28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Bicha não, dona bicha!

Publicado em 25/02/2016 12:00 - Guilherme Cavalcante

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Em novembro de 2011, quando comecei a escrever a True Colors, uma das coisas que eu pensava era como escrever sobre cultura, direitos e lutas LGBT sem prejudicar a captação de publicidade para a revista, levando em conta o mercado conservador de Campo Grande. É claro que era uma postura submissa, que ao longo dos anos desconstruí e que foi endossada pela edição. Mas não era só eu que era assim. Diversos documentários, textos e outras referências que trouxe para cá reproduziam esse padrão higienista – aquela história do gay limpinho. Aliás, Gay, não! Homossexual. Bicha? Nunca?

Felizmente, as coisas mudaram. Com o passar do tempo, fui tendo contato com outras correntes de estudo e tendo outras vivências na militância. Compreendi que ser gay é mais que sentir-se sexualmente atraído por alguém do mesmo gênero, é livrar-se da armadura imposta pela heteronormatividade, que padroniza comportamentos, reações e formas de pensar. Assim, descobri que ser gay é ter a liberdade de ser fabuloso, de soltar a franga, de exagerar na pinta sem medo de ser feliz.

A coluna já trouxe esse assunto algumas vezes, mas é interessante destacar esta evolução. No última dia 20, por exemplo, foi lançado na íntegra o ‘Bichas, o documentário’, que se tornou um viral nas redes sociais. Basicamente, o doc traz o depoimentos de seis homossexuais que se autointitulam ‘bichas’ e que narram suas experiências de vida e processos de aceitação. O filme agrega, pois mostra que essa evolução paradigmática da sexualidade nos últimos anos trouxe a ressignificação do ‘ser bicha’ como algo positivo. Ser chamado de veado não é mais ofensa, tomamos isso para nós.

Assistindo a esse vídeo, automaticamente lembro dos meus 19 anos, 11 anos atrás, quando era repórter estagiário em um jornal de Fortaleza e consegui emplacar a capa do caderno de arte com o projeto musical gay Las Bibas From Vizcaya. Leitores ligaram reclamando, a direção do jornal segurou a onda e disse apenas para dar uma maneirada, mas, de forma geral, desci as escadas da redação sentindo-me subversivo. Hoje, publicações desse tipo são frequentes e os leitores continuam reclamando, mas os jornais meio que se lixam, porque já existe a ideia de que é salutar promover a diversidade. É uma conquista.

Esse cenário só é possível por conta do empoderamento de uma identidade fora do padrão, um processo crescente nos últimos anos, visível no contraste entre os documentários da True Colors em 2011 e neste, agora, de 2016. Aliás, vale até destacar que um dos fatores que alimenta a homofobia é o medo que temos da violência a qual estamos a mercê. Assim, reagir às ofensas ajuda a desestabilizar o agressor. Não estou falando de revidar a violência, mas de fazer a tentativa de ofensa perder o sentido. Tipo, se eu me aceito como gay, bicha, veado, bambi e acho ma-ra-vi-lho-so ser assim, por que ofender-se quando alguém se refere a você dessa forma?

O empoderamento está justamente aí, na ressignificação e na força política em adotar os nomes chulos por qual tentam nos insultar. Nos EUA aconteceu coisa semelhante, quando a palavra ‘queer’, que significa ‘estranho’, era utilizada em atribuição a LGBTs de forma pejorativa. O movimento de lá, então, aceitou o desafio e abraçou a palavra. Hoje, ‘queer’ é utilizado como sinônimo de quem está intencionalmente vivendo fora da norma e nomeia até a corrente de estudos que analisa as questões de gênero e sexualidade na sociedade (queer studies ou queer theory).

Já contei uma vez, também, como foi marcante para mim conhecer um jovem gay de 15 anos completamente assumido e fora do armário desde que nasceu. É uma coisa que observo: o número de jovens que jamais souberam o drama do armário só cresce e isso é claramente reflexo da militância, do empoderamento de uma ‘identidade’ queer e, claro, da desestabilização do modelo heteronormativo.

Ainda há muito a se conquistar, mas já é óbvio que avançamos neste processo. Por isso, quando lhe chamarem de bicha (ou viado, travestizinha, sapatona ou qualquer palavra dessas em sentido depreciativo), o mais inteligente a se responder é: ˜bicha, não! Para você é dona bicha”.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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