19/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Os brasileiros e o zap

Publicado em 07/05/2020 12:00 - Idelber Avelar

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Um dos mistérios não elucidados pela antropologia do século XXI é a relação que estabeleceu um povo em particular, os brasileiros, com um comunicador instantâneo, o Whatsapp. Há incontáveis povos e comunicadores instantâneos; há, por certo, um leque de usos possíveis a que esses povos colocaram esses aplicativos.

Mas nada há de comparável à relação do brasileiro com o Whatsapp — que é envolta em mistério para os outros povos e também para os antropólogos que nos dedicamos a estudar esse curioso povo.

Estabeleçamos a bizarríssima singularidade do encontro desse povo com esse comunicador instantâneo com algumas premissas.

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Premissa n˚1: com a digitalização e a consolidação de uma rede mundial de computadores, no século XXI, surgiram uma série de comunicadores instantâneos: ICQ, MSN, Messenger do Facebook, DM do Twitter, Whatsapp, SMS (o que nos EUA chamamos de "texting"), Telegram.

Premissa n˚2: vários povos estabeleceram relações várias com esses comunicadores, sempre cada um mais ou menos sabendo que eram comunicações privadas digitais, ou seja, privadas mas publicizáveis.

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Observações etnográficas:

* O brasileiro do zap é o único que entra a um comunicador privado — o Whatsapp — como quem está entrando genuinamente a uma esfera pública, por mais que o número máximo de pessoas a quem se possa falar no zap, de uma vez, seja 256, e esse brasileiro esteja, em geral, falando para apenas uma outra pessoa. E às vezes nem isso.

* O brasileiro do zap é o único que te revê depois de 20 anos e te diz que "você passou a ser a melhor fonte de notícias para mim" e, ato contínuo, TE ENCAMINHA UMA CORRENTE DE ZAP, sem suspeitar que se você é a melhor fonte para ele, qualquer corrente que lhe tenha chegado ao telefone, para você, que é fonte para ele, será redundante e/ou inútil.

* O brasileiro do zap é o único que clica em um botão "encaminhar" de um comunicador instantâneo como adentrando uma batalha pela libertação nacional! Pelo restabelecimento da verdade! Para que se encontre a cachorrinha! E assim por diante. Poucos entusiasmos de um povo são comparáveis à experiência pela qual o brasileiro restabelece a verdade pelo zap.

* O brasileiro do zap é o único que usa o comunicador instantâneo para … dar bom dia! Sem conteúdo nenhum, só bom dia, uma avalanche de jpegs de bom dia para deletar a cada manhã.

* O brasileiro do zap pode existir nas grandes metrópoles (SP, RJ, BH, PoA, SSA etc.), mas não se entende esse curioso espécime sem um mergulho no zapistão do Brasil Profundo (Jataí, Uberlândia, RP, Franca, Goiânia, Dourados, Jacareacanga, Ponta Porã, Passos etc.). É no Brasilzão Profundo que o brasileiro do zap brilha em todo o seu esplendor.

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ELES EM NÓS: RETÓRICA E ANTAGONISMO POLÍTICO NO BRASIL DO SÉCULO XXI, livro meu no prelo com a Record, traz uma longa meditação antropológica sobre o Brasil Profundo e o zapistão. Compartilho, dessa meditação, o parágrafo introdutório.

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No Whatsapp faz-se de tudo mas, sobretudo, ENCAMINHA-SE Para uma classe social e uma geração que tiveram acesso à cultura do compartilhamento de links do mundo dos blogs, na qual o que importava era dar o crédito e dizer de onde as coisas vinham, e mesmo para a faixa mais ampla da população que, na virada da primeira década do século, passou a utilizar as funções “retuitar” (no Twitter) e “compartilhar” (no Facebook), o encaminhamento do Whatsapp trazia uma novidade gigantesca, que com frequência passa despercebida nas análises, exatamente por ser tão óbvia. No Facebook e no Twitter, mil retuítes de retuítes e mil compartilhamentos de compartilhamentos não apagarão a autoria original da postagem. Em outras palavras, o repasse em segunda mão preserva a origem do repassado. No Whatsapp, quem recebeu de você um meme sabe que de você ele veio, mas a origem e a autoria originais já se perderam. A digitalização desenfreada ao alcance do dedo no celular elimina qualquer remissão à autoria, mais ou menos como Walter Benjamin imaginara que a fotografia serializada–ou seja, o cinema—tinha o potencial de destruir auras religiosas e pré-modernas da arte. Na reprodução digital infinita ao alcance do dedo do pobre em um celular com plano de dados, o encaminhamento foi a função decisiva para a eleição de Bolsonaro, muito mais que os disparos em massa, o que é mais um dado que empresta fundamento à tese de que o bolsonarismo não pode ser narrado como a história de uma fraude. Mas quem encaminhava o quê nos grupos bolsonaristas de zap, e por que foram tão decisivas essas práticas de encaminhamento?

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A encruzilhada entre esse estranho povo, o brasileiro, e sua estranha relação com um mui normal comunicador, o Whatsapp, é um dos mistérios que tentei elucidar no ELES EM NÓS.

AOS MACONHEIROS

Eu ia fazer uma frase colorida com isso e desisti, porque apesar de suscitar reações cômicas, o tema é sério. Ele é talvez o mais "sério" que tenha existido nos últimos 40 anos, pelo menos no Brasil e nos Estados Unidos. Mas também não quero fazer textão. Vai em drops, então (Love, Fal).

