28/03/2024 - Edição 540

Camaleoa

Hannah Arendt e o exercício do pensar

Publicado em 26/02/2014 12:00 - Cristina Livramento

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"O tempo está fora dos gonzos: maldito despeito que eu tenha nascido para torná-lo direito!" – Hamlet

A reflexão sobre as questões mais contemporâneas, de tudo o que temos observado, principalmente como espectadores e não como personagens atuantes, tem se desenrolado em uma esfera tão abstrata e tão longe da realidade que a solução de determinados problemas sociais e econômicos se tornam cada vez mais parecidos com uma miragem. Caminhamos todos em um vasto deserto solitário, assim como deveria ser o ato do pensar.

Em um fim de semana qualquer, Hannah Arendt, filósofa alemã, aluna de Martin Heidegger, filósofo também alemão, autora de Eichmann em Jerusalém (sobre o esvaziamento burocrático do juízo e da moral individuais diante da carnificina nazista), entrou na minha vida de uma maneira incisa. Fico muito apaixonada quando essas coisas acontecem. Você se depara com a produção de um intelectual ou artista e aquilo te revira o peito, te tira o sono, faz você passar o dia pensando sobre o assunto, às vezes o resto da vida.

O filme sobre Arendt me remeteu à adolescência. Uma época em que as coisas se resumiam mais em “faça isso porque eu tô mandando” ou “você precisa escolher entre Deus ou o Diabo”. Separação feita a partir da imagem de um homem pregado em uma cruz, cheia de culpa, medo e vergonha. E boa parte da minha geração, que contestou o conceito quando jovem, tem perpetuado essa regra ao invés de exercitar a aceitação, a responsabilidade, a coragem e o caráter. Você evita o erro, ou questiona os fatos, não a partir de uma noção de responsabilidade, mas sob o medo de ser julgado pelo o olhar do outro.

A discussão borbulhante de ideias é enriquecedora, mas a briga de rinha por verdades não nos leva a lugar algum.

Mais tarde, já formada, dei de cara com outra barreira, a da arrogância (a minha também). Lemos e colecionamos títulos, decoramos trechos de livros e vomitamos teorias das mais diversas como se fossem nossas verdades. O ser humano não precisa de muito para se sentir especial e insubstituível. Por que as pessoas se encantam tanto pela reprodução ipsis letteris do outro e não pela vivência e curiosidade? Olho para o passado e me vejo como mais uma entre tantos medíocres, uma garota amarrada a uma concepção unilateral de mundo e vociferando soluções sobre tudo. Bem dona da verdade.

O instinto tem me ensinado algumas preciosidades. Uma delas é sobre aquela voz que sopra na orelha e diz, geralmente, dois ouvidos e uma boca, dois ouvidos e uma boca, Cristina. O embate e a tentativa de provar alguma coisa não valem à pena. A discussão borbulhante de ideias é enriquecedora, mas a briga de rinha por verdades não nos leva a lugar algum. Até quando a suposta elite intelectual tenta nos colocar naquele cantinho da sala, sob a indiferença e o desprezo, a experiência por si só faz parte do contexto solitário do pensar. Ou estou muito velha a ponto de achar legal falar sozinha e me sentir feliz com os meus pensamentos e personagens imaginários. O tempo é precioso demais para ser desperdiçado com bobagens.

No fim do filme, Heidegger diz em uma aula, algo como “pensar não produz sabedoria prática e útil. Pensar não resolve os quebra-cabeças do universo. Vivemos porque estamos vivos e pensamos porque somos seres pensantes.”

O instinto tem me ensinado algumas preciosidades. Uma delas é sobre aquela voz que sopra na orelha e diz, geralmente: dois ouvidos e uma boca, dois ouvidos e uma boca….

Na prática, pelo menos é a minha sensação, o pensamento é tratado como se fosse algo puro, coletivo, palpável. Talvez justamente com o propósito de fazer com que nós pensemos todos da mesma maneira. Mas o pensamento não é uma tarefa contábil em que você obedece uma lógica de cálculos e alcança um resultado. O pensamento é infinito, incontrolável e corrente. Desculpa pelo excesso de divagação, mas fiquei impressionada com as coisas que ouvi nesse filme.

As redes sociais, por exemplo, tem mostrado que a opinião do outro tem apenas dois lados, o da ojeriza e do amor profundo. Rejeito aquilo que não me reflete no espelho e amo o que se parece comigo, migo, migo, migo. Tipo criança mimada que se joga no chão e grita e baba porque os pais não querem comprar algum brinquedo. Assim rompemos amizades e criamos aversões para o resto da vida. Pessoal anda muito carente, eu acho.

Partimos do princípio, quase o tempo todo, de que o outro compartilha da mesma realidade de vida que a nossa, do mesmo ambiente social, da mesma bagagem de conhecimento, das mesmas necessidades, dos mesmos gostos, das mesmas repulsas. Tanta ciência, pesquisa, tecnologia para ainda pensarmos que tudo se resume em bom e ruim, bem e mal. Estaremos todos possuídos pelo Satã? Ó vinde a mim, legião do Apocalipse e que sobre nós desabe o céu marcado pelo sangue dos inocentes!

“Há várias razões pelas quais a discussão do direito ou da capacidade de julgar incide na mais importante questão moral. Duas coisas estão implicadas nesse ponto: primeiro, como posso distinguir o certo do errado, se a maioria ou a totalidade do meu ambiente prejulgou a questão? Quem sou eu para julgar? E, segundo, em que medida, se é que há alguma medida, podemos julgar acontecimentos ou ocorrências passados em que não estávamos presentes?”

Da reflexão sobre nazismo de Arendt, na citação acima retirada do livro Responsabilidade e julgamento (Cia das Letras), às manifestações no Brasil e pelo o mundo afora, temos visto a tentativa de manipulação da realidade. Manipulação. Porque entendê-la de maneira distorcida, isso já fazemos, praticamente o tempo todo. Distorcida porque observamos e pensamos o fato a partir de nosso pré-julgamento, nosso preconceito.

Vemos os manifestantes pelas ruas e os chamamos de vândalos. Nossa presidente e os veículos de comunicação, com algumas exceções, exigiram punição exemplar e passamos a arrotar nova violência sobre aqueles que se manifestam diferente de nós, da concepção que criamos de certo e errado. Nem sequer paramos para pensar por que nós vivemos esse estado de coisas, porquê estamos inseridos nesse contexto. Mas não, o contexto do qual não compartilho não é meu e eu não tenho nada a ver com isso.

A realidade é distorcida porque observamos e pensamos o fato a partir de nosso pré-julgamento, nosso preconceito.

Um amigo me perguntou esses dias – Então já que você conhece os pixadores, você acha que eles têm mesmo capacidade para questionar alguma coisa, você acredita que eles querem um mundo melhor? – E por qual razão não haveriam de querer e por qual razão eles seriam superiores ou inferiores a um professor com cinco estrelinhas da Universidade cinco estrelinhas do planetinha Terra?

A verdade é que eu não posso falar por eles. Assim como todo grupo formado por homens, somos diferentes e lutamos por poder, status e fama. Entre eles também não é diferente. E dizer isso não os torna melhores nem piores, ao contrário, são iguais a mim e a você. Sábios, ignorantes, medíocres, bandidos, poetas, em cada grupo social há um pouco de cada. Há a beleza e o caos. Do pixador ao doutor.

Mesmo assim temos opiniões muito certas sobre as coisas. Como podemos saber de fato, por exemplo, sobre o que acontece em Kiev e se o que os grupos de milícias dizem (do que lemos no jornal) é de fato a necessidade, a voz de um povo ucraniano? Olhamos para as manchetes sobre a queda do presidente Viktor Yanukovich e, tenho quase certeza, de que algumas lágrimas rolaram no rosto de leitores e espectadores. Um povo que não teme e vai às ruas, lutar corpo a corpo, pela verdade coletiva, pelo o bem comum. Será?

Sábios, ignorantes, medíocres, bandidos, poetas, em cada grupo social há um pouco de cada. Há a beleza e o caos. Do pixador ao doutor.

Imagine quantos significados foram traduzidos e interpretados até o abstrato – o desejo de uma nação em transformar o próprio curso da história – tomar forma, ação, texto e imagem, em sites, jornais impressos e televisão. Será que os correspondentes conseguiram – pela urgência do tempo de transmissão dos fatos e vivência pessoal – traduzir para o resto do mundo o significado dessa luta naquele exato momento? Quantos anos mais precisaremos para compreender as motivações e consequência dos fatos?

Com frequência, os jornais noticiam melhoras nos serviços públicos no país, investimentos, reformas e construções. Mas quem sabe da melhora são os usuários do SUS porque nem os jornalistas, nem os funcionários públicos, nem os professores universitários que ensinam sobre política, ciência social e economia brasileira, nem a maioria daqueles que vomitam em rodas de conversa sobre como o partido do momento melhorou o sistema público de saúde no país, frequentam ou frequentaram um dia sequer um posto de saúde. Mas todo mundo tem a certeza absoluta do que se passa lá dentro.

Sou usuária do SUS desde, sei lá, acho que de 2002, em diferentes lugares, Campo Grande, São Paulo, capital, e Porto Alegre. Mesmo sendo uma usuária e com alguma vivência sobre o assunto, não posso dizer sobre aquele que nunca na vida teve a chance de, em uma emergência, pagar um médico particular. Não posso jamais dizer verdades absolutas sobre o serviço porque não sou funcionária e nunca estive lá dentro como uma servidora pública para saber o que é trabalhar sob stress, falta de estrutura, equipamento, salário baixo e burocracia.

