28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Falta de acolhimento, barreiras e estigmas: os desafios de ser uma pessoa trans e acessar o sistema de saúde no Brasil

Publicado em 19/02/2020 12:00 - Ana Ignacio - Huffpost

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“Quando eu chegava ao médico do convênio, ele olhava para minha cara… Eu tinha peitos tamanho 56 e um pouco de barba. Alguns ficavam um tanto confusos, mas eu nem ligava e tirei isso de letra. Pelo convênio eu fui em 5 endocrinologistas e nenhum teve a boa vontade de me ajudar a iniciar a hormonização por lá… Na verdade acho que era e é ainda por falta de conhecimento.” 

O episódio específico descrito pelo homen trans Tryanda Verenna, 34, ocorreu durante a busca para obter informações sobre o processo de hormonização. Mas poderia ter sido um dia de realização de exames de rotina qualquer. Uma ida ao pronto socorro. Uma consulta com um profissional para lidar com uma queixa de saúde. Motivos comuns que levam as pessoas a buscar acesso aos serviços de saúde, um direito básico de todos, mas que, no caso de pessoas trans, barreiras e desafios são adicionados.

Para Tryanda, profissional da área de turismo, ativista da causa LGBTQIA+ e fundador do projeto “Homens Trans BR”, o início do processo de hormonização, que dura a vida inteira, ocorreu de forma positiva. Mas ele sabe que não é assim com todo mundo. “Muitos homens e mulheres trans desistem porque às vezes são mal atendidos ou não tem um retorno positivo e esclarecido do médico. Alguns homens não passam nem da recepção”, avalia. 

E o desafio não é apenas para hormonização. “O sistema de saúde precisa ser humanizado na prática. Claro que existem exceções, mas infelizmente não é nem 10% do sistema. É preciso que o Estado dê uma atenção especial nesse caso e que tenham profissionais treinados, que façam cursos, que deem um amparo adequado a eles e, por outro lado, ter interesse em aprender e participar dos processos. É uma via de mão dupla”, defende.

De fato, uma das barreiras parece ser encontrada logo nesse primeiro contato, como declara Luiza Cadioli, médica de família e comunidade do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, de São Paulo. “Acredito que a principal barreira é o primeiro acesso, é o serviço se sentir seguro e começar a atender as pessoas. As especificidades dos atendimentos estão escritas nos protocolos e, quando há algo muito específico, é possível encaminhar. As pessoas trans têm necessidades parecidas às necessidades de pessoas cis. E outras necessidades específicas”, explica.

O problema dessa falta de acolhimento no primeiro contato afeta o futuro da relação das pessoas trans com a saúde. “Muitas vezes por já terem sofrido preconceito, deixam de buscar atendimento até para exames mais básicos ou queixas habituais como dor de cabeça”, avalia a médica.

Daniel Mori, médico psiquiatra do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, compartilha da opinião. “A principal queixa entre todas as idades é da escassez de locais e recursos humanos profissionais que saibam de maneira técnica e acolhedora como receber as demandas em saúde da população trans, queixa que permeia o sistema único de saúde, o sistema de saúde suplementar e o sistema privado”, diz.

O especialista comenta ainda que, na teoria, a situação é clara. “De maneira geral, uma pessoa trans deve ter acesso a todos os serviços de saúde para os quais têm demanda, direito de todo cidadão brasileiro. Uma pessoa transexual, caso tenha a demanda por hormonioterapia, deve ter seu acompanhamento vinculado a um acompanhamento com seu médico de família, ginecologista, urologista ou endocrinologista”.

Porém, nem sempre é assim. Magô Tonhon, ativista e sócia da Pajubá – Diversidade em Rede e educadora comunitária na Casa da Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS Santa Cruz, em São Paulo, afirma que situações constrangedoras com nome social, por exemplo, são uma “introdução básica” ao que uma pessoa trans pode ser submetida.

