29/03/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Relatos literários com Juan José Saer

Publicado em 24/06/2020 12:00 - Idelber Avelar

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Este é um relato de como, uma vez, estive com Juan José Saer, ou, melhor dito, quase estive. Nunca conversei com ele, mas é fato que Saer já me dirigiu a palavra. Contar a história desse assombro é o objetivo das linhas que seguem.

A foto que acompanha este post não fui eu quem tirou. Ela é de Saer com Beatriz Sarlo, a crítica argentina mais responsável pela canonização de sua obra, nos anos 1980. Eu só soube quem era Saer em 1993-94, embora já soubesse bem quem era Beatriz em 1983; como militante trotsko de 14 anos de idade, eu havia tido acesso a um exemplar de Punto de Vista, revista notável, importante para o reconhecimento crítico da obra de Saer.

Em todo caso, quando me doutorei, em 1996, eu ainda achava que Piglia era um escritor maior que Saer, equívoco abrupta e violentamente corrigido em 1997 (equívoco que era da minha cabeça, porque o próprio Piglia passou a vida dizendo que Saer era o maior). Em 1998, quando fui a Rosario pela segunda vez, eu já sabia que Saer era um dos maiores romancistas do mundo, embora provavelmente ainda não tivesse palavras boas para dizê-lo e fundamentá-lo.

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Em 1999, saiu meu primeiro livro, e eu já não era apenas um devoto leitor de Beatriz Sarlo; ela já tinha alguma ideia de quem eu era. Tínhamos nos visto um par de vezes, e ela me havia descolocado ao me tratar como igual, como fôssemos pessoas da mesma estatura. Em 1999, em Londres, celebrou-se um colóquio Borges. Saer, que morava na França, atravessava rumo à Inglaterra com frequência para se hospedar com Beatriz, que sempre foi muito amiga dele. Obviamente, não havia razão no planeta para que Saer soubesse quem era eu.

Em uma recepção, Beatriz e Juani se afastam um pouco daquela chatice das festas acadêmicas para se sentarem, como estão aí nessa foto. Eu, nesse momento, era ainda um moleque meio assustado de estar na mesma casa que Saer, ainda por cima pendurado no cotovelo de Sarlo, uma pessoa que não era exatamente amiga ainda, mas uma mestra monumental. Daí, entender-se-á, fiquei naquela situação de PÂNICO. O que fazer?

Eles vão se afastando e eu, que estava com Beatriz naquele momento, fico paralisado, mas tomo a iniciativa e digo a ela algo como "los voy a escuchar desde lejos", e me penduro ao par, mas de longe, uns dois passos atrás, medidos cuidadosamente para que eu pudesse, ao mesmo tempo, escutá-los e não incomodar. Nesse momento Saer, muito acolhedor e com o lindo sorriso que lhe caracterizava, me diz "adelante", como que dizendo que eu era bem-vindo. Eles encontram assentos, se instalam, mais ou menos do jeito que estão nessa foto, apenas uns 10 anos mais velhos, e eu me sento no chão, no lugar em que possivelmente estava a pessoa que tirou esta foto. A cena não dura muito, claro, porque logo aparece algum acadêmico para interrompê-la. Mas foi mágica a história de como eu não tirei, 12 ou 15 anos depois, uma foto que se pareceria muito a esta, que é a foto mais conhecida de Beatriz com Juani.

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Em 2005, quando comecei a dizer na internet brasileira que Saer era o maior romancista do mundo nos últimos 80 (então 65) anos, as pessoas riam, achavam que era piada. Algumas até achavam que eu estava inventando um autor que não existia. A história tem um paralelo interessante: muitos ironizaram Sarlo em 1982, quando ela começou a sugerir que Saer seria o grande escritor para se pensar a Argentina. Hoje isso está estabelecido. Beatriz vence o argumento, paciente, metodicamente, com trabalho, da mesma forma como Saer o fez na ficção.

A cronologia, então, é esta: nos 1960s, Saer publica três romances e ninguém lê. Eram os maiores de seu tempo, mas ninguém leu. Entre 1974-83, ele publica mais três e, de novo, quase ninguém lê. Não há uma palavra de ressentimento ou reclamação de Juani. Ele segue escrevendo, plenamente consciente de que compõe a maior obra de seu tempo na língua.

Em 1985-1992, ele publica mais quatro, e ainda então quase ninguém lia, com a exceção do público formado pelo trabalho de Beatriz em 1978-90, desde o começo da Punto de Vista, sob ditadura, até a docência na UBA e os outros artigos e livros em que se falava de Saer. Mas era um grupo pequeno de gente.

A partir dos 1990, vão surgindo duas caudalosas gerações de excepcionais escritores na Argentina, a maioria deles com forte referência na prosa de Saer.