Como posso distinguir o certo do errado, se a maioria ou a totalidade do meu ambiente prejulgou a questão?

Vivi lá dentro o suficiente para ver, por exemplo, em um posto no Bairro Agronomia, em Porto Alegre, a ginecologista sair de sua sala e, do corredor, ver na fila do guichê do atendimento, uma mãe com seu recém-nascido e cumprimentá-la. A “doutora” do SUS chamou a paciente pelo nome, caminhou até ela rindo e celebrando o nascimento daquela criança. Um dos melhores oftalmologistas com quem já me consultei também é de um posto de saúde, de Porto Alegre.

É muito fácil falar mal do SUS, é muito fácil apontar estatísticas e dizer que tudo está uma merda ou tudo vai lindamente bem. É muito fácil falar e apontar sobre as coisas das quais não participamos como agentes. Queremos um país melhor, mas não tomamos aquilo que é nosso (os serviços públicos) porque partimos do princípio que somos os melhores e os melhores devem estar onde se oferece o melhor. E como eu sou muito foda eu pago. – Quanto custa pra você me amar e me chamar de linda, sociedade?

É cinematográfica a cena ao fim do dia, a roda de amigos (os melhores, é claro) tomando o melhor vinho do momento, contando sobre as últimas dos “coleguinhas” que adoramos falar mal pelas costas, e a teorização sobre a relatividade do rabo da lagartixa, o golpe na Ucrânia, a morte do cinegrafista da Bandeirantes, os jogos de inverno na Rússia, o desmatamento da Amazônia e o direito dos animais. Sonhamos excitados com o dia em que nos tornaremos capa de revista, manchete de jornal, mesmo que isso signifique aquela citação, nas redes sociais, de que você esteve naquela festa primordial na vida de todo o ser humano, e foi clicado pelo fotógrafo mais bacanérrimo da cidade e todo mundo viu que VOCÊ estava lá. O ser humano é fofo pra caramba.

Pensamos e concluímos teses longas e densas sobre o que vemos, notícias, pessoas, situações, movimentos e nos colocamos armados à frente dos fatos como defensores da verdade, da moral e dos bons costumes. Esquecemos que não somos o outro, não estamos e nem nunca estaremos lá, no lugar do outro, e que o nosso conhecimento só é válido se ele nos possibilita a empatia, a reflexão e a discussão sobre quem somos, o que queremos e o que construímos para o bem comum.

O vídeo do coral da Universidade de São Paulo cantando Beijinho no Ombro da funkeira carioca Valesca Popozuda, a imagem do menino de 4 anos atravessando o deserto sozinho, o garoto sírio dormindo entre os túmulos dos pais, deveriam nos remeter a essas reflexões todas. Quase todos nós, compramos um desses retratos da guerra como se fosse a verdade de um povo. Não são. O funk carioca na boca do coral de uma das universidades mais importantes do Brasil não deveria nos chocar, mas nos proporcionar alguma esperança ao ver que a universidade AINDA é um lugar de reflexão.

Kiev, vandalismo, funk carioca, cenários de guerra representam imagens de um tempo que deve ser submetido a reflexão e a efervescência de pensamentos, jamais de verdades. Não precisamos de amigos concordando com tudo o que dizemos, nem precisamos apunhalar no outro nossas concepções de mundo tão afiadas e cortantes quanto uma adaga. Vai ver que Bret Easton Ellis tem razão quando chama essa geração de “Geração Mimimi” (ele se refere basicamente a mim, você e todo mundo que é jovem, hipersensível e cresceu com a internet, tá na entrevista).

Esquecemos que não somos o outro, não estamos e nem nunca estaremos lá, no lugar do outro.

“Além do mais, como essa questão de julgar sem estar presente é geralmente ligada com a acusação de arrogância, quem jamais afirmou que, ao julgar uma ofensa, pressuponho que eu próprio seria incapaz de cometê-la? Mesmo o juiz que condena um homem por assassinato ainda pode dizer: e assim, se não fosse pela graça de Deus, procedo eu!”

As palavras de Arendt, apesar de terem sido tiradas de uma leitura rápida de seus livros, nos levam a pisar no freio e repensar não só o outro, mas no papel de cada um de nós no contexto social. Precisamos avaliar com urgência nossa inabilidade crítica sobre os fatos e equalizar os dois ouvidos ao exercício do falar. Senão seremos eternos reféns do nosso achismo e não exercitaremos aquilo que nos diferencia dos animais, o ato do pensar.

Obrigada Hannah Arendt.

 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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