29/03/2024 - Edição 540

True Colors

Os direitos LGBT, o governo Bolsonaro e o STF

Publicado em 21/11/2018 12:00 - Daniel Carvalho Cardinali - JOTA

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Sérgio Moro, que deve assumir o novo e anabolizado Ministério da Justiça, ao ser questionado sobre a possibilidade de retrocesso dos direitos LGBT no governo Bolsonaro, menoscabou a preocupação: “Quais as propostas concretas do governo que afetam ou ofendem minorias? Até o presente momento, nenhuma. Existe uma política persecutória contra homossexuais? Não existe. Não existe a possibilidade de isso acontecer. Zero. Existe um receio de algo que não está nem potencialmente presente”.

A análise, entretanto, ignora mais de uma circunstância relevante. Em primeiro lugar as declarações prévias, expressas e – em tempo de fake news é bom ressaltar – documentadas do presidente eleito, marcadas por violenta homofobia e desumanização e deslegitimação das existências não cisheteronormativas, bem como as de seus aliados mais próximos e homens fortes, como o senador Magno Malta, sob cuja batuta deve ficar a pasta dos direitos humanos – retirada do Ministério da Justiça na reforma administrativa proposta por Bolsonaro. Em segundo lugar, o potencial efetivo de o Chefe do Poder Executivo, aliado a um Congresso altamente conservador, de transformar o ordenamento jurídico, as políticas públicas e, em última instância, a própria sociedade. Finalmente, ignora o pouco auspicioso cenário global não apenas para a democracia, mas para os direitos de minorias, nos quais as expectativas de ataque aos direitos LGBT se convertem, sem surpresa, em realidade.

Assim, o presente artigo se debruçar sobre algumas dessas ameaças, analisando a sua viabilidade a curto prazo, bem como a capacidade específica de enfrentamento de um STF que se pretende e autoproclama “firme e unido contra  “em favor das mulheres, dos negros, dos gays, das populações indígenas, de transgêneros, da liberdade de expressão”.

A manutenção da legitimidade das famílias formadas por pessoas do mesmo sexo, cujo direito à união estável foi reconhecido em 2011 pelo STF, nas ADPF 132 e ADI 4277, e ao casamento civil em 2013 pelo CNJ pela Resolução 175/2013, foi imediatamente colocada xeque após a vitória eleitoral. Casais gays e lésbicos tem corrido para o cartório para casar “enquanto ainda dá” e despertado uma onda de solidariedade de pessoas que oferecem gratuitamente seus serviços para a cerimônia. O foco no casamento e união estável é, entretanto, parcialmente despropositado. Apesar de sua reversão não ser impossível – e não se pode cair em um ilusório “fim da história” segundo o qual nossos direitos estariam gravados em rocha, como ensinam os casos da Califórnia em 2008 e de Bermuda em 2018 – não se trata da conquista ou demanda mais ameaçada.

Existe mais de um projeto nesse sentido, como a ADI 4966, ajuizada pelo PSC contra a Resolução do CNJ 175/2013, e iniciativas no legislativo, como o famigerado “Estatuto da Família”. Todavia, mesmo que uma destas iniciativas prospere é provável que a sua ilegitimidade seja declarada pelo STF, uma vez que este é um campo em que há maior potencial para sua atuação contramajoritária. Isto porque, trata-se de um direito garantido pelo próprio tribunal, de sorte que a reversão indica uma certa reprimenda à sua atuação. Ademais, trata-se de uma demanda que lida com um direito que, embora polêmico, não é repudiado pela esmagadora maioria da população brasileira. Finalmente, trata-se de um direito “formal”, que envolve a mudança de status jurídico, de maneira que o sistema jurídico tem mecanismos eficientes para conter eventual renitência.

A recente decisão quanto à viabilidade de alteração de nome e sexo registrais de pessoas transgênero (ADI 4275 e RE 670422) também tem alguns pontos de intersecção com o julgamento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ambos envolvem decisões envolvendo direitos “formais” de mudança de um status jurídico, que não aparece imediatamente nas relações sociais, porém cuja reversão pode trazer grave risco à segurança jurídica. Ademais, o risco de resistência à implementação da decisão (backlash) é relativamente reduzido, vez que envolve primordialmente juízes e cartórios apenas. Todavia, pessoas trans estão submetidas a estigma social sensivelmente mais severo do que gays, bis e lésbicas – e tal circunstância pode influir na viabilidade política de cassação de seus direitos já conquistados.

É claro, todavia, que essas considerações partem de uma certa ideia de normalidade e previsibilidade institucionais, isto é, que o STF vai ter força e independência para fazer frente a uma agenda de retrocessos de direitos de minorias. Levando em consideração que o tribunal foi recentemente objeto de ameaças bastantes explicitas e que o novo presidente eleito ira indicar, no mínimo dois novos ministros – ou talvez dez – essa é uma premissa de que é sempre bom duvidar.

