18/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Zeus e o fundo do poço

Publicado em 01/07/2020 12:00 - Idelber Avelar

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Creio, sim, que o episódio do roubo de Zeus é significativo, para além da já inútil discussão acerca de qual seria o “novo fundo do poço” para a família Bolsonaro. Quem leu Grande Sertão: Veredas sabe do que falo. O momento terrorífico não é a travessia do Liso do Sussuarão, empreitada aterrorizante, sim, mas épica e grandiosa em seu choque entre a vontade humana e a potência da Terra. O momento de inaceitável horror é a matança de cavalos perpetrada pelos capangas de Hermógenes. O terror é a insensibilidade humana ante o sofrimento do animal. É a parte mais brutal, mais terrorífica do romance. Os cavalos uivando, agonizando na morte lenta, provocada por pura maldade humana.

Nesse sertão que é a vida, algumas pessoas são capazes de, conscientemente, fazer o mal. Somos quase todos nós, na verdade. Mas só algumas figuras são genuinamente do mal, como Hermógenes, como o Minúsculo. Em Grande Sertão, o que mais caracteriza o mal é a insensibilidade ante o sofrimento gratuito do animal não humano. O episódio da matança de cavalos pelos capangas de Hermógenes é a imagem literária que lhes proponho como marco para se entender esse novo subsolo moral do clã, o roubo de um cão companheiro de outrem, com coleira e tudo.

Qualquer criança sabe que um cachorro perdido, com coleira, está sofrendo e procurando seu dono/companheiro, que muito provavelmente está sofrendo e procurando também. Qualquer pessoa com um mínimo de decência faria algum gesto para reuni-los. Quando se trata de uma família presidencial, basta, é claro, uma foto em qualquer perfil de rede social, e será encontrado o companheiro humano do cão. Mas o clã Bolsonaro é incapaz de qualquer gesto de mínima generosidade com o outro. Todo o seu sistema moral gira em torno à sua própria satisfação.

Note-se, no próprio ato de nomear, a enorme diferença entre Nagib, o companheiro humano de Zeus, e o clã do Minúsculo. Ao escolher o nome de seu cão, Nagib imaginou-o forte, potente, rei do panteão dos deuses gregos. O clã Bolsonaro resolveu fazer uma alusão grosseira à relação de subserviência que com eles mantém outro humano—o que, obviamente, faz do cão uma imagem negativa, de um simples capacho. O clã Bolsonaro não consegue imaginar fidelidade que não seja a submissão de um capacho, coisa que Nagib e Zeus podem imaginar sem qualquer problema, como se vê na foto: a fidelidade como amor.

HAHAHAHA

CASOS DO ZAPISTÃO

Pensei em contar um causo meu que rolou ontem no zapistão e que é bem emblemático de um problema que tenho tido ao tentar ajudar pessoas que estão devastadas, sejam elas pobres, sejam classe média ou classe média alta, ou mesmo ricos que estão pirando por outros motivos que não o dinheiro. Casais pirando, muitos casais pirando.

Basicamente, não estou encontrando a combinação exata entre honestidade e delicadeza. Em outras palavras, está sendo impossível ser delicado e honesto ao mesmo tempo.

Desde o começo, decidi que não coadunaria com negacionismo. Lembram-se de março, quando as pessoas começavam as frases com “em algumas semanas, quando passar tudo isso…”? Bem, eu interrompia, já no começo, para dizer que a evidência empírica e as explicações dos cientistas já haviam deixado claro que não, não seriam semanas, não, não seriam “uns meses”, mas um período muito mais extenso.

Até hoje, a denegação continua levando pessoas a imaginar coisas como “vamos ver se podemos nos reunir todos aqui no Brasil no Natal …” e sabemos que o mais provável é que o Brasil continue trancado em dezembro e a situação sanitária esteja ainda pior. E aí eu fico sendo o chato, o apocalíptico.

***

Mas nada se compara com o que faço quando estou tentando ajudar. Ontem, no zapistão, Brasil Profundo, fiquei conhecendo uma florista. Toda a vida dela, ela foi florista. É uma das mais conhecidas floristas de uma cidade tamanho médio no Triângulo Mineiro. E há meses essa questão das profissões que estão se fodendo tem me ocupado a cabeça, como sabe quem me acompanha aqui. E, temporariamente esquecendo-me de que eu estava diante de uma florista, eu disse algo assim como:

“Agora acabou, né? Morreu, acabou. Quem é que vai ficar mandando flores? Eu mesmo ia mandar flores à minha filha pelo seu aniversário [ante]ontem, mas desisti. Quem vai querer flores, ninguém vai mandar isso mais”.

E, obviamente, quando me dei conta, eu já havia derrubado a pessoa no chão TENTANDO AJUDAR. Agora imaginem o que faço quando quero detonar alguém.

