23/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Em que mundo vive Guedes?

Publicado em 12/02/2020 12:00 - Idelber Avelar

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Quase tudo já foi dito sobre a frase canalha do Paulo Guedes sobre domésticas viajando à Disney e seria tedioso repetir tudo. Limito-me a uma observação que não creio ter sido feita por aí. Paulo Guedes não sabe em que universo vivem os pobres não apenas porque não sabe para onde eles efetivamente viajaram, mas porque não sabe para onde eles desejam viajar.

Tendo, com certeza, transitado muito mais no universo de onde saem as domésticas brasileiras do que o Paulo Guedes, afirmo tranquilo que é muito mais fácil encontrar aquelas que querem conhecer SP, RJ, praia do NE, praia de SC, Paris, Itália, Vaticano, Buenos Aires ou Nova York do que a Disney.

Mas, como o Paulo Guedes é o provinciano deslumbrado que, mesmo com o diploma de Chicago, pensa nos EUA em termos de shopping de Miami, Disney e churrascaria do Texas, ele acha que os pobres também são abestalhados como ele, também sonham os mesmos sonhos dele, os mesmos sonhos que ele projeta para eles.

Porque o ódio do Paulo Guedes por pobre é um negócio freudiano — o pobre é aquele lembrete permanente da impotência do cálculo econômico dele em moldar o mundo, o lembrete, enfim, de que ele contou muita lorota. Confrontado com isso, ele projeta no pobre os próprios limites da sua imaginação, como se os pobres tivessem esses sonhos medíocres que ele imagina.

BRASIL CONTEMPORÂNEO

Vou me permitir dar um toque aqui a colegas que trabalham, em qualquer disciplina, na espinhosa questão do "Brasil contemporâneo", especialmente os últimos sete anos da história brasileira.

Seja lá quais forem os mecanismos de validação de papers na sua disciplina–e sabemos como esses mecanismos podem ser castradores e tediosos–, entender o Brasil dos últimos anos é uma tarefa desgraçada de complicada. A bibliografia já não é lá essas coisas, em parte porque a tarefa é difícil mesmo, em parte por causa dos efeitos da polarização política sobre o trabalho acadêmico, em parte por crises várias, incluída a econômica.

Pois bem, se diante de um problema danado de complicado como "a ascensão do bolsonarismo", você tem um espaço de 20 páginas numa revista e você começa com 10 páginas de resumo de Zizek, Butler, Negri, Laclau, etc, seja quem for, antes de dizer algo sobre o Brasil, provavelmente quase todo mundo vai largar seu trabalho no meio. Eu certamente largo.

Pois se o Zizek não sabe a diferença entre Roraima e Rio Grande do Sul, por que eu devo levar a sério um acadêmico brasileiro que quer me convencer de que o milésimo resumo de Zizek é necessário para entender uma parada que é brasileira, é complicada, está mal explorada ainda (apesar de tematizada o tempo todo) e que anda mal entendida até mesmo por muitos brasileiros?

Não adianta reclamar que as pessoas não leem se você produz pilhas de papers inúteis. O trato é em mão dupla: o leitor tem que fazer o esforço, mas a gente tem que respeitar o leitor também.

TBT “EU AVISEI”

Querem um bom capítulo da genealogia do bolsonarismo? Anotem aí: 10 de outubro de 2017, professor progressista gringo organiza abaixo-assinado para impedir Bolsonaro de falar. Relembro o episódio com este post da época.

“Logo que a Universidade George Washington decidiu fazer um convite a Jair Bolsonaro a que desse uma palestra na instituição, eu fiquei sabendo. E imaginei o que ia acontecer. Pensei em vir aqui e me antecipar, mas sacumé, a esperança é a última que morre. O problema é que quando se trata da burrice da esquerda acadêmica, ela morre sempre.

Aconteceu o que eu previa, ou seja, algum gênio resolveu organizar um abaixo-assinado exigindo que GWU cancelasse o convite. O que era, até então, uma desimportante palestra da qual ninguém tinha ouvido falar passou a ser uma cause celèbre, porque obviamente nenhuma instituição que se preze vai deixar que os outros determinem quem ela pode ou não pode convidar a palestrar.

Em um momento em que boa parte da esquerda se insurge — com razão — contra a censura direitista a exposições de arte e museus, seria bacana ver mais vozes de esquerda se insurgindo contra TODAS as formas de censura prévia, incluindo este tipo (http://bit.ly/2xuvQP1) de abaixo-assinado infantil que grassa entre acadêmicos.