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No Brasil, maconheiros hoje vivem o pior momento dos últimos 100 anos. Não ria, é uma parcela significativa da população.

Há uma seca histórica, uma direita insana no poder, a impossibilidade pandêmica de compartilhar o baseado (nisso a cultura da cannabis é bem diferente da cultura do pó) e o simples fim da fumada de ponta com o dedo na boca, porque as pessoas passaram a morrer de medo. Tudo isso combinado com o isolamento internacional do Brasil.

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O parágrafo acima já foi pensado, tenho certeza, por milhares de brasileiros, mas poucos têm condições de publicá-lo abertamente. Então ele vai com autoria anônimo-coletiva, de certa forma, porque eu posso publicar isso sem problemas.

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Como a pandemia é um experimento em temporalidade alongada, as comunidades cannabis-afetivas que têm acesso a boa erva estão vivendo de forma MUITO mais tranquila que a vasta maioria, ou a média, do resto da população. Porque, como sabe qualquer maconheiro, o efeito essencial da cannabis é o alongamento da temporalidade.

Essa é uma das grandes diferenças entre os EUA e o Brasil hoje. Milhões de pessoas estão razoavelmente de boas nos EUA só por causa da descriminalização em alguns estados. Milhões de pessoas estão bem fodidas no Brasil pela manutenção da insana e hipócrita fachada da "guerra às drogas". Além de tudo, a combinação entre a escassez da cannabis e o poder das milícias é, em vastas zonas do território brasileiro urbano e suburbano, bastante ruim, letal e violenta.

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Não há como falar desse tema sem mencionar esses maravilhosos profissionais da saúde mental. Tenho orgulho de ter sido camarada convidado dos dois últimos encontros da Red Latinoamericana y del Caribe de Salud Mental, em Florianópolis e em Rosario (Daniel, Camila, Love!) e o que aprendi com eles é incomensurável.

Com fina formação, os profissionais da saúde mental acolhem seres humanos sem julgar sua história pregressa e sem pontificar sobre qual substância usaram ou usam ou usarão. Contra os aparatos policial, jurídico, psiquiátrico e farmacêutico (que com frequência atuam em dobradinha ou tripladinha), esses profissionais disseminam um enorme bem. Pelo menos um fundamental alívio.

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Se alguma vez você conhecer um profissional da saúde mental, levante seu drink em celebração e diga (pode dizer em espanhol mesmo): ¡SALUD MENTAL! — você será acolhido como um aliado que entende o trabalho maravilhoso que eles fazem.

Os profissionais da saúde mental se inspiram em longa trajetória do movimento antimanicomial, rica história de luta de mulheres encarceradas em manicômios, extensa bibliografia sobre a resistência à "guerra às drogas" (a guerra contra pobres/ pretos/ latinos, na verdade) e uma experiência de acolhimento e simpatia que não posso senão caracterizar como comovente.

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Tratando, então, desse lado pouco tratado, deixo aos profissionais da saúde mental o meu profundo respeito e agradecimento, por tudo o que me ensinaram nestes anos, no mundo virtual, e no mundo real de Floripa e Rosario.

Aos maconheiros do Brasil eu deixo meus votos de que erva boa possa circular tranquilamente em breve.

ESTAGIÁRIO

Quando eu zoava Toffoli chamando-o de "estagiário", juristas petistas reagiam indignados! Não é curioso ver o tombo que levaram?

CORAGEM

Corajoso Lima Duarte! Admiro defensores do direito do outro sobre sua vida. Pena o Brasil hoje não ser digno de Lima ou Migliaccio

SILÊNCIO

É isso. Nem uma mísera palavra do minúsculo sobre Aldir. Não precisava publicar um obituário do nível do de Nelson Moraes. Uma palavrinha que fosse, né? “Morreu um grande carioca”, “Morreu Aldir, que escreveu lindas letras”.

Qualquer coisa digna do Presidente de um país que está perdendo alguns de seus maiores filhos, um atrás do outro.

É querer demais, né? Como estamos na lama.

PAULO COELHO

Quem me conhece há mais de década sabe, quem é relação mais recente talvez não saiba, sou leitor e amigo e defensor da literatura de Paulo, e às vezes escolhido por ele como destinatário de raridades como esta, da qual só há 300 exemplares.

Considero ignorantes os brasileiros que confundem Paulo Coelho com gente como Romero Britto. Paulo esteve do lado certo em TODOS os debates da cultura brasileira do século XXI: sobre o direito a biografar (em que até Gil pisou na bola), sobre Belo Monte (em que até figuras “sofisticadas” como Mautner gravaram vergonhosos vídeos para a Norte Energia), sobre o direito de digitalizar obras pra estudantes … Enfim, minha admiração, amizade e respeito são públicos.

Este aí é um romance divertido, que tem lugar — joyceanamente — em 24h em Cannes com personagens russos. Puras peripécias de melhor literatura pop, estilo do Paulo.

Valeu, Mago, te lendo sempre.

MENTIRA

Entendo a motivação, mas não acho legal reiterar "isso vai passar logo" toda hora, especialmente se você sabe que trafica mentira.

Leia outros artigos da coluna: Eles em Nós

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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