há nenhuma atitude do governo a não ser trabalhar para confundir, disseminar mentira, bater bumbo para a própria base e produzir morte.

Está sendo bastante alto mesmo o preço que o Brasil está pagando.

FARTURA DE ÓBITOS

Lendo um amigo no FB, em um post sobre a fartura de obituários, eu me dei conta de uma coisa óbvia, mas de consequências nem sempre imediatamente visíveis: quanto mais você vive, mais você está habitado pelos obituários.

Trata-se, claro, de uma tautologia: quanto mais você vive, mais velho fica, e quanto mais velho fica, mais velhas ficam — pelo menos em média, ou pelo menos tipicamente — as pessoas que você conhece. Daí é ordem natural das coisas que a sua vida seja mais habitada por obituários.

Aí você acrescenta a pandemia, que multiplica as mortes, especialmente da galera que passou de certa idade que os torna mais vulneráveis ao vírus. Aí acrescenta o fato de que 90% das pessoas que você ama vivem no Brasil, o subsolo do porão da resposta mundial ao vírus. E você tem os ingredientes dessa bad trip que não tem hora para acabar.

Estas linhas são dedicadas a todo mundo que, como eu, descobriu há pouco que, quanto mais se vive, mais se lê obituários, e hoje em dia muito mais, e hoje em dia no Brasil muito mais.

Em algum momento, vamos construir mecanismos para contabilizar e processar todas as perdas que estamos tendo, é o meu desejo e minha esperança.

NOTINHAS FUTEBOLÍSTICAS

Aí vão duas notinhas, na verdade uma só, sobre futebol e vida.

Tenho desfrutado, confesso, a desgraça de dois clubes que me são simpáticos, o Tottenham Hotspur Football Club e o Club de Regatas Vasco da Gama. São a mesma desgraça, na realidade a mesma história.

O QUÊ? O que tem a ver o rebaixamento do Vasco com o Tottenham não conseguir ir à Champions League? Lá vem de novo o louco da analogia, que "chamou Biden de Médici", como dizem os haters, com outra analogia que não faz sentido.

Proponho que faz, e que ela ensina muito sobre a vida.

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Há dois tipos de técnicos de futebol, simplificando a coisa.

Há um tipo que se apaixona pela potência vital do esporte, por suas possibilidades criativas, e que vê a vitória no contexto desses valores que importam mais. Claro que eles jogam para ganhar, mas o principal é outra coisa, é a experiência e a potência que o futebol torna possíveis.

E há um tipo de técnico que contabiliza troféus e lauréis, é obcecado com ganhar a qualquer custo, e nunca na vida parou para pensar em o que é um "dilema ético". Esse técnico, em geral, reclama para si os méritos das vitórias e acha algum jogador (ou juiz, ou gramado) para culpar pelas derrotas.

Marcelo Bielsa (e todos os bielsistas), Telê Santana, Rinus Michels e Pep Guardiola são exemplos do primeiro tipo.

Zagallo, Carlos Alberto Parreira, Luxemburgo e José Mourinho são representantes do segundo tipo.

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Jogando um futebol maravilhoso, um discípulo de Bielsa, Pochettino, havia levado o Tottenham a um lugar que nunca tinham ocupado, o vice-campeonato da Champions League. No caminho, projetaram-se no planeta inteiro em viradas homéricas contra potências européias como o Ajax.

Na temporada seguinte, o Tottenham perdeu alguns jogos normais, ocupou o miolo da tabela no começo do campeonato inglês, como é comum acontecer na Premier League, e daí o clube sacou Pochettino para trazer um "especialista em troféus", José Mourinho.

Vice-campeão europeu e presença esperada na Champions, com um futebol paulatinamente melhor a cada temporada, não era suficiente. Só vale "o troféu".

Pois bem, o Tottenham de Mourinho encontra-se em 9˚ lugar no campeonato inglês, perdeu 4 das últimas 5 partidas, e nem o torcedor mais fiel tem esperança de Champions League agora.

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No começo do campeonato brasileiro, o Vasco chegou a ocupar a liderança, posição artificial, qualquer vascaíno sabe, porque o Vasco não tem plantel para brigar na ponta. O seu técnico Ramon fazia bom trabalho e contava com a confiança dos jogadores.

O Vasco perdeu algumas, foi parar no meio da tabela, que é o melhor lugar a que ele pode aspirar, e decidiu sacar Ramon para trazer Luxemburgo, um marqueteiro já ultrapassado, mas que tinha um nome "condizente com a grandeza do Vasco". Luxemburgo é, afinal de contas, um "vencedor".

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Tal como o Tottenham, o Vasco está muito pior do que estava antes de trair a bola e trazer o "vencedor".

Faço pipoca mesmo, para desfrutar o espetáculo, sempre que a bola pune um clube por traí-la, por trair a potência vital do jogo em troca da obsessão de vitória a qualquer custo.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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