Tem toda uma questão aí que tem a ver com a autoestima das pessoas, que sai machucada quando a sua profissão é praticamente extinta. Sei lá se floristas vão sobreviver, mas essa trabalhava muito, sem parar, indo de velório a enterro a casamento a formatura a festa de bodas. E a renda dela havia desaparecido total da noite para o dia, e ela já estava vivendo de favores e empréstimos, porque pequeno comerciante nenhum consegue manter uma família três meses hoje no Brasil com a renda tendo caído a zero.

O tema da autoestima profissional está sendo muito devastador nesta parada, e às vezes gente como eu, tentando ajudar mas tentando ser honesto também, acaba sendo um elefante na loja de porcelana.

Tá foda, viu, tá foda. Por onde a gente olha, tá foda. Mas fiquei curioso também por ouvir casos semelhantes.

RECOMENDO

Isto ficou bom, eu acho. Deem uma olhada e me contem.

O Christian Dunker faz aqui uma coisa que também gosto de fazer de vez em quando, propor uma dicotomia ou tricotomia formada por tipos ideais, alegorias. Segundo Christian, há na pandemia três grupos: os tolos, os desesperados e os confusos.

Os tolos são os negacionistas ou mal informados. É a galera da gripezinha ou da cloroquina. Os desesperados são a turma que está no limite, correndo o risco de fazer alguma merda. A posição saudável (a palavra é minha, não dele) seria a de estar confuso.

Não fecho sempre com o Christian, mas respeito seu trabalho. Agrada-me a forma como fala, que contrasta com a de tantos acadêmicos: sem gritos, sem superioridade moral, permitindo que as frases respirem, incorporando o contra-argumento.

O SÓCIO

Renato Feder, Ministro da Educação, é sócio da Multilaser, q fabrica laptops ruins q ele já enfiou goela abaixo das escolas do PR.

TRANCADO E FICANDO DOIDO

Conversei com um querido amigo meu, jornalista, que tá trancado em casa com dois moleques de 7 e 9 anos de idade. Pirando, evidentemente. Estes dias formulei a teoria de que com bebês de até ano e pouco, ou com adolescentes a partir de 12 ou 13, deve estar razoavelmente tranquilo.

Queria me solidarizar muito com quem está trancado com crianças de 4 a 11 anos de idade, PQP. Os bichinhos aguentam, claro, mas ao custo de uma enorme pancada na cabeça e no corpo da adulta ou do adulto que está cuidando.

Minha solidariedade também a quem está trancada(o) com a libido e os hormônios nas alturas e sem poder sair — ou, pior, com o/a outro/a significativo/a trancado em outro lugar. Solidariedade ainda maior com quem está trancado/a com quem não quer estar, o que está rolando também.

Está todo mundo levando pancada de todo lado, mas esses grupos aí têm a minha solidariedade especial hoje.

SAIU, PORRA!

Lembram que avisei que, quando saísse meu artigo a quatro mãos com Moysés Pinto Neto sobre Belo Monte na Luso-Brazilian Review, eu mesmo piratearia para vocês? Taí. Já pirateei e já subi a revista ao Academia. Baixem logo.

O trabalho acadêmico tem esses momentos de recompensa longamente adiada. Comecei a pesquisar Belo Monte em 2009, em 2011 publiquei na internet uma compilação chamada "50 leituras sobre o ecocídio de Belo Monte", fui duas vezes ao Xingu e, em 2018-19, juntei os materiais que tinha, reescrevi e tornei-os parte do ELES EM NÓS, livro que sai em breve.

Daí em 2019 chamei o Moshe, que saca muito de meio ambiente e de Direito, é ele próprio um crítico de primeira hora do ecocídio, e ele trouxe outras contribuições, chacoalhamos tudo, e assinamos a dois. Ficou bem feito. É provável que este seja o estudo acadêmico mais exaustivo sobre Belo Monte que há por aí, sob qualquer ângulo.

Baixem o arquivo e deem uma olhada porque deu um trabalho dos infernos pra fazer rs. E parabéns pra nós, porque não é todo dia que se publica na Luso-Brazilian Review.

Leia aqui.

SEMINÁRIO

Na próxima segunda-feira, 06 de julho, conduzo um seminário sobre o tema do meu próximo livro, a linguagem na política brasileira do século XXI, a convite da Universidade Federal do Oeste da Bahia. Vou papear com o querido Prof. Fábio Fernandes.

É aberto ao público, mas parece que vocês têm que se inscrever, porque o número de vagas é limitado. O link para as inscrições é este: https://www.sympla.com.br/corpuspossiveis

Nos vemos lá.

Leia outros artigos da coluna: Eles em Nós

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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