Bolsonaro é um fascista ignóbil. A questão é que o fato mais elementar sobre todos os fascistas do século XX é que eles floresceram cultivando a aura de perseguidos martirizados. Bolsonaro não é diferente. Ele surfa e capitaliza com cada abaixo-assinado que exige que uma aparição pública sua seja cancelada. É o óbvio do óbvio.

A tréplica do professor que co-organiza o abaixo-assinado à resposta da GWU é uma pérola de autoritarismo: "I strongly believe in the freedom of speech and the press, and the right to lawfully assemble. I defend the rights of others to express their opinion, even when I disagree with them" [não é incrível que eles sempre comecem com isso? O problema é que sempre vem um "however". Quer ver? Confira]. "However, that doesn’t mean that I have to invite the extreme right into my home for dinner or into my classroom to give a talk."

Não, Professor, você não TEM que convidar ninguém. Quem convidou Bolsonaro foi George Washington University. Ninguém está te obrigando a convidá-lo também. É o seu abaixo-assinado que está usando a linguagem do "tem que" e querendo determinar que O OUTRO "tem que" cancelar um convite que ele fez.

O texto do abaixo-assinado parece escrito por um diretor de grêmio de ensino médio. Tem parágrafos como: " We don’t know what Bolsonaro will be speaking about in his talk at George Washington University, but the fact stands that allowing him to do so will validate his reputation as a politician and aid him in getting the votes he needs to win the 2018 election."

Qualquer um que tenha a menor noção de quem é Bolsonaro sabe que uma palestra para 30 (ou, vá lá, 100) gatos pingados em uma universidade gringa não o ajuda a ganhar um voto sequer. Mas um movimento de acadêmicos que queira impedi-lo de falar, esse sim, reforça-lhe a aura de mártir perseguido e lança mais água em seu moinho.

A pior parte é que o gringo bem intencionado faz essas coisas e vai pra casa pensando "nossa, ajudei os brasileiros a lutar contra Bolsonaro!" Obviamente, ele está ajudando o próprio Bolsonaro, mas é impossível explicar isso a quem está tão convencido de que representa o Bem, a Verdade e a Justiça.”

NÃO AO LINCHAMENTO VIRTUAL

Eu conheço bem o trabalho da profissional Patricia Campos Mello. Ela é autora de trabalhos seríssimos e muito importantes para o jornalismo. Ela tem toda a minha solidariedade ante esse ataque de manada odioso que está sofrendo.

HISTÓRIA BRASILEIRA

Estudar a história brasileira das últimas quatro décadas é uma constante trombada na ubiquidade do 7 x 1, é inacreditável.

A última vez em que o Brasil elegeu um governo “de direita”, em 1989, vocês sabem quem escreveu o discurso de posse de Collor?

Foi José Guilherme Merquior.

Para quem não sabe quem foi Merquior: ele foi um dos maiores pensadores DO MUNDO na sua geração. Digamos o seguinte: qualquer livro de Merquior sobre qualquer assunto compete com qualquer livro de qualquer um no mundo sobre aquele assunto. E o espectro de assuntos é impressionante.

Na segunda vez em que o Brasil elegeu um governo de direita, em 2018, os discursos … não foram escritos por Merquior.

****.

Na nossa viagem pelos EUA, eu e Ricardo Rangel tínhamos um código: quando o liberal e o social-democrata ambientalista discordavam demais sobre algo, um dos dois lançava a senha: “nós ‘tamo muito fodido’”. E o outro concordava: “nós ‘tamo muito fodido”.

E a viagem seguia em paz.

MÁQUINA DE PRODUÇÃO DE MENTIRAS

Nesta declaração de Bolsonaro você tem uma síntese do que é o bolsonarismo como máquina de produção de mentiras denegáveis e apropriação dos tiques da esquerda.

Vocês se lembram, o lulismo cansou-se de denunciar “a PM do PSDB” em SP, “a PM dos golpistas do PMDB” (essa eles começaram a denunciar só depois de 2015) ou, enfim, “a PM do …” qualquer partido não aliado no momento.

E como isso já está naturalizado, é um pulo daí à lorota “PM do PT na BA queimou arquivo”, quando na verdade a queima de arquivo é outra e envolve os aliados do próprio Bolsonaro.

Mentira denegável + fake news acompanhada de discurso sobre fake news + inversão de todos os tiques da esquerda: que equação perversa e irônica é o bolsonarismo.