“A transfobia está enraizada na naturalização da cisgeneridade [termo que define pessoas cuja identidade corresponde ao gênero que lhes foi atribuído no nascimento] que é tida como única identidade de gênero sadia”, pontua. “Meu cartão do SUS continua com os dois nomes: o que possuo e o que me deram junto da designação de gênero que me foi atribuída aleatoriamente. Preciso agora, com a nova certidão [conseguida em maio passado], uma vez corrigido meus documentos, voltar em um posto de saúde para pedir mais uma vez a correção do cadastro”.

Acompanhamentos específicos para a população trans

Além da questão da hormonização e possíveis cirurgias de redesignação sexual [que são escolhas e demandas pessoais de cada caso] a população trans não teria uma recomendação diferente de cuidados com a saúde. No entanto, alguns acompanhamentos corriqueiros podem esbarrar em questões de gênero e algumas resistências por parte do setor de saúde, como explica Daniel. 

“Um homem trans necessita de acompanhamento ginecológico por ter em seu corpo órgãos da competência de cuidado do ginecologista como vagina, útero e ovários, por exemplo. Tal acompanhamento esbarra muitas vezes em barreiras pessoais e técnicas de ginecologistas que desconhecem a possibilidade de acompanhar um homem trans ou têm receio/preconceito de acolher essa população.”

Magô chama atenção para a questão estrutural que pode dificultar parte desses atendimentos. “Há questões específicas no atendimento a pessoas trans e travestis. O problema, ou apenas um deles, é que muitos profissionais submetem o tratamento a crenças ligadas a ‘ideologia de gênero’. De modo que naturalizam as existências e corpos cisgêneros que dizem que só podem existir homens com pênis e mulheres com vagina. A gente quebra com essa lógica, mas nem todo profissional está disposto a se livrar das próprias lentes.”

Luiza também vê desafios nesse quesito. “Homens trans devem continuar fazendo uma rotina ginecológica sim, e colher o papanicolau, por exemplo. Mas não precisa ser com ginecologista, pode ser com médico de família ou enfermeira de estratégia de saúde da família. É interessante nesse sentido ser atendido por médico de família, já que esse profissional é médico da pessoa e não de um gênero ou parte do corpo específico. Então não há o estranhamento de ter um homem na sala de espera. Mas mesmo para ginecologistas, está na hora desse estranhamento desaparecer. Homens estarão nas salas de atendimentos ginecológicos quando fizer sentido. E isso é ótimo.”

O mesmo vale para o caso de mulheres. “Mulheres trans não necessariamente precisam da mesma rotina ginecológica de pessoas com útero, por exemplo. Mas precisam ter outros cuidados por conta do uso de hormônios e vão ter dúvidas e sintomas como qualquer um”, acrescenta Luiza.

Tryanda vai com frequência ao ginecologista, assim como a outros médicos. E conta que tem uma espécie de ritual. A cada três meses, toma os hormônios pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Em seguida, passa pelo dermatologista. “Os hormônios deixam a pele mais oleosa e com mais cravos e espinhas e o cabelo cai também”, conta. Já a cada seis meses, passa pelo atendimento ginecológico e de endocrinologia. Além das sessões semanais de psicoterapia. 

“Nem todos os meninos seguem à risca. Muitos não vão a um ou uma ginecologista por achar que não precisa ou por medo de não saber como vai ser tratado. Muitos não continuam o acompanhamento psicológico por acharem que estão no controle e que está tudo certo. Existe aquela questão: o que serve pra uma pessoa pode não servir pra outra. Cada um tem que ter consciência do que é melhor pra si”, avalia.

Um olhar que ainda precisa ser ampliado sobre pessoas trans

Existem sim questões e necessidades específicas de saúde para pessoas trans. Mas os especialistas ouvidos pelo HuffPost Brasil apontam que é importante frisar que o tema “saúde” é universal e um direito de todos.

“Transicionar em questões de gênero não deveria ser específico de pessoas trans e travestis até porque quando uma pessoa trans e travesti se levanta para dizer ‘não sou fulano, sou fulana’, todas as pessoas do círculo de convivência transicionam junto”, aponta Magô. “Não é que a transição de gênero não tenha questões específicas no caso de pessoas trans. Tem. Mas essas questões específicas que desenham as reivindicações históricas de acesso à saúde por exemplo, hormonização dentre outras, não deveriam ser tão específicas ao ponto de isolar o assunto, como se a gente tivesse pleiteando privilégios.”

