28/03/2024 - Edição 540

Ágora Digital

Ataque a Porta dos Fundos ofende ideia de civilidade

Publicado em 27/12/2019 12:00 - Victor Barone

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É intolerável o atentado à sede da produtora do Porta dos Fundos. O episódio se insere num contexto preocupante. Está em curso um ataque à própria ideia de civilidade. A tática divisionista do "nós contra eles", que dividiu a sociedade em devotos de mitos e lendas com pés de barro, é gradativamente transferida da política para a religião.

Ouça abaixo o comentário de Josias de Souza.

Silêncio de Bolsonaro e Moro soa como endosso a ataque ao Porta dos Fundos

O presidente Jair Bolsonaro, conhecido por sua verborragia, manteve um incômodo silêncio, até o momento, sobre o ataque à sede da produtora do Porta dos Fundos, no dia 24 de dezembro. A tentativa de incendiar o local ocorreu após ameaças por conta de seu especial de Natal – um programa de humor sobre o aniversário de Jesus.

Da mesma forma, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, não se manifestou a respeito do caso – apesar do ataque representar uma afronta ao Estado de direito e à liberdade de expressão. Preferiu apoiar o indulto de Natal a policiais, defender sua visão do pacote anticrime, fazer propaganda pessoal e posar ao lado de uma estátua de Winston Churchil nas redes sociais.

Em um contexto de intolerância deflagrada, o silêncio da principal autoridade do país e de seu auxiliar para questões de direitos fundamentais, após um ataque terrorista, soa como anuência. Pior, como endosso. Esse silêncio se espalha como um vírus, infeccionando a democracia e oferecendo a fundamentalistas religiosos, fanáticos políticos, racistas, fascistas, incels, milicianos ou imbecis mal-intencionados a certeza da impunidade para que imponham mais medo.

Bolsonaro não precisa concordar com o Porta dos Fundos, mas proteger a democracia. O problema é a dificuldade em proteger algo do qual entende-se muito pouco.

Na história do país, o ódio sempre se manifestou de forma estruturada e articulada contra negros, indígenas, população LGBTQI+, pessoas em situação de rua, migrantes pobres, entre outros. Contra eles, o Brasil vem cometendo terrorismo de Estado há tanto tempo que se tornou parte das nossas fundações, um crime coletivo que, tristemente, vem nos definindo como sociedade. Afinal, não é só o silêncio de Bolsonaro e Moro que incomodam.

Agora essa violência volta à classe média urbana e a seus formadores de opinião e intelectuais, seguindo os passos da última ditadura militar. O ódio não foi criado agora, mas atinge um novo patamar. Qual será o próximo alvo? Bombas em redações de jornais? Atiradores em universidades? Com a política de armas do presidente, isso ficou, inclusive, mais fácil.

Durante a campanha eleitoral do ano passado, alertou-se que o ódio semeado por Bolsonaro iria gerar frutos ao longo de seu mandato. A surpresa é a velocidade com a qual isso está florescendo. Não se imaginou que, logo no início, teríamos ataques terroristas contra programas humorísticos. Isso demonstra a "competência" do presidente, que tem inundado a sociedade com discursos que apoiam guerras políticas e culturais. Melhor seria se fosse competente em acelerar a geração de empregos com carteira assinada, mas isso não parece ser prioridade.

Uma semana antes do segundo turno de 2018, Bolsonaro prometeu "uma limpeza nunca vista na história" após eleito. "Vamos varrer do mapa esses bandidos vermelhos do Brasil", afirmou. "Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria."

Em suma, varrer, banir, prender ou exilar adversários. Deixou claro que seu mandato jogaria gasolina no fogo.