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO:

"O Brasil está retomando sua vocação de colônia de exportação de produtos primários. Tivemos o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café e o ciclo da borracha. Agora temos o ciclo da soja e da carne.

Os cristãos fundamentalistas acreditam que é preciso converter até o último pagão, e os índios isolados são os clientes ideais para esse projeto.

O objetivo dos missionários é desconectar os índios das suas condições culturais e materiais de existência. Isso significa separar os povos deles mesmos. Destruir o que há de indígena nos povos indígenas.

É um projeto especialmente sinistro porque está ligado a um programa econômico de desterritorializar os índios para permitir a entrada da mineração. Os missionários são fanáticos, mas os estrategistas do Estado não são.

Desde 1987, a política oficial da Funai era evitar o contato e garantir a proteção dos índios isolados. Essa política sempre foi combatida pelos missionários. Agora também passou a ser combatida pelo governo."

Leia aqui.

ELEIÇÕES NA AMÉRICA

Este é o mapa que sugiro aos junkies políticos que guardem para as eleições GERAIS americanas, o embate entre Trump e quem for o candidato Democrata.

Em azul, estão os estados vencidos por Clinton em 2016. Em vermelho, os vencidos por Trump. Usando os recursos do mapa interativo, eu coloquei em marrom os SEIS estados-pêndulo mais importantes, que me parecem ser razoavelmente disputáveis, que vocês devem prestar atenção: Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Flórida, Ohio e Carolina do Norte.

Trump venceu todos eles em 2016. Ou seja, Hillary perdeu TODOS os estados em que é concebível que um Democrata perca. O número mágico, da vitória é 270. Trump teve 304.

Ao retirar esses seis estados da coluna dele, reduzi seus 304 para 196. O candidato Democrata continua com os 227 que teve em 2016, porque cair disso é impossível (concebivelmente, um Republicano poderia vencer Virgínia e Novo México, que Hillary venceu em 2016, mas não creio que aconteça). O jogo se joga nesses seis estados em marrom.

Muita gente boa acha que Ohio já não é disputável, é coluna vermelha certa. Tendo a concordar. Trump subiria de 196 para 214. Aí, dos cinco que sobram, a gente teria que ganhar dois ou três. Dois, se for Flórida e Pensilvânia. Três, se for alguma outra combinação.

Deixo o link para o mapa interativo nos comentários. Espero que tenha dado para entender. Em breve, falo de cada um desses estados separadamente.

BERNIE

Fazer campanha para Bernie Sanders tem sido uma das coisas mais recompensadoras e divertidas que já fiz, mas também uma das mais enlouquecedoras. Sem dúvida, é o político de quem mais gostei em toda a minha vida. Segue o relato de hoje.

Todos os assessores, técnicos, profissionais da campanha, voluntários dizemos a ele:

“Senador, a gente fala do sistema universal de saúde, dos direitos reprodutivos das mulheres, do cancelamento da dívida estudantil, da taxação pesada dos bilionários, do fim das guerras etc etc e concordam com tudo, mas todo mundo só quer saber de uma coisa: ELEGIBILIDADE.

Senador, NÓS TEMOS os melhores números contra Trump há quatro anos. Já tínhamos em 2016. Continuamos tendo. Somos nós, e não Hillary ou Biden, que falamos com o eleitor de classe trabalhadora do Meio Oeste que decidiu 2016 e vai decidir 2020. Tudo quanto é pesquisa diz o mesmo. Sobe lá e diz isso! Não precisa atacar ninguém. Não precisa inventar nada. É só mostrar os números. Quem tem elegibilidade somos nós! Não esquece desse recado!”

O velhinho escuta, sorri, faz cara de que entendeu, sobe no palco e manda:

“sistema universal de saúde, direitos reprodutivos das mulheres, cancelamento da dívida estudantil, taxação pesada dos bilionários, fim das guerras …” Nenhuma palavra sobre elegibilidade.

O cara tem esse projeto de justiça social há 50 anos e não perde o foco, não sai da mensagem, não enrola, não aceita sequer usar os números que nos favorecem.

O velho é uma rocha incorruptível, eu nunca vi nada igual na política, não na política nível Casa Branca ou Palácio do Planalto. Sinto-me muito orgulhoso de falar em nome da campanha dele no telefone, porque é bem tranquilo: o papo é sempre muito reto.

Ainda falta muito, mas se a gente ganhar, vai ser a vitória mais bonita de todos os tempos. Um velhinho como esse aí, eu nunca vi na política, não.

Leia outros artigos da coluna: Eles em Nós

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *