20/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

A genealogia do bolsonarismo

Publicado em 21/02/2020 12:00 - Idelber Avelar

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Para traçar um pouco melhor a genealogia da catástrofe que nos aconteceu, eu sugiro a vocês que observem o ressentimento que vai se cozinhando em um naco enorme do Brasil que engloba o Triângulo Mineiro, todo o estado de Goiás, o oeste de São Paulo, o Tocantins, todo o Mato Grosso, o Mato Grosso do Sul. Nesse naco do Brasil, Bolsonaro vence as eleições com porcentagens soviéticas.

Ao longo dos anos de 2012 a 2018, vai se cozinhando nesse Brasil Central uma estética Barretos. Muita música de corno, muito ressentimento, muito pastor evangélico conversando com delegado, enquanto a galera lacrava no Facebook e no Twitter.

Em 2012, Jair Bolsonaro não era ninguém sequer na Barra da Tijuca ainda, mas em Barretos ele já era alguém. Vocês precisam ver as imagens de Bolsonaro em Barretos em 2012. É um momento importante da catástrofe que nos aconteceu.

O Brasil do Whatsapp bolsonarista é sobretudo o Brasil Central, mesmo quando ele acontece no Sul/Sudeste ou no Nordeste. É a estética do boi mais Bíblia.

Bolsonarismo é basicamente o seguinte: o Brasil dos rodeios de Barretos encontrando o pastor evangélico de Anápolis via miliciano da Zona Oeste do Rio. É mais ou menos por aí.

BRECHT AVISOU

Ante o esfarelamento do governo de uma figura fraca, acelerado pela consolidação de um discurso sobre lei e ordem e por um jornalismo que aceitou ser porta-voz da polícia, ascende ao poder um miliciano demagogo, autoritário e grotesco, que congrega seguidores fanáticos e vai eliminando a possibilidade de dissenso.

Um livro de jornalismo que conta a história recente de certo país tropical?

Não, apenas Bertolt Brecht, profético, em A resistível ascensão de Arturo Ui, peça de 1941. Fotografo a página-título e três trechos que saltam aos olhos se lidos hoje no Brasil. A peça inteira parece acontecer em Rio das Ostras, na verdade. Recomendadíssimo como lente se ler para o Brasil de hoje.

Amigos e interlocutores já me pediram que fizesse isso e eu nunca fiz, mas o estado catastrófico do Ministério da Educação me dá a oportunidade de fazê-lo. Abro uma seção (não uma sessão psicanalítica) de dicas de português, apenas baseadas nos erros do Ministro da Educação. Criemos uma tag para não perder os posts. #WeintraubPORT

ERRO DA VEZ

a) "aonde": advérbio/ pronome interrogativo formado pela aglutinação da preposição "a" (rumo a, em direção a) com o advérbio/ pronome interrogativo "onde". O vocábulo é usado, portanto, com verbos de movimento. Por exemplo:

"Aonde ruma este trem desgovernado do Ministério?"

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b) "onde": advérbio/ pronome interrogativo (em que lugar, em qual localização) usado com verbos que denotam ESTADO, como o verbo … ESTAR, ao qual o Ministro tascou um "aonde". Exemplo de uso correto de "onde":

"Onde esse imbecil aprendeu a escrever em português?"

REPORTAGEM DE FÔLEGO DA AMAZÔNIA REAL. NÃO DEIXEM DE LER

"Nova e forte investida de missões evangélicas aos indígenas isolados apoiada pelo governo Bolsonaro preocupa lideranças indígenas e indigenistas. Nomeação de missionário à Coordenação de Indígenas Isolados e de Recente Contato da Funai, retorno da Jocum aos Suruwahá, um povo de pouco contato no sul do Amazonas, e um plano das missões para ampliar a atuação na Amazônia reacende alerta de lideranças e do MPF. A preocupação é maior neste momento em que o presidente da República tenta autorizar a exploração dos recursos naturais em terras indígenas no Congresso Nacional."