Para Luiza, é necessário que esse olhar diante do atendimento de pessoas trans seja ampliado. “Uma barreira também é o acesso. Temos poucos serviços aptos a realizar esse tipo de atendimento mais específico e o ideal seria que toda rede de atenção primária à saúde pudesse atender seus pacientes trans.”

Hoje, os 5 hospitais universitários habilitados para fazer as cirurgias de redesignação sexual no Brasil estão localizados nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Porto Alegre e Recife. Além dos ambulatórios nessas unidades, o SUS conta também com outros 7 ambulatórios habilitados pelo Ministério da Saúde. Esses locais não fazem procedimentos cirúrgicos, mas oferecem serviços como a terapia hormonal para transição de gênero.

Mas em 2020 esse número pode mudar. Tanto a Secretaria de Saúde do Amazonas quanto a do Paraná têm buscado cumprir as exigências do Ministério da Saúde (MS) para ampliar o atendimento a pessoas transexuais. Se a expansão se concretizar, Manaus será o primeiro município da região Norte a oferecer esse tipo de procedimento cirúrgico na rede pública.

E essa dificuldade de acolhida inicial pode gerar o afastamento dessas pessoas do sistema de saúde. “Essa separação é potencialmente perigosa porque salvo as questões específicas de saúde de pessoas trans e travestis, saúde é saúde, seja cis ou seja trans. Acho importante que haja ambulatórios de atendimento à nossa gente, mas é indispensável que qualquer profissional de saúde tenha capacitação para lidar com a gente como lida com qualquer outra pessoa cis”, diz Magô. 

Assim, buscar atendimento continua sendo algo desafiador e que revela um problema mais complexo e social. “Muitos problemas, sejam eles anteriores à tentativa de buscar acesso a saúde, seja nestas tentativas de ir atrás destes equipamentos, acabam por constituir padrões de comportamento em que não há um hábito [dos trans] de recorrer aos equipamentos de saúde, a não ser em situações emergenciais. É o meu caso. Eu detesto ter que recorrer a isso. Tive um problema de saúde grave há um ano e estava desmaiando enquanto a equipe toda me tratava como homem. Passei por situações de gordofobia também. A médica não entendia como alguém ‘do meu tamanho’ estava com o grau de açúcar no sangue tão baixo”, completa ela.

O que pode mudar no atendimento às pessoas trans no Brasil

Especialistas da área admitem que falta preparo para profissionais de saúde e que é necessária a criação de uma política pública de educação permanente que aborde especificidades de pessoas LGBT. “Ainda há muita resistência do ponto de vida pessoal e profissional para que os profissionais de saúde, que já estão inseridos há algum tempo, aprendam os protocolos de assistência em saúde para a população trans”, avalia Daniel.

Luiza também concorda com essa visão. “Acho que precisa melhorar o acesso à saúde, o respeito aos direitos da população. Muitas pessoas não chamam pelo nome social embora seja um direito, embora seja lei”, diz. “Acho que é importante lembrarmos que as pessoas trans podem fazer tratamentos específicos ou não para redesignação sexual, podem desejar cirurgia ou não, hormonioterapia ou não. Ampliar nossa visão sobre gênero e identidade, atender de forma integral uma pessoa que pode querer ser ouvida por dor de cabeça ou pode querer começar hormonização.”

A médica faz um alerta ainda para outra questão ligada a pessoas trans. “Importante não rotularmos essa população e acharmos que estão necessariamente em maior risco para ISTs (Infeções Sexualmente Transmissíveis), por exemplo. O cuidado também passa por ouvir as questões de saúde mental, os problemas sociais e ajudá-los nesse sentido também. É uma população que ainda sofre muito preconceito, muitos são expulsos de casa, muitos não conseguem emprego e estão marginalizados não só dos serviços de saúde”, adverte.

A expectativa é que os consultórios médicos possam ser um espaço de acolhimento e inclusão. O trabalho todo é sobre cuidar – e melhorar – vidas.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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