Após a execução da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, muitos foram os idiotas que celebraram ou minimizaram o horror de sua morte. O ataque a tiros aos ônibus da caravana que o ex-presidente Lula realizou na região Sul, no mesmo mês, seria rechaçado por todos em qualquer democracia decente – o que não foi o caso por aqui, dada a quantidade de comemorações. A abominável facada sofrida por Bolsonaro foi celebrada por pessoas estúpidas que queriam que Adélio Bispo tivesse terminado o serviço. O músico Moa do Catendê, eleitor de Fernando Haddad, foi morto a faca por um eleitor de Bolsonaro, em Salvador, para júbilo de mentecaptos. Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da República, disse que foi armado ao Supremo Tribunal Federal para matar o ministro Gilmar Mendes e ignorantes o chamaram de herói.

Bolsonaro não demonstrou indignação à altura diante de nada disso, com exceção do seu próprio infortúnio. Pelo contrário, radicalizou e dobrou a aposta ao longo de 2019. E indivíduos e grupos radicais, sentindo-se empoderados pela mudança de governo, foram à forra.

Jovens rapazes de escolas se juntam para dar "corretivos" nas colegas feministas e mostrar quem manda. Fazendeiros se juntam para atacar fiscais e movimentos de sem-terra, indígenas, camponeses ignorando decisões judiciais. Milicianos se juntam em grupos de extermínio para fazer valer a sua ordem, recebendo dinheiro até de gabinetes de políticos. Empresários se juntam para remover a população em situação de rua e os sem-teto de seu entorno, matando, sem pudor, na frente de câmeras de segurança. Grupos homofóbicos se juntam para atacar baladas LGBTQI+ e racistas se juntam para espancar jovens negros, chamando-os de vagabundos apesar de estudarem e trabalharem. Pessoas se juntam para atacar jornalistas que insistem em dizer o contrário do que o grupo de WhatsApp ensinou.

Antes do fim de 2018, ouvíamos de analistas que chamavam de "exagero" a possibilidade de Bolsonaro colocar em prática a parte mais dura de suas promessas. Ironicamente, eram os mesmos que, meses antes, tachavam de "exagero" nossas avaliações de que ele seria o próximo presidente. Antes do início de sua gestão, os mesmos analistas afirmavam com indescritível certeza que ele seria devidamente controlado – seja pelos freios e contrapesos institucionais (quando as instituições já davam provas de que não estavam funcionando perfeitamente), pela força da imprensa e da sociedade civil (quando a imprensa já era chamada constantemente de principal produtora de fake news) e pelo mercado (como se o mercado se preocupasse com qualquer coisa que não ele mesmo). Foi freado em muita mudança que propôs, sim. Mas seu discurso surfou livremente.

Munidos com o ódio que fermentaram ao longo do tempo e com a sensação de estarem fazendo um serviço público endossado pelas autoridades, soldados agem para "dar um jeito na escória". Como sempre digo aqui, não são as mãos dos líderes políticos, sociais, econômicos e comunicadores que atacam, mas é a sobreposição de seus argumentos, a escolha que faz das palavras ao longo do tempo e o exemplo que transmitem que distorcem a visão de mundo de seus seguidores e tornam o ato da violência banal. Suas ações e palavras redefinem, lentamente, o que é ética e esteticamente aceitável, visão que depois é consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória ou divina, e irão para a guerra.

A liberdade de expressão não aceita censura prévia e prevê a responsabilização judicial posterior. Pois a partir do momento em que o debate é interditado por balas, facadas ou coquetéis-molotov em programas de humor, a sociedade é ferida de morte.

A discussão não é entre direita e esquerda, mas entre civilização e barbárie. E, no silêncio daqueles que podem se opor a isso, a barbárie avança.

Por leonardo Sakamoto

Terrorismo sim

Por que estão tentando dourar a pílula, evitando chamar o que se deu na produtora de Porta dos Fundos por aquilo que é? E o que se viu lá tem designação precisa, é crime previsto em lei federal, com a devida pena: terrorismo. Logo, deveria estar sendo investigado pela Polícia Federal. Por que não está? Isso tranquiliza ou intranquiliza os que torcem para que se chegue aos criminosos? Vamos ver.