De 2005 para cá, dezenas de brasileiros leram pelo menos um livro de Saer por recomendação minha. NENHUMA dessas pessoas discordou de meu juízo de que se trata de um dos maiores, se não o maior, romancista do nosso tempo.

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Este post é um tributo ao grande escritor que mudou a vida de tanta gente e à mestra que me ensinou a ler.

GRANDE GIL

26 de junho de 2020, 78 anos de Gilberto Passos Gil Moreira. É difícil imaginar o quão mais miserável seria o mundo sem Gil. Obrigado a ele por tudo.

Aí vão, para animar a celebração de hoje, 95 canções em uma playlist:

LITERATURA

Como eu acho que, por um tempo mais, as pessoas vão ficar trancadas e um bom número delas continuará escolhendo ler livros, pensei em preparar um mapinha do romance brasileiro. 50 obras.

Submeto à vossa apreciação o primeiro rascunho. Agora, sim, dá para brincar de forma bem democrática, porque muitos de vocês leram um bom número de romances brasileiros. Está aí o plano da coisa, ainda sem ranking, só com o número de vagas reservadas para cada escritor.

Obviamente, essas vagas estão relacionadas à quantidade de grandes romances que escreveram. Só tem uma vaga para Guimarães Rosa porque ele só escreveu um romance. Com dor, reduzi de 5 para 4 as vagas de Machado. Ele escreveu 5 romances excepcionais.

Palpitem à vontade, mas lembremos que é mais fácil fazer uma lista de 500 romances brasileiros que uma de 50. Ou seja, um catálogo de tudo você encontra no Gúgol. O divertido é defender a inclusão de algo me dizendo onde eu devo tirar.

No caso da maioria dos autores para quem reservei uma vaga, estará óbvio qual é o livro a ser incluído. Se você não o conhece, uma guglada resolve. Para outros autores, não estará óbvio (exemplo: Oswald), aí é só me perguntar. Ou argumentar pelo seu livro favorito daquele autor. Somando os números à esquerda na lista abaixo, dá 50.

Podem palpitar, valendo.

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Plano para um top 50 do romance brasileiro:

4 Machado de Assis.
3 Graciliano Ramos.
2 Clarice Lispector.
2 Jorge Amado.
2 Lúcio Cardoso.
2 Milton Hatoum
2 José de Alencar.
2 Ricardo Guilherme Dicke.
1 Guimarães Rosa.
1 Lima Barreto.
1 Oswald de Andrade.
1 Dyonélio Machado.
1 José J. Veiga.
1 Antonio Callado.
1 Octavio de Faria.
1 Érico Veríssimo.
1 Ignácio de Loyola Brandão.
1 Osman Lins.
1 Raul Pompéia
1 Euclides da Cunha.
1 Lygia Fagundes Telles.
1 Lya Luft.
1 Carolina Maria de Jesus.
1 Paulo Lins.
1 Ariano Suassuna.
1 Rachel de Queiroz
1 Aloízio Azevedo
1 Autran Dourado.
1 Marques Rebelo.
1 Cornélio Pena.
1 Raul Pompéia.
1 Carlos Sussekind.
1 Ana Maria Gonçalves
1 João Gilberto Noll.
1 Paulo Leminski.
1 José Cândido de Carvalho.
1 Mário de Andrade.
1 Hilda Hilst.
1 José Lins do Rego.

DEU MERDA

Qdo começou a dar merda? Qdo Dilma comprou um laptop em 2002 e seduziu Lula com powerpoint. A única pessoa q ela seduziu na vida.

SUPREMACISTAS

Passei para lembrar-lhes que quem governa os EUA é um supremacista branco, o mais próximo de um nazista que tiveram as grandes democracias desde o pós-guerra.

Ele teve uma semana ruim. Anunciou com muita fanfarra um comício que terminou exibindo vastas superfícies de assentos vazios e chegou à Casa Branca de madrugada, sem gravata, com cara de bêbado. O tão propalado acordo comercial com a China está fazendo água. As pesquisas nacionais (que são um instrumento de poder limitado para prever eleições nos EUA, especialmente se você não está acostumado a lê-las) já estão mostrando Joe Biden 14 pontos à frente no pleito de novembro.

Enquanto isso, Trump tenta se sustentar no medo racista que atiça em sua base, associando o Black Lives Matter ao crime e à desordem. Mas essa base tem encolhido e os racistas parecem isolados. Mais da metade do país está experimentando aumento agudo no número de casos de SARS-CoV-2. O print que segue é do NYT. Coloco alguns links nos comentários.

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Derrubar o supremacista branco nas eleições de 2020 nos EUA e derrubar o minúsculo antes das eleições de 2022 no Brasil são as tarefas.

CICLO DE DEBATES DA ABRAMD SUL: CENAS DE USO NO CONTEXTO DA PANDEMIA

 

Leia outros artigos da coluna: Eles em Nós

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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