Por outro lado, talvez o maior risco para a cidadania LGBT esteja no âmbito das políticas públicas de educação, por meio da defesa do projeto “Escola Sem Partido”, segundo o qual professores estariam promovendo uma “doutrinação ideológica”, ligada a bandeiras de esquerda, ao comunismo e ao PT. Este movimento, marcado por um “anticomunismo” quê atávico, se concertou politicamente com o enfrentamento à chamada “ideologia de gênero”[1], feita principalmente por grupos religiosos cristãos, na defesa de uma educação “neutra”. Assim, as políticas educacionais que têm por objetivo a construção da tolerância e respeito à diversidade na escola são tachadas de mera “cortina de fumaça” para o fomento do “homossexualismo” e mesmo da pedofilia ou de perseguição e intolerância em face da religiosidade cristã.

Com a aliança entre as duas pautas – da “ideologia de gênero” e da “Escola sem Partido” – o debate passou a ser feito num âmbito mais geral entre a disputa da autoridade escolar em face da autoridade da família sobre a formação moral e política das crianças e adolescentes, a partir da ideia de que os pais deveriam ter o poder de vetar a discussão em sala de aula de temas contrários aos seus valores. Uma série de projetos de lei tanto na Câmara, quanto no Senado tem buscado promover em maior ou menor medida as ideias do “Escola sem Partido” ou do enfrentamento da “ideologia de gênero”. Propostas semelhantes têm sido introduzidas em diversos Estados e Municípios, algumas das quais lograram aprovação pelos legislativos locais. Com efeito, o site do “Programa Escola Sem Partido” possui “projetos modelo” de lei estadual e municipal para serem apresentados por vereadores e deputados interessados, que contemplam expressamente vedação à discussão de gênero e sexualidade[2].

A vitória de Bolsonaro na eleição presidencial representa indubitavelmente a vitória desse discurso. É possível, inclusive, relacionar o inicio do crescimento vertiginoso de sua popularidade com o episódio do “kit gay” de 2011. Com efeito, as invencionices em torno do tema, apesar de repetidamente desmentidas pelas agências de checagem, foram uma constante em sua campanha eleitoral, que soube manejar eficientemente o pânico moral da sexualidade juvenil.

Ademais, a possibilidade de influência na construção das políticas públicas de educação do Governo Federal é gigantesca e envolve, por exemplo, a escolha de reitores universitários, a possibilidade de escolhes livros didáticos considerados aceitáveis, controlar conteúdo programático, coibir políticas de defesa da tolerância e cidadania no espaço escolar, etc. Ademais, o caráter “técnico” dessas matérias não deve representar uma barreira intransponível, ainda mais considerando que o presidente eleito já planeja ter acesso prévio e poder de censura sobre a prova do ENEM de 2019 justamente após uma questão que tratava sobre o pajubá.

Atualmente estão em tramitação no STF um numero considerável de ações sobre a vedação da discussão de questões de gênero nos colégios. Assim, em face de distintas leis municipais que aprovaram previsões nesse sentido, a PGR ajuizou as ADPFs 457, 460, 461 462, 465, 466 e 479; o PSOL a ADPF 522; e o PCdoB a ADPF 526. Em três desses já houve decisão monocrática de suspensão cautelar, as ADPFs 461 e 465 (Relator Min. Barroso) e ADPF 526 (pelo então Relator Min. Toffoli). Há ainda em tramitação a ADI 5668, ajuizada pelo PSOL, que pretende a interpretação conforme do Plano Nacional de Educação para incluir em seu escopo a necessidade de politicas públicas para a discussão de questões de gênero e LGBTs.

Embora as primeiras sinalizações do STF tenham sido promissoras, tanto neste tema em particular, quanto na defesa da liberdade das instituições de ensino, é difícil prever qual será a resposta definitiva da corte no assunto – e principalmente, suas consequências. Trata-se de um caso muito mais complexo que o desfazimento de uma eventual reversão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Assim, uma decisão que proíba a punição de professores que discutam com alunos temas relativos à cidadania LGBT em todas as escolas no Brasil corre risco de ser descumprida repetidas vezes, sem que os instrumentos jurídicos possam garantir de forma eficiente a observância do julgado do STF. Ademais, caso estes debates envolvam a própria construção das políticas públicas, obrigando o Poder Público a adotar políticas ativas de enfrentamento da homofobia, é de se esperar grande resistência de gestores, da opinião pública e mesmo do Judiciário e do Ministério Público.

Não se pode, ainda, negar que o atual clima de macarthismo colegial, em que os estudantes são convidados a fazerem as vezes de Grande Irmão e manter vigilância cerrada sobre seus professores, já gera por si só um esfriamento do debate (“chilling effect”), em que os profissionais da educação vão preferir se abster de entrar em temas polêmicos, principalmente caso não haja um apoio da direção escolar mais imediata. As políticas educacionais como instrumento de enfrentamento da homofobia já saem perdendo.