Por resistência das esquerdas, o Brasil era, até março de 2016, a única grande democracia do mundo a não ter uma lei específica para punir o terrorismo. A Lei 13.260 foi finalmente votada e sancionada por Dilma no dia 16 de março daquele ano.

O Artigo 2º conceitua o ato terrorista:
"O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública."

As pessoas que jogaram os coquetéis Molotov na produtora queriam, por óbvio, provocar "terror social, expondo a perigo pessoa etc". Alguma dúvida a respeito? A motivação religiosa é claramente admitida pelo grupo que assume a autoria do ataque.

Nota: se o tal grupo existe mesmo, se estamos diante de uma "associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza", essa é outra questão. Isso serve para caracterizar a "organização criminosa", conforme a Lei 12.850. É preciso investigar.

O que é inequívoco? Tratou-se de um ato terrorista. E, se a polícia chegar aos autores, é preciso que sejam denunciados por esse crime — sem prejuízo da imputação de organização criminosa.

O Parágrafo 1º do mesmo Artigo 2º da Lei 13.260 discrimina as ações que são consideradas terroristas, a saber:
§ 1º São atos de terrorismo:
– usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

 sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

– atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

E por que é importante que o crime praticado mereça a correta designação: terrorismo? Em primeiro lugar, por causa da pena: reclusão de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.

Mas não só por isso. O Inciso XLIII do Artigo 5º da Constituição estabelece ser crime inafiançável, não suscetível a anistia ou graça. E o XLIV o define como imprescritível. Assim, os criminosos podem ser punidos a qualquer tempo.

LEMBRO: essa Lei 13.260 traz uma aberração no Parágrafo 2º no Artigo 2º:
"O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei."

A intenção das esquerdas era impedir que movimentos sociais de caráter reivindicatórios fossem caracterizados como terroristas. Certo! Mas convido o internauta a ler de novo os atos que merecem tal designação. Pergunto: a intenção alegada muda a natureza do crime? Ora, os delinquentes que jogaram coquetéis Molotov na produtora poderiam alegar que agiam em defesa da religião…

Só para esclarecer: a lei não exime de punição quem praticar qualquer um daqueles crimes alegando, para ser genérico, motivação ideológica. Mas não haverá a imputação de terrorismo, o que implica punição mais branda e prescrição.

Reitero: se o tal grupo existe de modo organizado ou não; se seus eventuais integrantes compõem ou não uma organização criminosa; se obedeciam ou não a um comando… Bem, tudo isso é secundário no contexto.  O que é inequívoco é que se trata de um ato terrorista segundo define e caracteriza a Lei 13.260. Sim, havia uma câmera subjetiva na ação: os criminosos filmaram o ataque e tornaram público o ponto de vista do terror. Se os encapuzados que aparecem no vídeo-manifesto são os mesmos que jogaram os coquetéis Molotov, não há como saber. Só a investigação pode dizer.

Notem: o ataque ao Porta dos Fundos viola uma lei federal. Como tal, teria de ser investigado pela PF, subordinada ao Ministério da Justiça, cujo titular é Sérgio Moro.

Já ouvi de mais de uma pessoa a afirmação de que, dada a atuação do ministro, é melhor que a investigação fique sob a responsabilidade da Polícia Civil do Rio porque há uma crescente desconfiança na independência da Polícia Federal. Não que lhe falte competência, não é mesmo? Vimos a rapidez com que Moro conseguiu chegar aos tais hackers. Até acordos de delação premiada já foram celebrados.

Foi um ato terrorista. Dado o crime, é claro que a Polícia Federal já deveria estar investigando o episódio. Não obstante, infelizmente, há quem evite chamar a coisa pelo nome porque prefere que Moro fique longe da investigação — a exemplo do que vê no caso dos respectivos assassinatos de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Por Reinaldo Azevedo

Frase do ano

“A preocupação com o meio ambiente poderia ser resolvida se a população fizesse cocô dia sim, dia não”. (Jair Bolsonaro, presidente da República do Brasil, autor das frases mais absurdas que marcaram 2019) 

Um pouco de humor para relativizar o horror

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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