Aqui.

COLONIALISMO INTELECTUAL

Juro que é o último post que faço sobre colonialismo intelectual, inclusive porque acho que já cabe outro nome, o que rola não é exatamente algo que se possa nomear assim.

Eu tô tomando uma raiva desse livro "Como as democracias morrem" que cês nem imaginam. O problema não é o livro. Tampouco são os autores, que são dois garotos que trabalharam sério, montaram uma hipótese e tiveram sucesso com isso. Alegro-me de verdade quando isso rola com gente jovem que trabalha sério.

Mas não é possível que brasileiros continuem tentando entender os sete anos mais complicados da história mátria referindo-se à mesma meia dúzia de textos escritos por gente que, para usar uma metáfora de que gosto, não tem notícia da diferença entre Rondônia e Roraima (e, acredite, RO e RR são os dois lugares mais diferentes que há — pergunte aos amazônidas que passam por aqui).

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Darei uma ligeira carteirada apenas para exemplificar o absurdo da situação: se eu, que modéstia às favas não tenho um currículo inferior aos dos jovens autores de "Como as democracias morrem", ao tentar explicar o Brasil dos últimos anos me vi na obrigação de humildemente sentar a bunda e ler uma montanha de coisas de jurisprudência, economia, ciência política, sociologia, antropologia e jornalismo sobre o Brasil — e fiz isso ao ponto de atrasar meu trabalho um ano, eu poderia um ano atrás ter lançado um livro com o que "eu acho" –, por que raios eu não devo achar absurdo, ao dizer que estou concluindo um livro sobre a política brasileira 2003-2020, ouvir a pergunta "você já leu 'Como as democracias moooooooorrrrem?"

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O Brasil é citado três vezes em "Como as democracias morrem". Na primeira, em uma lista de "political outsiders" que se elegeram democraticamente e depois atentaram contra a democracia: Fujimori, Vargas, Chávez e … Hitler. Na segunda menção, há um grosseiro erro historiográfico, a alusão a "grupos paramilitares de esquerda e direita no Brasil dos EARLY 1960S".

Existiu esquerda armada no Brasil, claro, mas DEPOIS, durante a ditadura, e não foi sequer no começo dela. Nada a ver com "early 1960s". Será que o Elio Gaspari, de quem sou fã, é especialista no tema e gosta tanto de citar livros gringos para entender o Brasil, já corrigiu esse erro grosseiro de Levitsky e Ziblatt?

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Coisas que já li e que não me interessam para explicar o Brasil dos últimos anos: Zizek, Negri, essa penca de livros gringos geralzões sobre como as democracias morrem etc.

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Entenda-se que a questão não é o passaporte do autor: leio com interesse o que Glenn Greenwald e Perry Anderson escrevem sobre o Brasil, por exemplo (embora ache que ambos ainda têm muito a aprender sobre o país). Algumas das melhores coisas que já li sobre cinema brasileiro foram escritas por Randal Johnson. Algumas das melhores coisas que já li sobre música brasileira foram escritas por Christopher Dunn.

O problema não é o passaporte de ninguém, é a consolidação de uma bibliografia reificada, composta de livros geralzões, que nada dizem sobre o Brasil, enquanto continua-se ignorando uma bibliografia importante, feita por brasileiros (e por alguns brasilianistas) que estão estudando seriamente esses sete anos danados de complicados da história brasileira.

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Então, para responder a pergunta: não, a fornada de livros sobre como as democracias agonizam não me forneceu nenhuma hipótese interessante para entender o Brasil deste século. "A resistível ascensão de Arturo Ui", peça de Bertolt Brecht de 1941, e "Ulysses", romance de James Joyce de 1922, me foram muito mais úteis, garanto-lhes isso sem nenhuma ironia.

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Para não ficar só reclamando, confirmo que publico em breve meu top 20 de livros para entender o Brasil deste século, é só organizar um penca de posts soltos que há por aí. Faço em breve, com fotinhas das capas e tudo.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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