28/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

O último fruto

Publicado em 21/08/2019 12:00 - Rodrigo Amém

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A verdade é que ela era muita areia pro nosso caminhãozinho. 

Quando a descobrimos ali, pertinho, cheia de vida e energia, nos apaixonamos. Não podíamos tirar as mãos dela, tão viçosa e linda. Todos nos invejavam. Éramos felizes. Por vezes, era o centro das atenções. Todos elogiavam tamanha beleza. Tinham inveja daquela exuberância, da tanta riqueza. 

Prometemos que cuidaríamos dela. Que a trataríamos como uma rainha, como se nada no mundo fosse mais importante. 

Até que descobrimos gente tirando proveito dela. 

Furiosos, indignados, prometemos tomar providencias para que jamais acontecesse de novo. 

Aí fizemos outras amizades. E esses amigos diziam que era um pecado não explorar todo o potencial daqueles dotes divinos. Explicaram que seria bom para nós, bom até para ela, que se sentiria útil, não abandonada. Além do mais, seria só um pouquinho daquele corpo voluptuoso que estaria em uso. Ninguém nem notaria. Afinal, ela é tão grande, pujante. Que mal faria tirar uma casquinha, não é?

Pois esses amigos nos pagaram muito bem para usá-la. E sempre voltavam. Sempre queriam mais. E mais. Quando demos por conta, ela trazia para casa a maior parte da renda. Não tinha mais volta. Mas era tanta a fartura, parecia sem fim… 

Até que um dia nos mostraram uma foto dela, desnuda. Machucada pelo abuso de tantos clientes. Gente que julgávamos amigos, homens de bem. Aquela imagem nos chocou tanto, mas tanto, que tivemos que tomar uma providência séria: demitimos o fotógrafo que ousou expor as vergonhas dela. As nossas vergonhas. 

Ousaram mostrar ao mundo aquilo que nos pertence. Sim, ela é nossa! É nosso orgulho, nossa propriedade. Ninguém mais tem que meter a colher nessa relação. Não importa que ela seja vizinha ou parente de quem quer que seja! Ela é nossa. 

Uma tarde vimos um grito transformar dia em noite. Violada, agredida, ela chorava seus filhos queimados, morrendo abraçados num inferno de fogo e ganância. Era um choro triste e preto como breu. Foi quando sentimos o vento de ira que soprava da sua boca, cobrindo nosso céu. 

Os olhos do mundo nos condenaram. Ela sabe como somos. Inseguros, reativos. Saímos gritando, dedo em riste, acusando a todos, menos a nós mesmos. Não precisamos da ajuda de ninguém, dos conselhos de ninguém, do dinheiro de ninguém. Ela é nossa, porra!

Enquanto ela agonizava em chamas, colocamos soldados à sua porta. Tudo para evitar que a tomassem de nós. Porque nós não a merecemos, mas ela nos pertence. E será assim até que morra esturricada e seca. 

Quando isso acontecer, nos deitaremos ao seu lado e aceitaremos nosso destino covarde e assassino. 

E daremos o último suspiro denunciando aqueles que não vieram ao socorro dela. Porque o último fruto daquele ventre a nos sustentar será a doce hipocrisia. 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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