Outro campo em que o retrocesso parece certeiro envolve as políticas públicas de saúde. Neste tópico, é importante, inicialmente, as políticas do SUS relativas ao combate ao HIV/AIDS, questão central para as pessoas LGBT e tema em que o Brasil é historicamente considerando um caso modelo. A continuidade dessas políticas, todavia, está ameaçada, uma vez que o presidente eleito já declarou sobre pessoas soropositivas que “uma pessoa que vive na vida mundana depois vai querer cobrar do poder público um tratamento que é caro” e que “se não se cuidou, o problema é deles”. Não por acaso, diversas entidades da saúde subscreveram um manifesto reivindicando a manutenção destas políticas.

Por outro lado, no tocante ao tema do direito à saúde de pessoas trans, é importante destacar que, embora o processo transexualizador seja realizado de forma gratuita pelo SUS, a política atual é altamente insatisfatória. Com efeito, apenas cinco hospitais estão habilitados para a realização da cirurgia de transgenitalização, e a espera por uma vaga se arrasta por muitos anos.

O desenvolvimento de políticas públicas de saúde, muitas vezes custosas, enfrenta problemas diante de um cenário de crise econômica e do “novo regime fiscal” inaugurado pela EC 95/2016. A ideia de “escolhas trágicas”, em que o governo deve estabelecer prioridades para decidir que demandas serão cobertas – e quais restarão descobertas –  ganha relevância e deve ser conjugada com o fato de que as demandas de pessoas LGBT não tendem a ser “campeãs de popularidade”, de forma que a sua manutenção se coloca em terreno ainda mais incerto do que políticas de saúde “universais”.

Por outro lado, independentemente de qualquer alteração concreta ou medida administrativa e legislativa específica, a vitória de Bolsonaro nas urnas já representa, ao menos simbolicamente, uma expressiva derrota dos direitos LGBT, uma vez que o candidato foi alçado ao planalto com base num discurso que mistura a “defesa da família” – guarda-chuva retórico do conservadorismo moral – com um chauvinismo heteronormativo que pretende acabar com os “coitadismos” na defesa do status quo do homem branco heterossexual ameaçado pela diversidade, fiel a um certo zeitgeist global nesse sentido. Não por acaso, ao primeiro turno eleitoral se seguiram inúmeras denúncias de ataques e violência contra minorias e pessoas LGBT em especial, gerando um clima de insegurança e medo. Neste cenário, a legitimação eleitoral do discurso que nega a legitimidade da própria existência das pessoas LGBT tem o condão de gerar a negativa de direitos – muitas vezes do próprio direito à vida – desses sujeitos, considerados subhumanos e, portanto, indignos de respeito e consideração. Assim, a triste posição do Brasil como país que mais mata pessoas LGBT – com destaque para as pessoas trans e travestis – não deve sofrer qualquer alteração, muito pelo contrário.

Neste cenário de explosão de crimes de ódio o debate da criminalização da homofobia pode voltar a baila no STF. Existem atualmente duas ações em tramitação na corte sobre o tema (ADO 26 e MI 4733 – que havia chegado a ser pautado para a sessão do dia 14.11) e que trabalham com a ideia de uma omissão legislativa inconstitucional do Congresso em criminalizar a homofobia, devendo o STF fazê-lo diretamente, com a concessão de efeitos concretos às ações. Trata-se de uma ideia polêmica que enfrenta resistência até mesmo dentro do movimento LGBT e de autores progressistas.

Fato é que, caso o STF efetivamente decida cumprir a sua função contramajoritária para proteger direitos conquistados diante de ameaças de reversão do Presidente eleito e do Legislativo, são esperados enfrentamentos e crises institucionais neste cenário de uma “queda de braço” entre os poderes. E aqui é importante destacar que um dos jogadores já declarou não estar disposto a “jogar limpo”, colocando na mesa a possibilidade de ataques à independência judicial. Neste sentido, caso o STF arrogue-se de um papel heroico de “vanguarda iluminista” em face da recalcitrância e resistência dos demais poderes talvez esteja assinando sua própria sentença de morte. Assim, é possível que os ministros utilizem seus poderes de controle de agenda para deixar na geladeira por algum tempo alguns casos cujo julgamento já tenha iniciado mas que sejam espinhosos nessa quadra histórica – como tratamento social de pessoas trans (RE 845779) e doação de sangue por homens que fizeram sexo com outros homens (ADI 5543) – e que não estejam especialmente salientes no debate público num dado momento. Embora seja inegável que o STF tenha o potencial de ser uma instância de resistência – muito valiosa neste momento – o seu estoque de “rebeldia” não é ilimitado, e deve ser testado ao máximo nos próximos – oxalá – quatro anos.

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[1] A ideia “ideologia de gênero” parte de uma leitura enviesada, simplificadora ou mesmo caricatural das discussões do feminismo e da teoria queer para defender que a discussão do gênero como produção cultural representaria uma subversão da sexualidade e da família naturais, atuando fortemente na defesa de sentidos dominantes de sexo e família, por meio de um discurso essencialista e biologizante. Neste sentido, imbricam-se argumentos religiosos e pseudo-científicos a respeito da sexualidade, a partir da ideia de que os comportamentos saudáveis e naturais seriam aqueles praticados dentro da família heterossexual e cristã, enquanto as formas desviantes de sexualidade são retratadas simultaneamente como pecaminosas, antinaturais e patológicas.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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